Contos do Norte (Marques de Carvalho)/A neta da cabocla de Ourém

A NETA DA CABOCLA DE OURÉM

 

D’entre as raparigas que, ha dois annos, se divertiam nos agapes venusinos de Belém, distinguia-se, pela seductora graça de toda a sua pessôa, uma joven cabocla, de feições correctas e penetrantes, de irressistivel olhar, todo malicia e promessas de prazer. Chamavam-lhe os intimos — a Paquinha, pelo apimentado dos saracoteios, nas danças nacionaes.

Esta personagem viera para Belém alguns mezes antes. Seu passado, bem poucos o conheciam; sabia-se vagamente que, nascida em

Ourém, fôra creada pela avó, humilde tapuia cujo nome a chronica desdenhara registrar. Morrera-lhe a mãe ás poucas horas do puerperio difficil. Até á adolescencia, a vida tinha deslisado sem peripecias notaveis, na insipidez lacustre do logarejo. Um dia, porém, suas graças fascinaram o escrivão de um dos vapores da linha: — deixou-se a rapariga raptar, em triste madrugada de chuva. O seductor, passado o primeiro enlêvo, na capital, diminuiu os mantimentos na dispensa; mas, a pretexto de ciumes, entrou de espancal-a com vigor. Por um momento, resignou-se a neta da cabocla de Ourém; todavia, foi curta a passiva submissão. Lembrou-se dos mimos perdidos, no carinhoso lar da avó e fugiu da casa do embarcadiço, disposta a voltar para junto da velhinha.

Na rua, teve a impressão de achar-se n’um labyrintho: era a primeira vez que sahia, em tamanho povoado; a casaria chegou a fazer-lhe medo, perdeu o geito de andar: lagrymas fluiram-lhe dos grandes olhos negros, desconsoladamente. Ao quebrar uma esquina, esbarrou em apressado transeunte, pediu-lhe orientação para o caminho do porto. Acolhida com sympathia, contou-lhe a sua curta historia; n’aquella noite, jantou bem, bebeu champagne pela vez primeira — e resolveu ficar na cidade.

O convivio com este novo amante durou apenas uma semana: pobres ambos, que tinham a lucrar na associação de duas miserias? Mudou-se para um hotel.

Em poucos dias, tornou-se conhecidissima. A ingenuidade natural dos seus modos, a lhaneza dos ademanes, a propria incorrecção com que se expressava, constituiam outros tantos aperitivos da concupiscencia de seus protectores. Conquistar-lhe as preferencias, um bom sorriso, ao menos, era afan em que se empenhavam dois terços da população viril de Belém. Tenham paciencia os dissimulados paes de familia; aqui lhes delato a fraqueza: muitos dos que me lêm, andaram com o espirito captivo de extranha preoccupação, por causa da heroina d’este conto. E não poucos commendadores, dos mais adiposos e conspicuos, tiveram noitadas de insomnia, flatulencias insidiosas, — ruminando a reluctancia da moça em acceitar-lhes as tentadoras propostas. Paquinha comprazia-se menos em viciosas intimidades do que no revoluteio das valsas; e a inebriante effervescencia de uma taça de champagne, em jucundo banquete, offerecia-lhe maior attracção do que as promessas de installações do luxo, que por experiencia sabia dever serem sempre ephemeras, tão fugidio é o capricho dos homens.

Por causa d’esta anomalia, tinha frequentes discussões com as amigas, pessoas praticas, absolutamente divorciadas do seu modo de encarar a vida. Choviam-lhe nos ouvidos os mais ponderaveis conselhos: — que não fôsse tola em desprezar com leviandade os ensejos de fazer-se independente, para preferir adoradores adventicios, optimos rapazes, é certo, porém cujos recursos não poderiam bastar ás exigencias do seu trato. Encolhia a hetaira os bellos, roliços hombros morenos. Ella era assim mesmo: fôssem lá contrafazer-lhe a natureza! E novas razões brotavam ainda á flôr dos labios das solicitas conselheiras e já ella, gingando, a pensar no baile proximo, cantarolava uma copla de modinha, na suprema lascivia de sua juvenil formosura.

Tal era a neta da cabocla de Ourém.

Similhante despreoccupação, entretanto, devia de achar um termo. Paquinha, um dia, amou. Despertando, manhã alta, no amplo,

macio leito do seu excellente chálet, á estrada São Jeronymo, foi com uma pontinha de descontentamento que verificou a ausencia de Julio, o seu companheiro da vespera. Porque, esse dissabor, se o mancebo ficara de partir pela madrugada, sem a accordar? Nem ella propria, ao principio, soube definir bem o traiçoeiro mal-estar; e apenas quando lhe notou a insidia, foi que desconfiou do novo sentimento, esboçado por uma saudade melancholica.

Ergueu-se contrariada, de mau humor. Nem mesmo o banho, saturado d’ervas cheirosas, conseguiu tranquillizar-lhe os nervos. Almoçou pouco e, em toda a tarde, conservou-se reclusa, auscultando a alma. De um natural ingenuo, admirava-se da surpresa d’aquelle affecto incipiente. Discutiu probabilidades de outras causas, — ainda inclinada a não attribuir a uma origem passional a sua preoccupação. Mas atraz de quantos argumentos a volição lhe inspirasse, via sempre o perfil do mancebo que a impressionara, — sorridente perfil, cujo maior encanto residia, certo, n’um ar de meiguice e ternura, que não estava acostumada a ver no rosto, simplesmente luxurioso, de seus habituaes convivas. Sentiu como se no palacio dos seus sonhos se houvesse rasgado uma grande janella, toda ornada de flôres odoriferas. Por lá entrava a luz, a bemdita luz de um sol de felicidade; e entravam tambem auras bemfazejas, varrendo-lhe o intimo do coração. Á rapariga, então, acudiam aspirações novas, uma ancia, até ali desconhecida, empós do idéal, — tudo mal definido ainda, porém já pregosado com intima volupia. Como era bom aquillo, apezar de dar-lhe um todo-nada de incomprehensivel soffrimento moral! Seria isso o amor?

Quando anoiteceu, tornou ao banheiro, para a copiosa ablução vesperal. Jorrando na larga piscina de marmore, a agua cantava branda melopéa, que fazia pensar nas yaras. Frascos de vinagres caros aromatizavam de essencias o ar humido. E o amplo espelho do fundo, — a um canto do qual De Angelis, o pintor sacro-mundano, traçara, com o seu pincel malicioso, uma adoravel nudez de caboclinha com feições de archanjo, — expandia a polida superficie, como n’um enorme bocejo de impaciencia, á espera d’ess’outra nudez animada, que estava para vir confiar-lhe as suas mais capitosas intimidades.

Despiu-se Paquinha, qual um automato. As mãos, errantes, desabotoavam e deslaçavam, sem segurança; o espirito, alheado, vagava longe, contornando de osculos mentaes a imagem ausente de Julio. Só a sensação da agua fria trouxe Paquinha á realidade. Com certeza, amava ao rapaz. E, alfim convencida, disposta tambem a conquistal-o, entregou-se, com redobrada attenção, ao preparo de todos os artificios da galanteria feminil. O espelho, deante do qual, ao sahir do banho, patenteou o corpo inteiro, n’um brando arrepio mádido, mostrava-lhe com fidelidade os requintes da mais triumphante belleza. Pois era preciso realçar taes dotes, empregal-os com arte, com uma ascendencia discreta, para a realização da conquista projectada. E, n’um derradeiro olhar, satisfeito, ás proprias fórmas, — olhar encerrando beijos, — Paquinha teve a convicção da victoria próxima.

Em pouco tempo, quanta mudança n’essa mulher, já tão diversa da primitiva neta da cabocla de Ourém!

A seducção começou n’aquella mesma noite, no baile da Rapioca. Ao magote de mancebos que affluira á porta da sala, a solicitar valsas e polkas, respondeu ella,

sorrindo, estar já compromettida «para todas as danças». E logo, com uma leve anciedade, os negros olhos tentadores de Paquinha perscrutaram o aposento, procurando Julio.

Lá não estava o rapaz. Se tinha vindo? perguntou a um janota. Ante a resposta negativa, pulou-lhe um sobresalto no coração, como se algo lhe faltasse de subito na integridade da existencia moral.

Tornou-se notada a preocupação da rapariga, doidivanas proclamada em todos os festivaes de Cythera. Não houve galanterio de admiradores que a distrahisse da tristeza em que mergulhara. Nem os mais requebrados maxixes conseguiram chamal-a ao salão de baile. Pedidos, supplicas, ardentes appellos ao seu primitivo enthusiasmo choreographico, tudo foi impotente.

— Que terá hoje a Paquinha? perguntavam uns aos outros os moços, intrigados. — Partes! diziam as demais mulheres, com sarcasmo.

Breve, porém, houve a explicação do caso. Julio acabava de chegar; a um chamado da tentadora tapuia, enlaçou-a n’um orgulho, e o bello par fez irrupção na sala, rodopiando ao som de um boston.

— Ah! disse em côro quasi toda a assistencia, comprehendendo.

— Temos novidade! exclamou um velhote careca, de barba ponteaguda e olhinhos amendoados.

— Paixão, disque! motejou uma valsista esgrouviada.

Emtanto, Julio e Paquinha deslizavam com subida elegancia, ao rythmo da musica, falando baixo, no aconchego de intensa ventura.

Terminada a valsa, a rapariga conduziu o cavalheiro para uma janella da ante-sala. Na altura do sobrado, que sobrepujava os predios adjacentes, brisas suavissimas corriam sob a luz serena do luar. Uma ternura sem limites dilatou-lhe a alma enamorada. E ali,

no afastamento, ao som d’um preludio de quadrilha, Paquinha tomou uma das mãos de Julio e segredou, com a emoção a sacudir-lhe a voz:

— Se eu te amasse?...

Estava o moço muito longe de prever similhante pergunta. De surpresa foi a primeira impressão. Logo, porém, sorriu — jubilo ou ironia? — e exclamou:

— Serias a mais justa e misericordiosa creatura da terra, meu amor!

— Vamo’-nos, então, repoz a caboclinha, sempre a meia-voz, gravemente.

Descendo a escada, Paquinha levava o coração repleto de alegria. Seu rosto, transmudado pelo contentamento, exprimia deliciosas impressões. Era ella quem seguia adeante, agarrada á mão direita do rapaz, com um ar de triumpho, que lhe duplicava a belleza. Julio constituia a sua presa, — a presa da alma apaixonada. Como era bom amar e ser amada! Quando o mancebo accordou, na manhã seguinte, poderia attestar que a suprema delicia é privilegio da vida terrena. D’aquella noite datou uma existencia encantadora para ambos, no poetico chálet. Todos os momentos que as occupações lhe davam de folga, passava-os Julio ao lado da amante, n’um connubio que offerecia seducções paradisiacas.

O joven par desappareceu das agglomerações, isolou-se, para melhor fruir o arroubo de uma prolongada intimidade sem testemunhas. Viveram ambos as mais agradaveis horas que aos mortaes é dado gosar, — na tranquillidade do ninho perfumoso, sem ambições além do proprio amor, em mutua adoração. Descobria cada qual que o outro possuia inestimaveis meritos e, com uma surpresa ingenua, confessavam reciprocamente que a mais perfeita paridade de caracteres predestinava-os para uma eterna comprehensão bemaventurada.

Era de vel-os, unidinhos e amorosos,

nas doces noitadas de paixão, quando a innata phantasia romantica os encaminhava para a farfalhante penumbra do caramanchel, no jardim! Jasmineiros e eloendros desabotoavam as redolentes flôres, que choviam como bençãos do céu propicio sobre o enlace do joven par. Maior felicidade não podera Julio exigir na terra.

O primeiro mez de tal cohabitação foi, deveras, o mais afortunado que jamais passou a neta da cabocla de Ourém.

Ao começar, porém, do segundo mez, entrou o amante de ser mais demorado nas excursões ao centro da cidade. Desculpava-se com a exigencia dos negocios, — difficuldades imprevistas, que cumpria vencer á força de diligencias pessoaes. Apaixonada em extremo,

Paquinha acreditava n’estas razões, tanto mais quanto Julio, sempre delicado, nenhuma differença sensivel apresentava no modo de a tratar.

Não obstante, passageiras distracções alheavam, ás vezes, o espirito do rapaz. Tinha, em certos momentos, um como atrazo da memoria, demoras em responder á companheira; esforçava-se, com remorsos, com pena da victima, por vencer a preoccupação que traiçoeiramente o empolgava, mesmo nas horas de intimos devaneios, nos braços da caboclinha. Mau grado a energia com que luctava por afastar de si extranhos pensamentos, — a idéa de outrem, a lembrança d’uma creatura idealmente loira e divinamente bella, entrevista algumas tardes antes, apoderava-se-lhe dos sentidos, com persistencia. E em pouco tempo, a intrusa estabeleceu-lhe na mente absoluto predominio. Foi uma obsidiação desesperadora. Quando, á força de reagir contra a capitulação involuntaria, buscava nos amplexos da cabocla attracções que suppunha efficazes, a contragosto entrecerrava as palpebras e affigurava-se-lhe então que desapparecera d’ali a meiga Paquinha, já gosada e por demais conhecida. Julgava realmente possuir entre os braços a extrangeira, a outra, aquella de nome desconhecido até, porém que elle adivinhava deliciosamente bôa para ser assim estreitada com ternura e com frenesi amada.

O phenomeno havia de ser descoberto, mais cedo ou mais tarde. Paquinha presentiu-o, advinhou-o mais do que o percebera. Surprehendeu-o de uma feita que o moço, colhido por ella com os braços enlaçantes, fizera ligeiro movimento para furtar-lhe a bôcca á pressão dos rôxos labios sensuaes. Quê! repugnavam-lhe os beijos da amante! Retirou-se de junto d’elle a filha do sertão, dissimulando a pungitiva surpresa. A alcôva, a mansão aromatica e discreta onde tamanhas venturas desfructara, acolheu por todo esse longo dia a lacrymosa hetaira.

N’um momento, desvendou-se-lhe a realidade aos olhos da alma angustiada: era o tédio, o enfaro que vencera o companheiro estremecido! Que lhe fizera ella, entretanto, para tornar-se-lhe menos interessante? Pois não tinha sempre os mesmos carinhos dos primitivos tempos, a completa dedicação que se requer entre seres ligados para a vida definitiva? Passou em revista o seu modo de proceder, as phrases das mais pequenas conversas, seus gestos, por insignificantes que fôssem. Com desespero, interpellou a consciencia e esta mostrou-se tranquilla, convicta do dever cumprido. Não atinava com a razão de tal mudança; bondosa de mais, só a si mesma imputava a causa da molesta transição. Desnudou-se ante o largo espelho do guarda-roupa e, examinando o proprio corpo com olhares imparciaes, como se fôssem os de outra pessôa, encontrou-se correctissima de fórmas, seductora de juventude e belleza. D’aquelle corpo, que poucos haviam possuido, que encantos lhe recusara ella? Esta interrogação avultou entre todas, sobrelevando-as. Linha d’elle não havia que lhe não tivesse sido offertada em holocausto, aos cariciosos contactos dos labios sussurrantes de osculos, nos immortaes momentos de voluptuosa vesania. Todo o seu formoso sêr, tão appetitoso como um fructo equatorial, fôra-lhe dado sem complicados pudores, no incondicional sacrificio de immenso amor, sincero e simples. Tambem havia-lhe sido fiel, como as mais puras mulheres, e docemente respeitosa, e patriciamente digna, em todas as relações fóra dos ambitos da alcova. Que mais desejava Julio?

Chorando sempre, arrependeu-se quasi de lhe não ter poupado a visão completa da sua pessoa. Segredos supremos, se os houvesse guardado, como avára, poderia agora descobrir-lh’os e com elles talvez conseguisse reconquistar o imperio que previa já perdido para sempre... para sempre...

Um desconsolo constringiu-lhe a garganta, com amargura. E o pranto, que então verteu, foi o mais sentido com que já regara o seu infortunio a neta da cabocla de Ourém.

Não eram essas as derradeiras lagrymas que Paquinha havia de chorar, baptizando o seu desventurado amor. Tinha de resgatar com outras provações mais pungentes a anterior volubilidade, o desprezo a que votara as legiões de adoradores, alfim vingados por Julio.

Logo depois da fatal desillusão, quiz tentar captival-o de novo, rehaver o primitivo dominio na

alma do mancebo. Fez-se então humilde, muito humilde, quasi servil, — requintando a meiguice dos affagos no anceio de conservar-lhe a affeição e achando ainda ineffaveis carinhos no inextinguivel thesoiro da sua alma attribulada. Quasi não falava, temendo chocal-o por alguma phrase menos justa, ou de duplo sentido; mas toda a eloquencia das doces expressões saltava-lhe dos olhos, em vivos lampejos enamorados. Tudo inutil, ai! Esta mesma passividade, a que o rapaz ficara indifferente ao principio, chegou depois a irrital-o; e, d’uma feita, ao cabo de longo silencio de apaixonada contemplação da amante, ergueu-se elle, exclamando:

— Que diabo tens tu, mulher? Pareces uma lesma! Arre!

E, tomando o chapéu, foi-se para a rua.

Não voltou á tarde. Toda a noite, esperou-o Paquinha debalde. Cada bond que subia da cidade trazia na coloração dos pharoes fulgores da esperança d’aquella creatura; mas tambem levava a sua angustia mais negra quando ultrapassava a porta do jardim, afastando estrada a fóra o arruido das rodas. O insondavel tormento durou ainda no outro dia. Só á tarde, parou um carro á porta. Correu Paquinha a receber o amante, — que outrem não esperava ella, prestes a perdoar tudo a troco de um beijo compassivo. Surgiu-lhe deante o cocheiro, extendendo uma carta. Em dez linhas, Julio despedia-se da rapariga, allegando ter notado que a sua companhia, d’elle, já lhe não offerecia encantos!

Foi esta ferina evasiva que mais doeu na alma de Paquinha. Nem um só momento pensou em dissuadir Julio, cuja perversidade, assim tão cruamente cynica, chegou quasi a revoltal-a. Que o desengano era definitivo, sem remissão, comprehendeu-o logo; mas o seu amor-proprio, de tal arte aviltado, teve a força de suffocar o sentimento do abandono. E a cabocla chorou então de raiva, — porque as lagrymas do amor incomprehendido tinham sido todas derramadas quando ella ainda pensava existir no moço uma alma digna de possuir-lhe a immensa paixão.

No dia seguinte, cedo, Paquinha mandou chamar um leiloeiro e vendeu-lhe os moveis pela quinta parte do real valor. Horas depois, vestida com simplicidade, levando n’uma só mala as poucas roupas preferidas, seguia para Ourém, — n’uma lancha fretada, com importante agio, pelo mesmo comprador das alfaias.

Quando a embarcação deu as primeiras voltas de helice, — a joven tapuia, sentada á pôpa, envolveu a cidade n’um longo, inexprimivel olhar de odio. Descendo por traz da ilha das Onças, o sol rutilava, magnifico; e os milhares de vidraças, pelas janellas da casaria, no littoral, como que retribuiram-lhe esse olhar n’uma deslumbrante reverberação incendida. Mas Paquinha volvera as pupillas para o alto, para o nascente e viu que o ceu, d’uma serenidade auspiciosa, arredondava a pureza da sua cupula toda azul, misericordiosamente, sobre a terra e sobre as aguas.

Cabocla, — supersticiosa. Paquinha inferiu gratos augurios d’esse tranquillo aspecto do espaço. Se o nascente assim promissor estava, porque não havia ella de tornar a crer no futuro e esperar o almejado socego para a sua pequenina alma dolorida, cuidando dos derradeiros dias da mãe de sua mãe? A esperança do amor trouxera-a um dia, aguas abaixo; restituia-a o amor da esperança no bem-estar da consciencia.

Foi com taes sentimentos que regressou ao lar da saudosa avó, na insipidez lacustre do logarejo paraense, a neta da cabocla de Ourém.