REPRESALIAS

 

Não muito distante de Salinas, a dois passos do mar, — o caboclo Antonio edificara a sua palhoça. A areia das dunas extendia-se-lhe á porta, corria em declive para a agua, formando alaranjado estendal, da côr da madresylva morena.

Mas a floresta, que entestava com a habitação, ensombrava todo o recinto. Galhos seculares espalhavam-se em docel por cima do ubim do tecto. Ali, quando o vento do largo sacudia o arvoredo, em noites de plenílunio, o

canto do sabiá tinha modulações saudosissimas, como se fôra cantilena de creanças.

Maré cheia, poucos passos separavam a porta da cabana do logar onde a areia sorvia o rendilhado das escumas. E do copiar do Antonio ouvia-se então perfeitamente o embate do marulho no flanco da canôa atada ao velho poste de acapú, que uma cruz rematava.

Havia muito que ali habitavam Antonio e o filho. Elles proprios tinham construido a casa de sapé, com os recursos encontrados na matta. D’antes, moravam em Salinas, onde o caboclo era pescador e dos mais afreguezados.

Um drama terrivel, porém, induzira-os a deixar a localidade, procurando no silencio e isolamento da costa despovoada o consolo de uma grande dôr commum.

Uma tarde de temporal, a companheira de Antonio tivera a velleidade de tomar banho no oceano. Montanhas de agua corriam do largo, urravam furiosas ao chegar á praia, no desespero com que rebentavam na areia. O ceu todo estava negro, acolchoado de nuvens: coriscos fuzilavam incessantemente e a chuva, levada pela ventania, transformava-se em nevoeiro subtil e frio.

Vizinhos, que tinham visto a mulher encaminhar-se para o mar, perguntaram-lhe se estava louca. Ella, porém, dissera que velhos amigos não brigam.

— E sei nadar muito bem, concluiu, senhora de si propria.

Equivocara-se. Comquanto não se afastasse senão uns quarenta ou cincoenta metros, uma onda maior enlaçou-a fragorosa, suspendeu-a como um argueiro, levou-a para longe. De terra viram-n’a erguida na crista da vaga. Debatia-se valente, bracejava com energia, em direcção á praia.

Mas um grito resoou no grupo de espectadores transidos. Antonio, palpitante de pavor, apontava para o mar. Ao longe, em direcção á cabocla, levantara-se outra onda enorme, que vinha correndo vertiginosamente. Comprehendeu-o a rapariga: redobrou de esforços, afim de alcançar o littoral antes que a formidavel serrania d’agua a envolvesse.

Esta, no entanto, corria célere, cachoeirando. E, n’um momento, alcançou a infeliz, arrastou-a para a praia, onde rebentou n’um estrepito medonho.

Toda a gente, que a curiosidade fizera acercar-se até á agua, tinha fugido, gritando desesperada. Ao voltarem-se, quebrara-se a vaga. Mas a pobre cabocla fôra cuspida na areia com violencia, jazia morta, o peito pisado, um fio de sangue escorrendo da bocca entreaberta.

Correu Antonio a tiral-a para a terra, beijando-a com frenesi. Não podia crer que houvesse morrido

a mãe do seu filho. Quando, após instantes de vãos esforços para a reanimar, comprehendeu afinal a terrivel desgraça, escapou-se-lhe do peito um grito rouco de angustia e o desgraçado desmaiou, caindo de bruços sobre o cadaver.

Teve o caboclo profundo sentimento. E não perdoou ao mar, — ao mar que elle tanto amara, — a infidelidade inesperada, a incrivel e covarde traição.

Reuniu os amigos, enterrou o cadaver no cemiterio da villa. Quando passava o feretro na praia, ao dia seguinte, ainda o mar sacudia as vagas alterosas, sob o ceu pardacento.

Regressando a casa, tomara Antonio a resolução de retirar-se de Salinas. Assim fez, de facto: em menos de uma semana vendeu os poucos moveis, entrouxou a roupa,

alguns objectos necessarios á alimentação e uma espingarda; e, embarcando na canôa com o filho, levantou ferro, içou a vela e partiu.

Nem elle mesmo sabia para onde devera ir. Deixou-se levar pelo vento, prolongando a costa. Ao cahir da tarde, como avistasse uma enseada, aportou; — saltaram a terra.

Essa noite, dormiram-n’a ao ar livre. Mas o caboclo, deixando a embarcação, fechara o punho erguido, proferindo uma ameaça ao mar. Rompera este o pacto tacito que entre ambos existira, roubara-lhe a companheira idolatrada. Pois ali mesmo jurava, invocando o testemunho das estrellas e a memoria da inolvidavel ausente, — que havia de vingar-se. Elle e o filho nada mais fariam do que investigar o horisonte, buscando surprehender qualquer signal, pedindo soccorro, das embarcações que naufragassem. E haviam de roubar ao mar tantas quantas victimas podessem, — tantas vidas quantas eram as penas que lhes ralavam o coração. Essa seria a vingança d’um marido e d’um filho inconsolaveis.

Annos fazia que ali moravam, na casa por elles proprios construida com os materiaes tirados á floresta proxima. Cada noite, vinham para fóra, extendiam-se na areia, silenciosos e pensativos, esquadrinhando o largo com o olhar affeito á escuridão.

Desesperava-os, entretanto, a monotonia da existencia. Parece que a sorte zombava-lhes das intenções. Jamais haviam podido realizar o intento da primeira victoria, — o almejado triumpho, que embriagasse como a cachaça. Calmo ordinariamente, o mar enorme tinha uma impassibilidade irritante.

Barcos de pescadores deslisavam ao longe, similhavam grandes gaivotas brancas, esfrolando a vaga com as azas. Vapores passavam também, ora os costeiros, ora os vastos paquetes do sul: — uma navegação precisa, em dias determinados, quasi á mesma hora.

Uma noite, porém, a tempestade, que desde a tardinha ribombara ao longe, approximou-se dominadoramente.

A cabana dos caboclos era a cada instante illuminada pelo clarão dos relampagos, estremecia na vibração de cavernosos trovões.

A espaços, segundos após uma fulguração mais accentuada, retinia o raio, na matta vizinha. E os dois irreconciliaveis inimigos do oceano entreolhavam-se mudos,

com uma pequena chamma de esperança rebrilhando ao fundo das pupillas irrequietas. Seria aquella a noite reservada para a satisfacção da primeira desforra? O coração dizia-lhes que sim.

De subito, no silencio relativo que se estabelecera entre um relampago e um trovão, pareceu a Antonio ouvir um grito longinquo, — som quasi imperceptivel, talvez phantasia do seu vehemente desejo.

— Não ouviste? perguntou baixinho, n’um offego.

O rapazito conservou-se calado, mas parecia prestar attenção.

— Ha de ser coruja, explicou ao cabo d’um instante.

Mas outro grito ouviu-se então, d’esta feita mais accentuado. Não havia duvida, alguém pedia soccorro.

— É obra! exclamou Antonio.

— Parêsque sim, disse o rapaz.

E, levantando-se, correram para fóra.

Ahi, a chuva caía violentamente. Negro o ceu, negro o mar, — tornavam-se a cada instante d’uma lividez violacea, com o lampejo dos relampagos. Ondas debatiam-se em tropel, vinham quebrar-se na praia com extranha furia. Mas os mais pavorosos estrondos eram os da insondavel floresta virgem, sinistro consorcio do cair da agua nas ramarias, do soluço dos galhos agitados e dos gritos indefinidos de toda a sorte de animaes surprehendidos pela tormenta, desalojados dos poisos, atacados nas tocas esconsas.

No primeiro momento, nada viram os dois caboclos; cegava-os deslumbradoramente o palpitar dos relampagos. Comtudo, seus olhos expertos breve triumpharam das trevas ululantes. E ao cabo de curta concentração, voltados

para o largo, enxergaram a pouca distancia da linha da agua um vulto negro, que ora subia a admiraveis alturas, ora desabava rapido ao seio de profundos valles movediços.

Novo grito, indistincto a quem não tivesse a pratica da vida maritima, scindiu o espaço, pedindo soccorro. Não havia hesitar. Antonio, impossibilitado de cruzar a vista com o filho, tomou-lhe um braço, apertou-o nervosamente. Comprehendeu-o o rapaz. Era aquella a hora da famosa represalia!

Atiraram-se os dois ao mar, despidas n’um momento as simples calças de dril azul, sem uma indecisão. Eil-os que nadam, com extraordinarios esforços, em direcção ao negro vulto oscillante além, á flôr das ondas indomaveis. Guia-os uma alegria enorme, — o enthusiasmo entôa risonhos hymnos ao fundo de suas almas singelas.

Para Antonio, esse é o momento da inebriante desforra. Vae vingar-se do oceano! Vae vingar-se do oceano!

— Coragem, curumim! grita ao filho, sem ser ouvido.

E nadam os dois, nadam corajosos, avançando com difficuldade, mas, apezar de tudo, avançando sempre.

Chegaram emfim ao ponto desejado. Era uma pequena canôa, fundeada sem duvida antes da tormenta.

Pae e filho saltaram para dentro da embarcação, quasi inteiramente alagada. Á pôpa, sobre o paneiro já tomado pela agua, estava um homem extendido.

Hirto, esperou um relampago e indicou por acenos — pois falar seria inutil esforço em meio áquelle barulho macabro dos elementos — que o mastro, partido pelo raio, caíra sobre elle, quebrando-lhe

uma perna. E á luz de outro relampago, demonstrou a desconfiança de que a embarcação estivesse prestes a sossobrar. Com effeito, a agua subia sempre.

Já Antonio tomara-o nos braços, colhendo-o de encontro ao coração. Firmou-o mais á esquerda, gritou-lhe ao ouvido que não fizesse o menor movimento e, galgando a borda, atirou-se ao mar, seguido do rapaz.

Eil-os agora que nadam jubilosa, difficultosamente para a costa. É ainda maior, se possivel, a alegria dos caboclos. Vingaram-se do inimigo, furtando-lhe uma prêza... Que ventura!

Não é tarde, entretanto, para o hymno definitivo do triumpho: o mar sabe disputar-lhes a victoria, porque, emquanto a tormenta, no seu auge agora, desencandeia pelo espaço uma estrepitosa arrogancia, o oceano sacode o negro dorso, incha alterosas serranias e atira-os á direita e á esquerda, como tabocas pôdres. Antonio é valente, Antonio conhece o valor do adversario, porém não o teme: bem maior é a gloria, n’essas condições de desegualdade de forças. Está fatigadissimo, que não é pequena façanha affrontar a furia das ondas, em occasião de temporal, trazendo nos braços um corpo humano. Mas a memoria da saudosa companheira perdida em identica situação é um consolo e uma animação. Essa bemdita memoria faz o milagre de o alentar mais efficazmente do que um bom trago de canna. E o forte caboclo, sem saber ao certo a que distancia da praia se encontra, sente-se de repente atirado sobre a areia, abraçado ao seu protegido.

Já está de pé, illeso. Fulge-lhe no peito illimitado contentamento. Sem olhar para traz, abaixa-se, toma nos braços a prêza roubada ao mar e parte a correr para a cabana, murmurando na ancia de precipitados offegos:

— Ven... ci, ca... na... lha!

Porém a lucta foi renhida e longa; mal atirou á sua propria rêde o corpo desmaiado do naufrago, caiu por terra, sem sentidos.

Voltando a si, ao amanhecer, Antonio levantou-se estremunhado. Após um esforço mental, — no primeiro instante de nada se recordara, — lembrou-se da lucta com o oceano e da sua victoriosa consequencia, a salvação de um homem. Este ahi estava, extendido na rêde, dormindo. Ouvia-o resonar compassadamente. Seu filho teria velado por ambos...

O caboclo percorreu com a vista o pequeno aposento, mais illuminado pelo indeciso alvor do que pela tenue luz da candeia de andiroba, bruxoleante. Onde estaria o pequeno? foi a interrogação que fez a si proprio. Havia de ter saido... Prestou attento ouvido aos murmurios

do exterior. Uma grande calma devera ter substituido o impeto desordenado da tormenta, porque o mar tinha agora ondulações regularissimas, denunciadas pelo prolongado arrastar das vagasinhas preguiçosas. A floresta jazia entorpecida, sem um silvo de passaro, como reconcentrada na volupia do grande banho da noite.

Demorados minutos quedou-se assim aquelle homem, immovel no solo, junto á rêde do desconhecido. Sua attenção, affeita á vida na costa, seguia, pelos arruidos que atravessavam as paredes da cabana, o vae-vem da onda socegada. Ao cabo de longo tempo de applicação, tornou a lembrar-se do filho, que não voltara. Teria ido arriscar um tiro por perto, no matto?...

Ergueu-se então Antonio, foi espreitar o rosto do naufrago, que dormia sempre, mergulhado n’um grande somno febril, com a perna assustadoramente inchada. Quando levantava a cabeça, Antonio fixou o olhar n’um ponto da parede e teve um calafrio: pendente de um prego, estava a espingarda e este facto arredava a hypothese de ter ido o pequeno á caça. Mas então, por onde andava elle?

Terrivel suspeita ergueu-se-lhe ao fundo do espirito, confrangendo-lhe o coração. Se tivesse morrido?... Era impossivel! O rapaz ia voltar, com certeza. Entretanto, não ficou tranquillo, embora tratasse de distrair-se, preparando um cigarro e apagando a candeia. Lá estava um pezar desassocegado, agachado no recondito do coração.

Veiu apressado para fóra. Seus olhos percorreram a praia, n’um relance: tudo deserto. Nas dunas mais proximas da floresta, a vegetação rasteira havia sido lavada e sorria na brandura do seu verde tenro. Á beira do matto, as grandes arvores retorciam immoveis os sombrios musculos nodosos, todos

embebidos d’agua. E no firmamento esfumado, poucas nuvens se destacavam, tingindo-se de côr de rosa.

Voltou-se Antonio para o mar. As aguas tinham um espreguiçamento suave. Do barco que naufragara á vespera nada mais se via: ou fôra a pique, ou o temporal o arrastara a qualquer ponto longinquo da costa.

Signal do rapaz absolutamente não havia. Na areia, banhada pela chuva até mui tarde, tinham-se desfeito as pegadas de Antonio, recolhendo com o naufrago. Mas então, se o filho tivesse dormido na cabana e só pela manhã saísse, o chão pisado de fresco havia de indicar a direcção por elle tomada. E a verificação de que o solo estava todo liso, por egual, foi concludente para o caboclo.

Duas lágrymas, ardentes quaes malaguetas, queimaram-lhe as palpebras e um soluço estrangulou-lhe na garganta a emissão de um improperio feroz. Ainda appellando para uma esperança fortuita, deitou o infeliz a correr ás tontas de um a outro lado, chamando o filho em grandes gritos. Respondiam-lhe os echos da floresta, demoradamente. E o oceano, sem perturbar-se, arrastava as ondas languidas, que formavam rendas espumosas, sobre a finissima areia da côr da madresylva morena.

A subitas, estarreceu o caboclo. Além, junto á linha da agua, muito distante do sitio onde se achava, lobrigaram seus olhos de pae um vulto extranho e logo o coração bradou-lhe que era o cadaver do curumim. Antonio poz-se a correr — a voar — para o sitio a que o presentimento o compellia.

Não é um pezar o que leva esse homem no coração: é um mundo de angustias, um turbilhão

de agonias. Ensopada, a areia facilita-lhe a carreira, pela resistencia que lhe offerece aos pés descalços. E cada pegada, um instante calcada no solo, fórma, bem depressa, uma pequena poça que reflecte na sua superficie, sobrepondo-os, o verde claro da vegetação das dunas e o rosado suavissimo das nuvens, tocadas de sol.

Uma distancia insignificante separa-o já do vulto que tão lugubremente o attrae. E o desgraçado reconhece logo o cadaver do filho.

Mais alguns passos vacillantes e Antonio cae a soluçar sobre o corpo da creança afogada. E o seu pranto, as lamentações que profere, têm menos a expressão de um desespero, do que da confissão da propria impotencia, na lucta inutil de represalias que havia travado com o oceano.