Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Quanto vale a boa sogra


162. QUANTO VALE A BOA SOGRA

Uma nobre dona deu a um mancebo que ia para Indias de Castella, uma beatilha, muito fina, que lh'a levasse de encommenda, dizendo, que lhe rogava que a vendesse pelo mais que pudesse, e partiriam ambos o dinheiro. E o mancebo, não por cobiça do ganho, mas por fazer bem á viuva, que tinha uma filha virtuosa que manter, a guardou e levou a recado. Perderam os portuguezes toda a mercadoria que levavam, e de nojo morreram quasi todos antes de vinte dias; porém como não perdiam a roupa de seu corpo, houve este mancebo o caixão da roupa de linho, donde metera a beatilha, e como se viu solto determinou por misericordia pedir a fazenda que perdera, e para se lhe fazer n'isto favor teve maneira como mandou aquella beatilha rica de presente á molher do Justiça Mayor d'aquella terra. E ella tanto que a viu a acceitou, e desde logo trabalhou com o marido todo o que pode para que desse a fazenda áquelle homem. E assi lhe deram cinco vezes mais do que lhe tomaram, e vendeu tão bem o que lhe ficou na roupa de linho, que fez grande fazenda, e tudo feito em pedaços de ouro, veiu a Portugal riquissimo.

Estando este mancebo já repousado em sua casa, disse-lhe um dia a sua propria mãe:

— Filho, se fizeste algum dinheiro da beatilha da visinha, rogo-vos que o mandeis a sua filha, que ficou orfã.

E elle vendo isto, e tendo diante dos olhos que tudo o que trouxe lhe veiu de presentar a beatilha como presentou, tomou cincoenta cruzados em ouro e deu-os á mãe:

— Dizei-lhe que tome isto por então.

Assi lh'os mandou, e isto fez por quatro vezes; e a mãe, vendo que elle tinha já dado tanto dinheiro, e que lhe parecia não ter satisfeito, lhe disse:

— Filho, se vós tanto lhe deveis, que com o que lhe tendes dado não vos parece que pagaes, fazei o que vos eu disser, que eu vos rogo que caseis com ella, e que verdadeiramente por sua pessoa o merece.

O mancebo ouvindo isto de sua mãe, acceitou o casamento, que se logo tratou. Foram desposados e a seu tempo recebidos, porém como diz o rifão, que a orfã não gosa nem o dia da sua boda, assim aconteceu a esta, que o dia que os receberam, azevieiros defamadores vinham da egreja detraz d'elles murmurando do noivo porque se casára com aquella que sua mãe a vendera primeiro. E isto diziam tam desavergonhadamente, que deram occasião a que o noivo o ouvisse. Porém, des então lhe ficou um rencor no coração, e tam grande menencoria comsigo, que se não podia consolar, tendo-a tambem contra sua mãe. E assi despedida a gente que os acompanhou até casa, elle disse que ia por certa cousa que lhe faltava por trazer, e tambem se sahiu de casa sem nunca mais tornar a ella.

Ficou a este tempo a noiva mais triste que a noite, sem ter consolação de ninguem, nem saber a causa d'aquella mudança, que não sabia que conselho tomar, e certo se deixára morrer de nojo, se não fôra a boa sogra que tinha, que esta a acompanhou todo o tempo que lhe durou seu trabalho.

Porém como o mancebo tinha para si que era enganado, apartado d'aquella visinhança, em outra rua tomou casa, em que a poz de mercadorias que elle sabia tratar, com um sobrado em cima em que viveu mais de dois annos. N'este tempo indo a mãe a vêr o filho, algumas vezes lhe achou molheres em casa. E tanto que a mãe sintiu isto, imaginou o que havia de fazer, e foi-se a casa e disse a sua nora:

— Filha, sempre tomastes meu conselho, e espero tambem tomareis agora este que vos der: e é, que deixeis estes trages tão honestos e tristes e vos façaes muito fermosa e leda com outro trage que pareça de molher que vae em corpo fóra. Fiae-vos de que vos acompanha-rei até vos mostrar a logea de vosso marido; entrae n'ella, e fingi comprar para um corpinho.

D'aqui lhe aconselhou o que havia de fazer e se foi com ella até lhe mostrar a porta da logea, e a velha se tornou para casa. A moça viu seu marido, envergonhada, pelo transe em que estava lhe veiu outra côr ao rosto, que a fez mais fermosa, ainda que ella o era assaz, e esteve um pouco suspensa. O marido que a viu, não suspeitando nem por imaginação que fosse, lhe perguntou o que queria, e a fez entrar, e deu ordem como despedir os que ali estavam, e ficando com ella só começou a fallar-lhe de amores, a que ella de envergonhada não sabia que responder. Elle a importunou, e ella acceitou ficar alli aquella noite, em que elle conheceu claro que ella era donzella quando alli veiu e viu que sem falta era muito fermosa. E chegada a menhã, ella lhe pareceu que já não era razão nem tempo de usar de tanta vergonha:

— Muito tempo ha que vos tenho por meu senhor, e se até agora tardei e estive sem vol-o notificar foi por vos dar mostra de minha pessoa, que foi tão mofina, que sem me vêr nem haver porquê, me engeitastes. E se todavia agora me engeitaes, mandae chamar vossa mãe que me leve, que ella me trouxe.

Quando elle entendeu isto e viu ser aquella sua molher, não sabia determinar o que faria, que por aquella noite que a teve, se ella não fôra sua molher, e elle fôra solteiro, lhe pareceu que lhe merecia casar-se com ella. E estando n'estas considerações, começaram a bater-lhe rijo á porta, e elle chegou a uma fresta, e conhecendo que quem batia era sua mãe, lhe foi abrir, a qual, em entrando pela casa, disse:

— Filho, que vos parece da donzella que vos acompanhou esta noite? Crêdes que é a que eu disse, já que sabeis que é vossa molher?

Elle vendo a fermosura da molher e sua grande humildade, e conhecendo que o que ouvira foi engano, pesou-lhe do tempo em que deixou de estar com sua nobre e virtuosa molher, e com bom coração na vontade pedia perdão do agravo que até então lhe tinha feito, e se começaram a abraçar como se então se viram a primeira vez, e ficaram marido e molher muito contentes, e tiveram a velha mãe d'elle por mãe d'ambos, que por esta se póde bem dizer:

A sogra boa
Da nóra é corôa.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte II, conto I.)




Notas editar

162. Quanto vale a boa sogra. — Nos romances metrificados, como de Dom Bozo e D. Pedro, a sogra é sempre crúa. A mulher que engana o marido mettendo-se com elle na cama é um thema popular de muitos contos; este, porém, já recebeu fórma litteraria na composição de Shakespeare, Tudo é bom quando acaba bem.