Contos do Norte (Marques de Carvalho)/O banho da tapuia

O BANHO DA TAPUIA

 
Clareara ha pouco a manhã e o dia annunciava-se formoso, na serena pompa das galas equatoriaes. Todo o céu escancarava a limpidez da abobada de turqueza, á espera do sol. Tenue viração suspirava nas ramarias do matto, d’onde vinham o papaguear dos periquitos, arrulhos de rôlas, trinados de aves invisiveis. Pela praia arenosa, as garças, poisadas sobre folhagens rasteiras, similhavam grandes, extranhas flôres de immaculada alvura. E rente á agua, atravessando o rio caudaloso,

um bando de marrecas desdobrava a escura fita do seu vôo compassado, quasi de margem a margem.

No alto da ribanceira, ao fim do caminho do sitio, entre dunas verdejantes de ajurús, appareceu Hortencia, a joven tapuia. Vinha estremunhada ainda. Nas palpebras, que longos cilios ensombravam, demoravam-se preguiças de somno. A humida polpa dos labios tinha esboços de bocejos. O farto cabello, preso pelo pente de tartaruga ao alto da cabecinha doidivanas, a custo se fixava ali, não tão bem que, rebelde, não formasse dos dois lados da nuca, sobre os hombros, pesadas quedas sedosas.

Deteve-se a rapariga, mordiscando folhas silvestres. Seu olhar devassou o listrão serpeante do rio deserto de embarcações e foi-se para o alto, a mirar o nascente enrubescido. Mas a frescura da riba fustigou-lhe os tenros membros mal vestidos pelo saiote curto e pela camisinha branca, de rendado decote. Estremeceu Hortencia n’um arrepio e, alongando os braços, gemeu voluptuosa no derradeiro espreguiçamento matinal. E, já deslaçando o cós da saia, desceu a correr para a agua, pregosando a delicia do banho.

Minutos depois, caíndo pelos quadris a camisinha cheirosa, Venus tapuia ostentava na claridade da manhã o encanto irresistivel da sua juventude, a triumphal perfeição da sua nudez.

No mattagal, houve como um redobramento de canto de passarinhos, ao tempo que o sol, vencendo a floresta, mordia com a tepidez dos primeiros raios as carnes morenas de Hortencia. Chapinharam os pequeninos pés; a frialdade liquida provocou brandos offêgos: começara o banho da tapuia.
Demorado tempo esteve a rapariga dentro da agua. Quem póde resistir á tentação d’um banho ao ar livre, na costa marajoara, pela manhã? Já o sol, aguçando os quentes dardos, vencêra larga distancia pelo espaço. A ella, porém, pouco importavam os insidiosos ataques do astro. Sem parar um momento, ora percorria consideraveis extensões a nado, á flôr do rio, ora caprichava em experimentar o proprio fôlego, com aturados mergulhos. Quando emergia a formosa cabeça atraz da qual a correnteza espalhava a negra cabelleira, tinha nos olhos uma jucunda expressão de gaudio, tentadoramente. Ali estava uma das mais requestadas mulheres de Soure, ignorante dos proprios meritos, apenas interessada no desfructe das sensações de bem-estar

proporcionadas pela immersão no rio. No entanto, descrer da existencia das sereias amazonicas certo não poderia quem a visse então, no banho, erguendo sobre a superficie das aguas o bronzeado busto palpitante, de que se destacavam, n’uma seducção vertiginosa, as linhas correctissimas dos pequenos seios virginaes.

Taes eram, por certo, as reflexões que tambem estava a fazer, mirando-a, o negro Manoel, por entre as folhagens que limitam o areial da praia. Filho de africanos, enamorado, atrevera-se a amar Hortencia. Feio e boçal, bem comprehendera a impossibilidade d’esta paixão pela creatura que tantas vezes repudiara varonis caboclos das fazendas e até dengosos brancos da cidade. Mas o que não pudera evitar e ninguem no mundo conseguiria impedil-o, era essa quotidiana emboscada, para a ver no banho. Cada dia, não trinavam ainda os primeiros pipillos dos passaros, já elle estava entre os monticulos de areia, agachado na verdura, á espera da tapuia. Enxergal-a núa, era o seu goso suprêmo. Não lhe perdia um gesto; nem uma só linha d’aquelle corpo desejado deixava de ser perscrutado, beijado, deflorado pela sua lascivia de hottentote. Concentrava nos olhos todos os arrancos d’um vigoroso anceio de posse. Os appetites libidinosos da sua raça ferviam-lhe no peito, á vista da rapariga. Entretanto, jamais ousara sair-lhe ao encontro. É que o receio de uma repulsa quasi certa e a consequente descoberta do seu criminoso recurso, detinham-lhe o atrevimento, limitando-o hoje á mesma observação inerte de muitos mezes antes. E quem o divisasse mais de uma vez ali parado perante a conturbativa visão, diria erroneamente que, á força de a admirar com respeito, o negro alfim depurara os desejos, transmudando-os em culto á belleza incoercivel.
O momento, porém, que elle, o africano sordido, mais prezava, era aquelle em que Hortencia, saindo da agua, vinha seccar aos toques da brisa a nudez amena do corpo. Eil-a justamente que náda para a beira, fatigada emfim dos prolongados brincos. Já tomou pé e a pouco e pouco vêm apparecendo os braços, o busto com os seios e a doce curva abdominal, os quadris salientes, as roliças pernas, toda a perfeição de linhas feminis; já palmilha sobre a areia, que lhe cobre os pés como com um par de sandalias de missanguinhas brilhantes. E agora, o mádido corpo fica erecto aos beijos do vento, emquanto os longos cabellos pendem sobre as costas, gottejantes. É esta a feroz allucinação do negro. Toda a formosura da virgem ali está patente á sua vista, na

magestade do quadro paraense, saudado pelo trinar das aves. Bastar-lhe-ia dar alguns passos, reflecte, e extender as mãos, para alcançar e possuir tamanha perfeição. Detém-n’o, comtudo, o receio de trahir-se. E o medo de perder a posse mental da tapuia que o inhibe de saltar para junto d’ella, bramando como caprípede silvano.

Innocente e tranquilla, sem desconfiar da luxuriosa surpresa, a banhista, n’um gesto peculiar, que desvenda o emocionante emmaranhamento das axillas, toma os cabellos, torce-os á direita, exgottando-os e os ennastra em trança farta, que prende sobre a cabeça. Veste depois a camisa, passando por ultimo a sáia de riscado azul. E ainda amarrando-lhe o cós, dirige-se cantando por entre as dunas cobertas de ajurús, até ao caminho que leva ao sitio.

Só então, o negro Manoel sae do mattagal, corre á praia, ao ponto onde, momentos antes, estivera a tapuia. Tem os olhos injectados de sangue, os labios entreabertos: arqueja. O rosto, coberto de ralos pellos que se juntam em ponta bipartida sobre o mento, é bem o de um fauno espicaçado pela animalidade da bérra. Revolve-se no chão, gemendo em ancioso deliquio de erotomano. E, para acalmar o vehemente anhelo insatisfeito, espoja-se, crava os dentes no solo, — esfrega as faces e a fronte no logar onde a agua, escorrendo do corpo da rapariga, tinha ensopado a areia, enchendo-a de frescura.

Do seio da matta, sóbe, expirando á distancia, o canto jovial da tapuia; e ali perto, qual ironia da floresta, uma ave sibila persistente a escarninha palavra que lhe deu o nome:

— Bemtevi!