Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/A perceptora

A PERCEPTORA


Chamava-se Martha de Vasconcellos.

Era alta, loura, delicada como uma figura de Keepsake.

Uma physionomia suave e infantil que captivava pelo seu encanto inconsciente.

Á primeira vista, nas soirées semanaes do commendador Gonçalves, vestida de branco, com um simples velludo negro nos seus cabellos crespos de um louro fulvo e ardente, parecia uma creança despreoccupada e frivola.

Não o era.

Quem a conhecesse de perto sabia que ella tinha a seriedade precoce dos que já padeceram muito.

Nenhuma sentimentalidade falsa no seu olhar azul, meigo e pensativo. Nenhuma ideia errada, nenhuma chiméra juvenil na sua cabecinha d’uma lucidez singular.

Sabia conservar-se na sombra, sem deixar de ser digna; tinha a consciencia da mesquinhez do seu destino, sem ter nunca aprendido a ser humilde.

Pouco fallavam com ella, e no entanto parecia não dar pelo desdem quasi brutal de toda aquella gente que a cercava.

Tinha um modo docil e meio risonho de sentar-se ao piano, e tocava uma noite inteira valsas, contradanças, lanceiros, que outras dançavam, na expansão da sua alegria burgueza.

Nunca lhe perguntavam se estava cançada, nunca lhe davam a menor mostra de interesse ou de sympathia.

Pagavam-lhe integral e generosamente, tinham direito aos serviços correspondentes a essa remuneração.

As suas relações paravam aqui.

Não sabiam se ella tinha uma alma, se essa alma se iria azedando a pouco e pouco ao contacto d’aquella indifferença cruel; não sabiam do seu passado senão que era honesto e puro, nunca pensavam no seu futuro senão vendo-a eternamente curvada ao pezo do mesmo destino ingrato.

Martha era mestra de duas filhas do commendador, duas rapariguinhas de treze a quinze annos, muito presumidas da sua riqueza, muito vaidosas do seu luxo, das carruagens em que andavam, dos vestidos de seda que vestiam, das festas com que os paes alteravam de vez em quando a chata monotonia do seu viver de negociantes retirados.

O commendador tinha um filho muito mais velho do que as irmãs, que se educára na Allemanha; e que depois de viajar pela Europa inteira, havia regressado emfim á casa paterna, onde, aqui para nós, se enfastiava poderosamente.

O commendador queria dar tambem ás filhas uma educação brilhante, uma educação que correspondesse ás dimensões da sua burra, eis porque, depois de as tirar do convento, onde tinham estado até áquella idade, escolhera para professora Martha de Vasconcellos.

De resto as idéas do commendador e da mulher sobre a educação de suas filhas, não eram das mais engenhosas e atiladas.

A pobre gente — n’este caso, pobre significa riquissima — a pobre gente não era obrigada a ter um ideal muito levantado.

Sabiam que a filha do barão de tal tocava pianno, e queriam que suas filhas soubessem tocar muito melhor.

Tinham ouvido louvar os desenhos da menina Fulana e juraram aos seus deuses que as suas meninas lhe haviam de levar a palma.

Não tinham ideias absolutas, tinham simplesmente ideias relativas.

Excitar a admiração parecia-lhes uma cousa réles e insignificante; o que elles queriam era excitar a inveja.

As pequenas comprehendiam isto maravilhosamente.

Em vendo uma amiga da infancia, uma conhecida qualquer com um vestido mais bonito ou com uma prenda intellectual mais preciosa, tinham ataques de desespero surdo.

Ralava-as uma vaga inveja de todos os esplendores sociaes.

Andavam á busca de gente a quem podessem offuscar.

Eram simplesmente ridiculas!

Ás vezes entravam no quarto de Martha e diziam-lhe n’um transporte de colera:

— Quero saber allemão. A Mariquinhas sabe allemão, emquanto eu não sei.

— Quero aprender a bordar de matiz, a Julia fez um quadro que eu não sei fazer.

Era assim que iam progredindo no estudo.

Marta conformava-se docilmente ás aspirações das discipulas: ensinava-lhes tudo o que sabia, mas o que ella de todo não pudera, era inocular-lhes a vida interior que animava e coordenava todos os seus conhecimentos adquiridos ou intuitivos.

Dizia-se que Marta conhecera melhores dias, affirmava-se mesmo que não fôra para servir de mestra a burguezinhas pretenciosas que seu pae, um pae extremoso, lhe adornára o espirito de todos os primores de uma educação excepcional.

Conhecia as linguas modernas, mas não como as conhecem as meninas que por ahi conversam com os diplomatas, resumindo n’isso todas as suas ambições de estudo.

Penetrára no espirito d’ellas, comprehendera o genio especial de cada uma, sabia de cór e escolhia principalmente os poetas que synthetisam uma nacionalidade ou uma civilisação.

Tinham-lhe ensinado a raciocinar, a pensar, a estudar a fundo todos os problemas em que outras mulheres tocam sómente ao de leve.

A curiosidade natural ao espirito feminino, essa qualidade preciosa, que, descurada, se torna quasi sempre em um vicio antipathico, fôra n’ella tão bem dirigida, disciplinada com tal mestria, que se tornára em fonte dos mais puros gozos do seu espirito.

Não sabia can-cans de salão, sabia o que dizem na sua muda lingua os astros e as plantas; não tentara penetrar na vida intima das suas amigas, contentava-se em saber a vida intima da Creação.

Nunca lhe viera á idéa penetrar com o espirito no pélago revolto das paixões insalubres; a sua curiosidade insaciada debruçava-se de melhor vontade no pélago profundo das ondas, a quem horas e horas perguntava pelas mysteriosas riquezas do seu seio.

No meio d’isto, despretenciosa e simples, julgando-se a mais ignorante das creaturinhas do bom Deus, não sabendo que era artista, que era intelligente, que tinha alma capaz de entender todas as grandes cousas.

O pae, que a vinha ver muitas vezes á casa da senhora a quem na infancia a confiára, disse-lhe um dia com o pejo a ruborisar-lhe as faces, com lagrimas a marejarem-lhe os olhos, que ella era uma filha natural, mas que tencionava reconhecel-a, regularisar a sua posição, dar-lhe todos os direitos que ella por tantissimos lados merecia.

A adoravel creança não o percebeu.

Então — castigo terrivel das suas culpas — o pae teve de explicar, de fazer comprehender áquelles castos ouvidos de quinze annos uma historia deploravel, a historia do seu crime!

Martha escutou-o n’um silencio dolorido, com uma expressão de doçura triste no olhar.

Depois abraçou-o melhor ainda que nos outros dias, porque até alli só tivera muito que agradecer e d’alli por diante sentia vagamente que tinha muito que perdoar.

— E minha mãe? — perguntou depois com uma tremura na voz.

— Tua mãe morreu.

O pae de Martha era casado, tinha filhos, vivia para sempre longe d’ella nas tranquillas alegrias da familia, uma familia em que ella só podia ser a intrusa!

Desde esse dia Martha estudou com dobrado afinco, aprendeu com uma ancia dolorosa, com um não sei quê de impaciencia inexplicada.

Sentia que havia de ter muito que soffrer, muito que luctar.

Tratou de robustecer a alma e de dilatar o espirito.

Era uma especie de iniciação heroica.

O pae de Martha morreu.

Um dia, ao acabar de jantar, cahiu para o lado inesperadamente, fulminado pela ruptura d’um aneurisma.

A morte surprehendera-o. Não tinha tido tempo de fazer nada em favor da sua desvalida Martha.

Oito dias depois, entrava esta, vestida de luto, muito pallida, mas com uma expressão estranha de firmeza no olhar, em casa do commendador Gonçalves.

Julião, o filho do commendador, tinha 23 annos quando Martha foi para casa do pae. Ao principio pouco reparou n’ella. Imaginava-a uma mestra como as outras, o mesmo livro tirado a centenas de exemplares. Reconheceu sómente que era um pouco mais bonita que a generalidade das suas collegas.

Um dia, porém, que elle lia Gœthe no original, e que uma phrase obscura do poeta o fazia parar na leitura um tanto impacientado e confuso, lembrou-se — acaso ou presentimento — de recorrer á mestra de allemão de suas irmãs.

Entrou na sala de estudo, com um certo desdem a transparecer-lhe na physionomia.

Póde ser-se educado na Allemanha e não comprehender o Fausto: o que era no emtanto absolutamente impossivel, na opinião do moço, era não ter nunca estado na Allemanha e conhecer Gœthe como um poeta nosso compatriota.

Martha conhecia-o.

Pegou no livro que Julião lhe estendia, deitou um relance de olhos para o verso de que se tratava, e depois, com um sorriso não isento de certa malicia innocente, explicou a Julião a ideia do poeta.

Havia tanta clareza nas suas palavras, uma tão superior intuição artistica nos seus rapidos e despretenciosos commentarios, que o moço olhou para ella devéras espantado.

Pareceu-lhe que a via pela primeira vez.

Não lh’o disse, porém; pelo contrario, sentiu uma especie de surda irritação ao perceber a sua inferioridade intellectual perante aquella creança tão simples, e que todos olhavam com tamanho desdem.

Martha percebeu porventura a impressão que despertára; o caso é que a malicia que lhe chispava no olhar accentuou-se com um indeciso cambiante de ironia.

«A pequena creio que se atreve a fazer escarneo de mim», pensou Julião, sahindo da sala, onde a juvenil perceptora ficou com as discipulas.

Desde esse dia Julião e Martha observaram-se mutuamente com mais attenção.

Elle achava-a graciosa, sympathica e boa sobretudo, tinha muita pena d’ella, ao vêl-a desdenhada por tanta gente que lhe era inferior na intelligencia, na coragem, na distinção, em tudo que póde tornar adoravel uma mulher.

Martha sentia-se silenciosamente comprehendida, e agradecia áquelle moço esbelto e pensativo as delicadezas mudas com que a compensava do desamor de todos os mais.

Tocou então para elle as mais doces e sentidas musicas que sabia; os apaixonados nocturnos de Chopin, as queixosas melodias de Schübert, as sonatas mais bellas d’esse sublime surdo chamado Beethowen.

Conversavam um com o outro através da musica, sem nunca se fallarem de outro modo senão nas cousas mais banaes da vida de todos os dias.

Á tarde, depois de jantar, emquanto o commendador resonava a sua sésta sobre a prosa elegante do Diario de Noticias, emquanto a commendadora meditava o rol d’aquelle dia, digerindo um bom jantar, e um ataque de furia contra as suas criadas presentes e futuras, emquanto as meninas debruçadas á janella, trocavam substanciosos commentarios ácerca de um alferes que morava no predio fronteiro, e de uma menina muito namoradeira que morava no predio do lado, Martha, sentada ao piano, desfiava sósinha o longo rosario das suas saudades.

Julião ouvia-a, fingindo ler um jornal ou um livro, e a apaixonada artista bem comprehendia que uma alma a estava escutando, e que essas limpidas notas que ella arrancava ao piano iam vibrar divinamente em um coração que a entendia.

Tudo os separava na terra: o orgulho feroz de uma familia de parvenus, o santo orgulho d’ella, não menos implacavel, porém muito mais nobre, os preconceitos, o dinheiro, quasi que a honra; mas, que importava?

Podiam entender-se e amar-se através d’isso tudo.

E Martha, empallidecida pelas commoções que lhe agitavam a sua alma de artista, com uma expressão soffredora e apaixonada nos seus bellos olhos d’um azul escuro, contava a meia voz n’aquella linguagem ineffavel as suas dôres, as suas humilhações, as suas lembranças, todas as alegrias que tivera, tudo que ella havia esperado na terra e que um dia se lhe havia desfeito nas mãos, deixando-lhe apenas uma immensa, uma desoladora, uma eterna saudade!

Ás vezes o piano chorava com uma desesperação tão inconsolavel e tão profunda, que Julião tinha desejos de erguer-se da cadeira em que estava, de protestar contra os energicos lamentos que traduziam a dôr insanavel de um destino, e de gritar:

— Aqui me tem, prompto a luctar peito a peito contra o seu infortunio, e a vencêl-o.

Mas não se atrevia!

Que diriam todos, que diria seu pae, que diria a propria Martha?

Quem lhe dava a elle direitos de interpretar d’aquelle modo a sublime execução d’essa artista ignorada?

Quem pudera affirmar-lhe que era pessoal essa dôr mysteriosa que tinha soluços tão doces, queixas tão resignadas e tão mansas, lamentações de tão ineffavel ternura?

Um dia Julião quiz sondar o coração tão calado da pobre mestra. Procurou fazer-lhe umas perguntas que não fossem por demais indiscretas.

Martha desatou a rir.

É verdade que no meio da sua crystallina risada os olhos se lhe afogaram em lagrimas; mas n’esse instante Julião sentia-se tão envergonhado da curiosidade que revelára, que se não atreveu a olhar para a sua interlocutora.

O commendador Gonçalves era ambicioso.

Pudera!

Ou não fosse elle commendador.

Estava riquissimo, mas queria que os filhos fossem ainda mais ricos do que elle.

Para isso andára a moirejar a vida inteira, por isso se sustentára de pão negro e de bacalhau durante os annos mais florentes da mocidade!

O seu mais intimo amigo, possuidor de um baronato, de avultada riqueza e de uma filha unica tão prendada como elle desejava as suas, fallou-lhe um dia disfarçamente, com certa labia, a respeito de Julião.

A meio entendedor meia palavra basta; d’ahi a quatro mezes o commendador dava uma pequena soirée intima, em que a menina Adriana, filha do sr. Barão de X, e chegada havia dias do Sacré Cœur, era apresentada ao seu futuro noivo, o Sr. Julião Gonçalves.

Estavam só pessoas de familia em casa do commendador.

Elle, a mulher, as duas filhas, o filho e Martha. Emquanto ao barão, viera simplesmente acompanhado pela filha.

Adriana era... o que d’alli a alguns annos haviam de ser as futuras cunhadas.

Tinha a mais umas tincturas de coquetterie parisiense, coquetterie mal ensaiada, mais collegial do que mundana.

Não se iguala nem se descreve o desdem com que ella cumprimentou Martha. Era uma vingança retrospectiva do que as suas proprias mestras lhe haviam feito passar.

Nos olhos azues de Martha passou um relampago de colera fugitiva, mas não disse nada. O que havia ella de dizer áquella gente, que a considerava um traste... bem pago?

Adriana, a quem cabiam as honras da noite, sentou-se ao piano e tocou.

Tocou as musicas de Martha, com a agilidade e com o brio de uma pianista experimentada.

Depois, levantando-se no meio de palmas e de bravos, indicou á mestra o lugar que deixára n’uma especie de altivo desafio.

É que uma das irmãs de Julião lhe dissera n’um risinho de malicia, que o irmão gostava muito de ouvir Martha.

A moça levantou-se com um gesto automatico, sentou-se ao piano e sem mesmo olhar para as musicas dispersas principiou a tocar.

Foi um adeus soluçante, cheio de lagrimas, onde a espaços passavam como brisas refrigerantes, umas vozes indizivelmente cariciosas!

Foi uma historia muito triste, que ainda ninguem tinha ouvido até alli, a historia de um coração despedaçado!

Como ella lhe havia querido, ao seu bello sonho desfeito, e com que dilacerante agonia lhe dizia para sempre adeus!

Na sala havia um silencio angustioso e profundo.

O silencio inconsciente que inspiram as grandes commoções.

Desde esse dia nunca mais ninguem ouviu a querida voz de Martha, aquella voz que tinha por interpretes os mais sublimes artistas do mundo.

Ella continúa a dar lições ás filhas do commendador, e ha no seu sorriso uma expressão divinamente dolorida, quando falla com Adriana, a feliz esposa de Julião.