Contos do Norte (Marques de Carvalho)/Um caso da cabanada

UM CASO DA CABANADA

 
Pelo São João, fizera Maria trese annos; e os paes haviam decidido que a primeira communhão se realizasse no domingo de Paschoa do anno proximo, á missa da festa, na matriz da villa. Padre Constancio, o vigario, andava então a preparal-a, bondosamente. Todas as tardes, mal terminava a leitura de vesperas, no breviario, lá vinha elle azinhagas adeante, caminho da palhoça dos pescadores. Corria a pequena a recebel-o, pés descalços, curto o saiote, a face illuminada n’um sorriso. Sob

o cabeção de retalhos, duas pequenas proeminencias desenhavam-se, accentuadas em ponta, de cada lado do thorax. Mas o velho sacerdote, que esses dois delicados pólos parecia haverem um instante interessado, baixava os olhos com perfeita serenidade.

— Como vae essa força? inquiria prazenteiro.

Conversava um momento com o casal caboclo sobre assumptos insignificantes; depois, tranquilamente, vinha sentar-se á porta, ao pé do enorme tamarindeiro, sorvendo uma pitada. E começavam as praticas religiosas.

Maria escutava as explicações do catecismo, os olhos pregados na face do padre, n’essa fixidez conturbativa com que as donzellas innocentes encaram os homens.

Muito calmo, ia o vigario repetindo e commentando as phrases da Cartilha. Acompanhava-o a caboclinha, a meia voz, a seguir-lhe as palavras, n’uma grande concentração reveladora do ardente desejo de conquistar, com as boas graças do clerigo, os biscoitos que infallivelmente annunciavam o termo das prelecções. Depois, noite cerrada já, erguia-se Constancio, esvasiava o bolso da sotaina sobre a mesa do copiar e, com uma palavra amavel para cada qual, abençoava a rapariga e regressava ao povoado, aspirando novas pitadas. Dos dois lados do carreiro, grillos trillavam monotonamente e, por cima dos arbustos cheirosos, tremeluziam com irrequietas phosphorescencias os vagalumes.

Uma tarde, mezes depois, havia recolhido a procissão de Ramos. O adro da matriz regorgitava de gente endomingada. Toda a população seguira, ha pouco, o pallio venerando, cujas varas o juiz de direito, o presidente da

edilidade, o promotor e o delegado de policia empunhavam orgulhosamente.

Sabia-se já que rebentara na capital o movimento da cabanada. Canôas, tripuladas por valentes remadores, haviam trazido, com innumeros fugitivos, a nova da revolução tremenda. E os pormenores, exaggeradamente relatados pelos brancos, tinham demovido o vigario Constancio e as auctoridades a um redobramento de pompa nas festas da Semana Santa, — a ver se Deus fazia passar a villa immune do ataque dos cabanos.

A tarde caía em doce esvaimento, por traz da floresta. Deslisava tranquillo o rio, espelhando nuvens preguiçosas. Havia por toda a parte o tom suave das côres vespertinas, diluidas na fluidez das sombras incipientes. Apenas do outro lado, na margem opposta, um derradeiro raio do sol enrubescia o areial da praia, sobre o qual um bando de gaivotas revoava, crocitando. A villa em peso acudira á solennidade, attrahida pelo repique jovial dos sinos. Por entre as portas escancaradas vinham de junto do altar-mór adocicadas emanações de thuribulos; o fumo azulado do incenso evolava-se muito subtil para o alto, como a imagem das aspirações geraes. E as mulheres, lá dentro, oravam contrictas, duplicando as preces ao ceu, — que não viessem os cabanos trazer até acolá as infamias cuja narrativa era bastante para levantar-lhes os cabellos apavoradamente.

A subitas, um murmurio na matriz annunciou que ia começar o sermão. Houve no adro um movimento de refluxo; afinal, mais ou menos toda gente penetrou na egreja. Raros homens ficaram saboreando as ultimas cachimbadas

nos rechinantes taquarys de Cametá. Um minuto depois, erecto no pulpito, pallido na alvura engommada da sobrepeliz de rendas, padre Constancio dominava o auditorio com a singeleza da sua palavra despretenciosa.

Appareceu então na praça que antecede o adro um grupo de homens desconhecidos: quatro caboclos de féra catadura olhavam para tudo e para todos, como se visitassem a localidade pela vez primeira. Buscavam, tanto quanto possivel, que ninguem os visse; e auxiliava-os a gosto uma grande moita da carrapateiros, ahi deixados pela foice descuidosa dos capinadores municipaes ou pelo capricho do sacristão, que era o superintendente do asseio do sitio.

Ia vindo a noitinha. O ceu fizera-se antes da côr da perola, mas a pouco e pouco ensombrava este matiz com as tintas da sua palheta nocticolor. Tauxiações indecisas de estrellinhas palpitantes picavam-se aqui e ali, na sombria abobada. Volitavam auras fagueiras e, por toda a parte, invisiveis insectos zumbiam. Só o areial da praia fronteira extendia pela orla da floresta um listrão claro, como se houvesse absorvido e conservasse o quente rubor do raio de sol que estivera a mordel-o pouco antes.

De repente, estrondou um tiro no adro; a chamma scintillou com viva fulgencia no crepusculo expirante. Um dos caboclos avançava, já affoito, do meio dos carrapateiros. Na matriz foi um só o presentimento geral: os cabanos! Padre Constancio quasi desmaia no pulpito, muito pallido, sem voz. E nem desvanecido estava o sobresalto da primeira surpresa e já toda gente pensava em correr a casa e encerrar-se. Mulheres levavam as mãos á cabeça, chamando os filhos, gemendo de mansinho umas, lamentando-se outras em altos gritos. Uma consternação! Pensar na resistencia ninguem poderia fazel-o. A villa, bonacheirona, confiara ao ceu a tarefa de a livrar dos rebeldes: entre todos os habitantes não seria facil encontrar e reunir mais de meia duzia de espingardas. Que calamidade! Deu-se então, por todos os lados, uma desordem, — os atropellos, a algazarra dos grandes panicos. Buscava-se a porta principal, com fernesi. No entanto, a affluencia do povo formara uma columna espessa, demasiado larga, e não tardaram as compressões. Creanças e mulheres estertoravam sob o sapateio dos fugitivos. Do adro vinha a grita dos cabanos, já senhores da localidade.

Tremendo então pelas suas amadas ovelhas, sopesando a responsabilidade em que incorrera, padre Constancio deixou-se cair genuflexo e levantou as mãos, do lado do altar, com desvairado fervor.

Os cabanos tinham vindo por terra surprehender a villa em plena festa de Ramos. Guiara-os pelo matto o Mané Xico, o inimigo do juiz de direito, ficando no furo da Jararaca, a duas milhas de distancia, as numerosas canoas da expedição rebelde.

Quando os primeiros fugitivos sairam para o adro, já a praça contigua estava occupada pelos cabanos, em numero superior a duzentos, muito bem armados. Capitaneava-os o Borba, feroz caudilho que Angelim distinguira como chefe das operações n’aquellas bandas. Este individuo votava profunda ogerisa ao vigario: jamais lhe perdoaria a reprimenda com que, um anno antes, o fulminara, em Curralinho, por ter esbofeteado a propria mulher. Que bello ensejo então para pregar-lhe

uma peça! Chamou o seu logar-tenente e mandou buscar o padre.

Veiu logo o sacerdote, com a sobrepeliz amarrotada, a estola do avêsso, todo elle tremendo como a sururina moribunda.

— Ora passe p’ra ’qui, seu fradalhão! gritou-lhe o Borba, mal o avistou entre dois cabanos, ameaçadoramente armados de clavinotes. E logo ordenou que fôssem buscar tambem a Mariasinha, filha do pescador Sabá.

Quatro grandes fogueiras, accêsas por ordem do chefe, illuminavam o recinto. Ninguem mais ousara fugir; o povo agrupava-se pelo adro e pela praça, em recolhida attitude, quasi sem movimentos, temeroso da morte. Eram tão maus os cabanos! Havia pelos grupos feminis silenciosos soluços. Lancinante quadro, em verdade e por elle é que o ancião chorava também perdidamente.

— Faça-me soffrer, exclamou, porém não persiga esta boa gente!

— Cale a bôcca, idiota! respondeu-lhe o Borba, n’um meio sorriso que a todos apavorou mais do que a maior das ameaças.

Entretanto, acercava-se um troço de rebeldes, trazendo comsigo Maria, discipula de Constancio. Que vinha por seus pés quasi não se poderia affirmar, pois era ao collo que o mais espadaúdo caboclo a conduzia, semi-morta de mêdo.

Borba tomou petulante attitude, cofiando as raras répas do bigode falho, sempre a sorrir. Ordenou:

— Padre Constancio, passe á frente!

Arriscou o sacerdote algumas pernadas trôpegas.

— Aqui, ao lado da Mariasinha, tornou a dizer o chefe.

Constancio approximou-se.

— E agora, intimou o caudilho; se quizer, dê um beijo na cunhantan. Eu sei que você gosta d’ella. Pois despeça-se!

E, voltando-se para os companheiros, explicou em voz fortissima: — Deliberei repudiar a vibora de minha mulher, amigos, e casar-me com outra rapariga. Convido-os para assistirem á ceremonia que padre Constancio, bem contra vontade, celebrará agora mesmo. A egreja está preparada e a noiva é esta!

E designava a mimosa discipula do padre, cuja primeira communhão fôra marcada para o proximo domingo.

Não pôde o povo dominar uma exclamação de surpresa e repugnancia. Ao que logo retorquiu o cabano:

— Que ninguem arrede d’ahi. O socego é a condição da vida dos habitantes da localidade.

E tomando a caboclinha nos braços, levou-a para o templo. Constancio, barafustando, protestava aos gritos, arrastado por dois sicarios.

O desenlace do caso é evidente: recusando-se a satisfazer ao sicario, o padre foi assassinado sobre os degraus do altar. Mas nem por isso a cheirosa e innocente Mariasinha deixou de ser, d’então em deante, a concubina do caudilho, que a violou ali mesmo, na sacristia.

Só por tal preço os cabanos abandonaram a localidade, na manhã seguinte.