Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Quem tudo quer, tudo perde


165. QUEM TUDO QUER, TUDO PERDE

Um homem muito rico, mercador famoso, teve um filho sómente, o qual se creou com tanto mimo, que já seu pae não podia com elle de travesso, e por querel-o então sujeitar com doctrina e castigo, o moço lhe fugiu e se foi. E passando lá muito trabalho, se passaram mais de vinte e cinco annos sem vir, nem mandar cartas suas, de maneira que alguns o tinham por morto. N'este tempo o mercador veiu a grande crecimento de fazenda, quintas, casas e outras herdades e chegando á velhice, no ultimo da vida fez seu solemne testamento: «Deixo por meu universal herdeiro ao mordomo de minha casa.» De tudo o que tinha fez inventario mui copioso, e no cabo disse: «Porém digo que tenho um filho, o qual ha muitos annos se foi d'esta terra contra minha vontade, e não sei de certeza se é vivo ou morto; se este meu filho fôr vivo e apparecer como eu desejo, quero que a quem ora deixo por meu testamenteiro e universal herdeiro d'esta minha fazenda lhe dê ao dito meu filho o que quizer, sem ser constrangido a outra cousa, e a demasia lhe fique.»

E d'esta maneira houve seu testamento por acabado, e d'esta enfermidade morreu. Soube-se sua morte na terra onde estava o filho, o qual ouvindo a morte de seu pae e da grossissima fazenda que deixou, partiu d'onde estava e veiu a sua casa; e entrou por ella como por casa propria, perguntando quem tinha aquella casa e fazenda. Foi-lhe dito quem e por que titulo; e elle disse quem era, e foi conhecido por velhos que foram criados de seu pae. O mordomo, que o ouviu e entendeu bem isto, lhe respondeu:

— Esta fazenda, ainda que ficou de vosso pae, é toda minha, e não tendes n'ella mais do que dar-vos eu o que eu quizer. Vêde o testamento de vosso pae, que elle vos desenganará, que vos não devo mais que dar-vos o que eu quizer.

E mostrou-lhe a verba do testamento, que o dizia assi á lettra, como já declaramos. E o mancebo lhe pedia que fizesse conta que eram irmãos e que partisse pelo meio o qual o mordomo não quiz. Visto isto, disse o mancebo:

— Ora, já que sois obrigado a dar-me alguma cousa, pois diz que me dareis o que vós quizerdes, pergunto, que é o que vós me quereis dar, pois meu pae o deixou em vosso alvedrio?

Respondeu que lhe daria como cinco mil cruzados, valendo a fazenda mais de cem mil. Rogaram ao mordomo que desse o que fosse honesto, elle nunca quiz vir em nenhum arresoado, pelo qual o demandou, e ambos vieram a juizo e ambos houveram o testamento por bom; porém dizia um, que seu pae o não podia desherdar sendo vivo, nem nunca tivera essa tenção. Dizia o mordomo:

— Já teu pae presumia que eras vivo, e para vivo mandou que te desse o que eu quizesse, e assi não sou obrigado a mais.

Sobre o caso houve libello, réplicas e o mais que em direito se costuma té rasoado final, que indo o feito concluso, como o caso era de tão grossa fazenda, quiz o rei da terra ser presente na determinação da sentença. Entre os mesmos julgadores havia differenças; porém um velho se levantou em pé e disse:

— Ora, Senhor, veja vossa alteza o testamento, que diz: Dará o mordomo ao filho o que elle mordomo quizer; portanto vós, mordomo, dae ao filho do mercador isto que vós quereis, e fique-vos para vós o que lhe daveis, porque a tenção do pae nunca foi desherdar o filho, mas por sustentar sua fazenda a fiou de vós. Para se cumprir o testamento é necessario dar-lhe o que vós quizerdes, e quizestes a maior parte, essa julgo que lhe deis, e fique-vos o que lhe daveis.

Elrey, e todos os que ali estavam presentes houveram o caso por muito bem julgado e approvaram a sentença, e assim se cumpriu.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte II, conto VIII.)




Variante:

«Como se conta de um homem, que tinha uma filha bastarda; quando veiu a hora da morte, fez um testamento e disse: — Leixo a foam por meu herdeiro, e mando que dê a minha filha pera seu casamento tudo aquillo que elle quizer de minha fazenda.

Crecida a moça, dava-lhe o herdeiro cem mil reaes para casamento, que era mui pouco: e sobre isso, vieram a juizo. Perguntando o juiz ao herdeiro quanto valia a fazenda e quanto dava á moça, respondeu: que valia um conto e que lhe dava cem mil reaes. Disse o juiz, logo vós quereis d'esta fazenda novecentos mil reaes? Respondeu o herdeiro, si. Pois segundo a verba do testamento (disse o juiz) vós havereis cem mil reaes, e a moça novecentos; porque ella hade haver aquillo que vós quereis da fazenda do testador, e esta foi a sua vontade, mas leixou a verba amphibologica por oulhardes milhor pola fazenda de sua filha, té ella ser em edade para casar. E d'estes exemplos ha muitos, de que os oraculos dos gentios usavam para enganar os seus devotos.

(João de Barros, Grammatica, p. 170. 1540.)




Notas editar

165. Quem tudo quer, tudo perde. — Acha-se na collecção italiana Il Novellino, conto X; passou a adaptar-se aos Jesuitas, e attribue-se a differentes personagens historicos. A fórma italiana vem em Nanuci, Manual della Letteratura, t. II, p. 65.