Contos do Norte (Marques de Carvalho)/Um como tantos

UM COMO TANTOS

 

PARA O LICINIO SILVA, ESTA OBSERVAÇÃO.

Haviam já passado para Nazareth, de volta do Vero-peso, os derradeiros bonds do espectaculo. A pouco e pouco, os peões tinham rareado no cimento dos largos passeios das avenidas, — o transito fizera-se nullo, um ou outro noctivago impenitente andava errante á sombra propicia das folhudas mangueiras, investigando a distancia com olhares incendidos de uma ponta de lubricidade contida a contra-gosto. Nos renques da illuminação electrica

manifestavam-se eclipses intermittentes, contra os quaes praguejava, sem bem saber porquê, o cocheiro d’uma carruagem estacionada em frente ao Club Universal. Poucas mesas restavam no terraço do Café Riche. Entretanto, um creado somnolento, não obstante a ausencia de frequentadores, persistia, pelo habito, em dispôl-as em symetria, rodeando-as de cadeiras. O chão estava zebrado de humidades adocicadas, escorrido de Apollinaris transbordante, coalhado de rolhas, aqui e acolá brilhante de pedaços de capsulas das garrafas de cerveja. Perto, gania um cão. Mas outro cachorro irrompêra do centro da enorme praça, viera em linha recta, cabeça baixa e cauda erguida, para junto d’aquelle e, após as rapidas saudações peculiares, fôram-se ambos, General Gurjão a baixo. Liberrimos animaes!

Silverio, meio voltado para a esquerda, acompanhara-os com a vista, distrahidamente; até desapparecerem na silente escuridão da rua. Estava sentado n’um banco, havia muitas horas, defronte da curva dos bonds. O olhar avistara um cartaz collado á parede da Casa Adolpho: uma parisiense, com a saia batida pelo rijo vento de Montmartre, puxava um carro-annuncio, formoso preconicio do estabelecimento. Pareceu-lhe que a sua situação moral estava em analogia com o quadro, afora os matizes garridos. Elle tambem andava atrelado ao carro da vida, fustigado e zurzido pelo tufão dos dissabores domesticos. As tintas, porém, com que se devêra pintar a sua existencia tinham de ser amassadas na palheta das desditas, — toda a gamma sombria das cores carregadas, desde o roxo dos goivos ao negro da infelicidade.

Desviou a vista do obsidiante cartaz, pois não fôra para atiçar tristes lembranças que saíra de casa. Bem ao contrario, necessitava de distrahir o espirito, refrescar o cerebro na suave tranquillidade da noite, em plena praça. Tirou o chapéu, conservando-o na mão direita e extendeu os braços pelo espaldar do banco. A cabeça, de largas entradas, pendeu para traz: dir-se-ia um crucificado; e o olhar foi ao alto, cravou-se na insondavel amplidão do espaço, ao fundo da qual phosphoresciam estrellas, aos milhares. Afundou-se então na tremenda reviviscencia dos seus infortunios.

— Lá vae ella outra vez, bradou alguém, á direita.

Silverio, com um estremeção, voltou á vida exterior, buscando descobrir quem falava. Era o cocheiro, — o Cadete ou o Bruzegas, — á porta do Club, encarapitado na bolêa, a denunciar em soliloquio cada intermissão na luz do foco electrico mais próximo.

— Feliz mortal, murmurou Silverio, invejoso da despreoccupação d’aquelle homem.

O Riche, a cuja porta cabeceava o proprietario, estava sempre illuminado; e o servente, fatigado alfim de ordenar mesas e cadeiras que ninguém desarrumava, ia toscanejando, mesmo de pé, escorado á cêrca de uma das mangueiras. Cessara de todo o movimento de transeuntes. Os demais cafés da avenida haviam fechado. Pelas janellas abertas do Universal, desciam ondas da illuminacão dos salões desertos. Nos dois passeios, varredores urbanos passavam sobre o cimento, em largos gestos, longas vassoiras de sacahys. E bem adeante de si, viu Silverio, ao meio do enorme quadrilongo, com o pedestal rodeado de fulgurantes globos electricos, erecta no alto da desproporcionada columna, a estatua da Liberdade, emergindo por sobre a folhagem da arborisação.

— Liberdade! Não ser eu também livre! murmurou suspirando. E, mau grado o seu empenho em distrahir as idéas, voltou a concentrar-se nas maguadas recordações da propria desgraça. Casado ha quatro annos, com uma compatriota, uma italiana, a quem aliás déra logar em seu leito por um impulso de generosidade, ante a extrema pobreza dos paes d’ella, a breve praso começou a verificar que disparidades capitaes de genios e educação os incompatibilisavam para a vida commum. Ao principio, insignificantes arrufos chegaram a offerecer-lhe um sabor novo na existencia: das pazes que se lhes seguiam vinha um renascimento de ternura, uma ineffavel delicia para a intimidade dos longos e mudos amplexos. Illusorios aperitivos, taes amuos. A pouco e pouco avultaram, tomaram corpo, assumiram as proporções de graves pendencias barulhentas. A mulher tinha a bóssa da loquacidade desenvolvida; e, quando se enfurecia, eram interminaveis gritarias, que o desesperavam na razão directa do natural socegado e taciturno do infeliz.

Aggravou-se depois esta situação,

já bem penosa, com a intromissão dos paes de Luiza. A sogra levou-lhe para o lar a contribuição de torturas ineditas. A cada gesto, a cada passo de Silverio, uma recriminação. Embalde buscava o pobre comprar a paz do lar á custa de pequenos presentes para seus tres algozes: nada prestava, tudo de infima especie. «Já viram homem tão falto de gosto?» O Silverio experimentara ao principio chamar á ordem a mulher, com o auxilio de raciocinios discretos, arriscados a medo, mansamente, meigamente. Emtanto, por amor dos dois filhinhos que tinham surgido entre accessos de raiva e curtas calmarias, sacrificou todo o resquicio de sua virilidade moral: recolheu-se ao impassivel silencio de quem acceita resignado a brutalidade do destino. Quando rebentavam-lhe no lar os grandes temporaes, recolhia-se a um quarto, embrulhava-se na rêde, tapava ambos os ouvidos. E mulher e sogra, espicaçadas pela inesperada evasiva, iam levar-lhe a saraivada das invectivas superagudas, esganiçadas em falsete, — emquanto o sogro, impando da farta bonaxira de malandrim obeso, fazia em voz cava os soturnos trovões das ameaças: «Hei de quebrar-te as pernas, cão!»

Todo o seu affecto reverteu para as duas creanças, um pequeno e uma rapariguita adoraveis, que chegavam a ter graça, tal a sua candidez, mesmo repetindo em timidos balbucios as calumniosas exclamações da velha: «Papae é mau! papae é feio!»

Feio, sim, e não era por sua vontade que nascera com uma caraça espalmada, que o sol da America do Sul tostara duramente. Mau, porém, não; e em silencio protestava contra o qualificativo. Dizia-lhe a consciencia não ser merecida a apostrophe; comtudo, sem escorraçar os meninos com a mais leve sombra de censura, tomava-os ternamente pela cinta, sentava-os ao collo, um em cada joelho, acariciava-os de manso, amimava-os, cobrindo-os de beijos e de silenciosas lágrymas.

De tudo isto lembrava-se o desditoso Silverio, inerte no banco da avenida, as pernas entorpecidas pela demorada immobilidade. Ainda ha pouco, ao anoitecer, houvera em casa uma terrivel scena. Persuadira-se Luiza estar o marido auferindo grandes lucros n’uma industria inaugurada mezes antes, lucros que desviava ás occultas para a Europa. E deu para exigir-lhe «a sua parte no negocio». Sogro e sogra tinham acudido com argumentos e gritos: «De certo, é preciso pintar já para aqui os cobres!» E, desenvolvendo preceitos juridicos, explicava o velhote que «a não cohabitação material dos conjuges recolhidos sob o mesmo tecto não impedia a co-participação na pecunia». Dispensou-se de se desculpar, o Silverio; e, para não irem mais longe os brados, que estavam já a incommodar a vizinhança, tomou dissimuladamente o chapéu, fugiu precipite rua adeante, até á avenida. Ali, ao menos, estava fóra da socerina alçada. Safa!

A vista da estatua suscitara-lhe a nostalgia da liberdade. Relanceou um olhar pelo passado, desde a sua chegada a Belém e pasmou de ainda sentir dentro de si o que se chama um coração e uma alma, após soffrimentos tão longos e tamanhos. Onde teria elle o bomsenso, já revelado desde a adolescencia, quando commetteu a leviandade de casar com Luiza? Nada o libertaria agora, porque a sua inteireza de animo, a sua correcção nativa lhe vedavam o supremo recurso da fuga. Prendiam-n’o ao cepo abençoadas cadeias: os filhos, que eram os doces élos ligando o seu alvedrio á desdita.

As creanças! Elle também fôra pequenito, descuidoso e travesso infante, nas amplas veigas lombardas, rescendentes a rosmaninho. Creara-o a inexgottavel ternura da velha mãe, e tinha sido ao som dos rudes osculos bonachões do pae que elle, apaparicado á porfia, encetara a solettração do singelo alphabeto das caricias familiares. Em casa, no antigo e pobre lar, tão arejado no verão e tão cheio de tepidos brazeiros pelo inverno, quando o norte inclemente bramia rispido nos olivaes e carvalheiras, só recebera edificantes exemplos de tolerancia mutua entre esposos amantes, de respeito calmo, de intensissima affeição. E na dupla contemplação do carinho de seus progenitores e da forte paixão com que o gado amava na pradaria, manhã cedo, ao abalar da arribana, iniciara Silverio, desde joven, o seu grande sonho de um lar todo meiguices, em férvida ventura conjugal. O sonho fôra deveras fugaz. Em pesadelo tornara-se depressa, n’estes ardentes paizes americanos, onde tudo parece crescer, desenvolver-se e passar vertiginosamente. Aquelles saudosos tempos estavam longe, formavam um grupo separado, distincto, na vasta collecção de suas recordações de outróra. Presentemente, nada restava da tranquillidade em que se formara a sua adolescencia, na Europa, nem dos esperançosos, dulcissimos sobresaltos que chegavam a tirar-lhe o somno, retendo-o até alta noite no sombrio tombadilho do vapor, quando fizera a travessia do Atlantico. Tudo fugira, na definitiva liquidação da sua felicidade.

Esta dolorosa introversão foi interrompida por um relinchar de cavallo. Olhou Silverio á direita, como voltando de um sonho. Tinham-se afastado os varredores, andava ainda no ar, peneirada na luz dos focos electricos, a poeira levantada pelas compridas vassoiras. Sempre aberto, o Universal manchava de claro a ramaria das mangueiras com a projecção das salas illuminadas. Em frente á porta, o cocheiro falava manso aos animaes impacientados. E o creado do Riche, desperto pelo relincho, obtivera do patrão a ventura de um gesto, ordem muda para fechar.

Entrou Silverio a acompanhar-lhe com a vista os movimentos, as idas e vindas, mesas levadas aos pares, cadeiras conduzidas a duas e duas em cada mão. Feliz homem, esse creado, pensava, se não tinha a inenarravel desdita de possuir um inferno em vez de lar. Ia dormir socegado, tendo trabalhado materialmente, — reparadoramente. A subitas, atravessou-se-lhe uma idéa no cerebro. Erguendo-se n’um esforço, bateu forte com os pés no lagedo, para os desentorpecer, e chamou o servente:

— Deixe essa mesa, disse, traga um cognac.

E sentou-se, com esta sentença espipada de sua ironia dolorida:

— O alcool é a mortalha da dôr.