Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Santa Helena


76. SANTA HELENA

Havia um rei que era casado com uma senhora chamada D. Helena, que era muito boa de coração. Tinha o rei por costume ir passar o verão para uma villa, que se ia para lá por mar, mas era na mesma terra. Vae um fidalgo apostou com o rei que, quando viesse da viagem lhe havia de dizer os signaes da rainha, e se não os dissesse que perdia todos os seus bens.

Estava o rei quasi a chegar, mas o fidalgo não tinha ainda podido vêr os signaes que a rainha tinha no corpo, e andava muito afflicto porque perdia a aposta. Chegou-se uma velha a pedir-lhe esmola, e elle muito arrenegado disse que o deixasse. A velha insistiu mais:

— Conte-me o senhor o que tem, que eu arranjarei remedio para o seu mal.

O fidalgo contou-lhe tudo, e ella offereceu-se para ir a palacio e vêr os signaes da rainha. Foi e levou um canudo cheio de pulgas; chegou-se perto da rainha a pedir-lhe uma esmola; a rainha mandou-a entrar e como era muito caridosa, disse que dormisse ali aquella noite. A velha, quando todos estavam dormindo, foi á cama da rainha e despejou o canudo das pulgas, e foi para o quarto que lhe deram. Cheia de comichão a rainha tocou uma sineta e logo vieram todas as damas e aias do palacio, e no meio do barulho veiu tambem a velha, e viu emquanto catavam a rainha, que ella tinha um signal no peito. Pela manhã cedo foi ter com o fidalgo e contou-lhe tudo, e recebeu uma grande esmola. O fidalgo foi ao encontro do rei e lhe deu o signal de D. Helena; o rei ficou muito furioso, e quando chegou ao palacio, veiu a rainha abraçal-o, mas elle affastou-a, dizendo:

— Traidora, que me foste infiel!

Ella cahiu logo com um flato para nunca mais fallar; e o rei mandou fazer uma redoma de vidro, metteu-a dentro e foram-na deitar ao mar. A redoma foi ter á terra onde o rei costumava passar o verão, e os pescadores de lá a encontraram e trouxeram-na para a terra. Na palma da mão tinha escripto: Santa Helena. Fizeram-lhe uma ermida, onde guardaram a redoma. Vindo o rei áquelle logar, pediu para lhe contarem de quem era aquella redoma, e quando se chegou mais perto, conheceu logo que era sua esposa, e muito arrependido ali morreu deixando em lembrança que ninguem fizesse apostas.

(Ilha de S . Miguel — Açores.)




Notas editar

76. D. Helena. — A peripecia d'este conto, o signal no peito da rainha, acha-se na Cymbelina de Shakespeare, em um conto de Boccacio, e no poema da Edade media Gerart de Nevers.