Contos do Norte (Marques de Carvalho)/Um exgottado

UM EXGOTTADO

 

O pobre Heitor foi levado á sepultura n’uma triste e chuvosa manhã de abril. Como não tivesse bens que deixassem aberta a possibilidade de um galanteio posthumo, nas folhas d’um testamento, acompanhou-o até Santa Isabel apenas o bom compadre Fernandes, o inestimavel enfermeiro nos poucos e longos dias de soffrimento.

O largo circulo de seus amigos eximiu-se do incommodo da viagem a bond, desculpando-se com o mau tempo, quando, mais tarde,

um ou outro defrontava com o paciente Fernandes.

Não obstante, aquelle infeliz fôra, na vida, um moirejador notavel. Toda a cidade conhecia-lhe o nome. Fizera-o á custa de muitos annos de improbo trabalho, n’uma repartição movimentada e importante. Quando fechava o serviço official, não era para casa que ia o Heitor: tomava o caminho do diario onde collaborava e que lhe devia grande parte de seus melhores exitos.

Quantas noites não passou elle em claro, n’uma superexcitação agridoce, obsidiado pela idéa d’um artigo sensacional, enthusiasmado por uma nova secção, enervado na improficua procura d’um termo proprio, d’um vocabulo justo, que exacta e completamente

interpretasse o seu pensamento!

Mas era mais do que um jornalista, o Heitor: era um litterato de vocação. Seu anhelo mais vehemente consistia na publicação d’um livro, novella ou contos, que fôsse a definitiva consagração do seu nome de escriptor. Muito joven, fizera nas lettras uma estréa banal, quando estudante. Lançara, como tantos, um manifesto politico em verso e commettera sonetos como toda a gente os perpetra, aos 20 annos. Porém depressa lhe disse o bom senso não serem os versos o seu forte e Heitor dedicou-se á prosa. Tivera, ao principio, um estylo guindado, quasi gongorico: influencia de Camillo Castello Branco, que o impressionara violentamente. Fez-se pesquizador de vocabulos raros e tentou remoçar, com honras de neologismos, termos venerandamente archaicos. Seu criterio, entretanto, aconselhou-o com brandura a emancipar-se de alheias influencias, a mostrar-se nú ao publico, sem artificios de linguagem. Foi-lhe salutar a propria observação: a fórma tornou-se mais simples, a expressão mais singela, a idéa mais clara.

Succedia que voltava alta noite do trabalho, fatigadissimo, os olhos avermelhados, o cerebro ôco e pesado; e, na vehemencia de seu amor ás lettras, assim mesmo sentava-se á mesa, a rabiscar tiras consecutivas, a esmo, com desespero.

Davam-se, então, alternadamente, grandes, desencontradas luctas n’aquelle espirito. Vinham-lhe ás vezes, á lembrança do exito de um livro novo, reviviscentes enthusiasmos. O clangoroso clarim da emulação retinia-lhe aos ouvidos, animadoramente. Sentia-se Heitor capaz de grandes commettimentos, fazia projectos e planos de romances, — uma edição de luxo, á Guillaume, com gravuras artisticas, executadas em Paris. Era um dos seus sonhos mais persistentes um livro amazonico, todo cheio de vinhetas com paizagens nossas, que interpretassem, nas linhas do desenho, as perspectivas que o texto havia de pintar ainda mais eloquentemente do que o lapis. Á idéa d’essas illustrações, seu espirito alcandorava-se em grandes esperanças. Todo o corpo vibrava-lhe de emoção artistica, pregosando os applausos incondicionaes de seus conterraneos.

E projectava d’uma assentada dois romances e tres ou quatro contos. Preparava-se para escrever, limpava a penna, dispunha meticulosamente o papel deante de si e... fitava o tecto, á espreita da primeira palavra, como se tivesse de agarral-a de surpresa; mas a phrase tornava-se arredia, occultava-se n’um borborinho de pensamentos e o tempo fugia, na desanimada esterilidade de Heitor.

Chegavam-lhe depois á memoria

as ruidosas ovações feitas a outros escriptores, a acceitação de seus livros, a popularidade de seus nomes em todo o paiz. Tentava, n’um esforço de energia, vencer a improductividade, forçar a idéa; tornava a molhar a penna, endireitava o papel: tudo era inutil. Estava escripto que nada poderia fazer.

Deitava-se então, n’um desanimo, soprava a luz; ficava na escuridão da sua soledade, os olhos escancarados, com um offego de raiva a seccar-lhe a guela. Era justamente isso a sua arrelia. Uma vez deitado, tinha, logo depois, a intelligencia lucidissima: organisava as idéas, formulava phrases mentalmente, alinhava periodos inteiros. E, n’uma crispação, conhecia — presentia — que, se escrevesse assim, teria garantido o agrado publico, que é o vestibulo da immortalidade para o escriptor. Saltava ás pressas para o chão, accendia a vela, atirava-se á mesa: — mas o encantamento quebrava-se, permanecendo ali apenas o homem de lettras impotente, o jornalista exgottado, o funccionario embrutecido, que longas horas de trabalho material impossibilitaram para as lucubrações artisticas. Vinham-lhe então vibrantes assomos de tremulas desesperações. Infeliz Heitor!

Uma feita, lembrou-se de buscar na historia antiga assumpto para uma novella. Naturalmente, o clarão deslumbrante da Grecia chamava-lhe a intelligente attenção e Heitor deliberou logo que a vida hellenica da éra premessianica seria a preferida da sua penna. Sem grande esforço, presentiu que série de quadros impressionadores poderiam inspirar-lhe os requintes d’aquella civilisação assombrosa, mesmo em suas

desabridas paixões carnaes, em seus vicios triumphantes. E que bellas perspectivas havia de esboçar, na phrase curta e incisiva a que insensivelmente affeiçoara-se-lhe o estylo!

Assumptos não lhe faltavam. Toda a serie de lendarias hetairas, — Thais, Sapho, Aspasia, — prestar-lhe-ia ensejo para admiraveis paginas. E sonhava então fazer obra nova, fazer obra sua, propriamente do seu cerebro. Queria divorciar-se de intenções preconcebidas, seguir trilha não arroteada ainda. Sua novella seria em todos os sentidos original, — que não fôssem imputar-lhe a pecha de imitador dos Flauberts, dos Anatoles France, dos Pierres Loüys.

Excellentemente educado, encontrara Heitor em consecutivas viagens optima occasião para illustrar-se. Seu espirito, em assumptos d’arte, possuia um admiravel senso esthetico, que a contemplação dos grandes trabalhos geniaes de todas as epochas havia creado e corrigido. Sonhara, de prompto, fazer illustrar o seu volume com silhuetas de Carlos Aguiar, paizagens de De Angelis e deliciosos molhos de flôres de Julieta França. Havia de enchel-o de illuminuras, deliciosamente. Seria um livro amoroso, toda a nudez do amor hellenico trescalando vivida volupia no texto e fulgurando em vinhetas, n’uma exuberancia de corpos juvenis, como harmonioso hymno á Forma immortal. E todas estas idéas vinham-lhe ao cerebro sem baixa concupiscencia, antes por enthusiasmo artistico, elevado e regenerador.

Entretanto, nada fazia. Quedava-se horas inteiras sentado á secretária, já pensativo, já distraido, rabiscando palavras ermas de senso, ao acaso. E que não havia modo de surprehender a idéa matriz, fundil-a na primeira phrase, definitiva e triumphal. Todos os periodos pareciam-lhe inserviveis, sem nervos. Tocava-os com a vista, sopesava-os com o espirito: eram expressões molles como enguias, que escorregavam-lhe dos sentidos e caíam n’uma laxidão para o olvido, seguidas da saudade dolorosa d’aquelle impotente sonhador.

Quando adoeceu, Heitor presentiu que estava tudo acabado. Ia morrer. Subiram-lhe então as lagrymas ás palpebras, rolaram pelas faces como pesadas, ardentes perolas em fusão: lamentava o passado, arrependia-se de tantos annos de transigencia com a inercia. Dizia-lhe a consciencia que era de sua culpa, se tão pequena bagagem litteraria legava á Amazonia, — embalde o infeliz, para desculpar-se a si proprio, estivesse no direito de invocar a absorvente tyrannia da existencia, a ingratidão universal. E, em poucos dias,

então, cobriu-se-lhe de cans a desgrenhada cabeça scismadora.

No instante em que expirou, esboçava Heitor um meio sorriso translucido: dir-se-ia estar a ver perpassarem ainda as frótas d’Alexandre, mar Jonio a fóra, ao som dos instrumentos musicos de cortezãs sagradas, erectas á prôa e á pôpa, adoravelmente nuas.