Contos em verso/Contos brasileiros/Soror Martha

SORÔR MARTHA
 

Em trajos de cerímonia,
O’ Musa, sobe ao Parnazo,
Pois eu vou contar um caso
Dos bons tempos da colonía.

I

Havia, em certa cídade,
Um mosteiro-citadella,
Fundado sob a tutella
Da Senhora da Piedade

Era uma casa sombria,
Sem regras de architectura,
Mais negra que a noite escura
De noite como de día.

Os muros, tristes e altos,
Tinham dez palmos de largos,
E punham fortes embargos
A sacrilegos assaltos.

Tão rigorosa espessura
Não tomava por lisonja
Nenhuma pallida monja
Da tenebrosa clausura.

Pois, consoante noticía,
Do povo, que não se illude,
Só respirava virtude
Tão santa e nobre milicia.

Até boatos correram
De que monjas da Piedade
Com cheiro de santidade
Ao céo as almas renderam!

Velha tradição transporta
Que perfeita e nacarada
Fôra uma freira encontrada
Seis annos depois de morta.

Sería o corpo tão casto
Daquella freira benigna
Que não foi a terra digna
De fazer delle o seu pasto?

Essa reclusa divína,
Que ninguem hoje conhece,
No meu conto reapparece,
E’ do meu conto heroina.

II

Em noite de frio e vento
(Já meia noite soára)
A Virgem Santa olvidára
O seu piedoso convento.

Bramíu rude tempestade!
Raio horrendo fez um furo
No pujante muro escuro
Da mosteiro da Piedade!

Dos catres saltaram todas
As monjas espavoridas,
Dellas de medo transidas,
Dellas de horror quasi doudas!

Resaram no côro accezo
Até despontar o dia;
O soalhado parecía
Vergar das monjas ao pezo.

III

Soror Martha do Cordeiro,
Havia muito professa,
Era, comtudo, a abbadesssa,
Mais nova que houve em mosteiro.

Dês que lhe morrera o noivo
Naquella casa encerrou-se,
Mais doce que a pomba doce,
Mais triste que o triste goivo.

Dir-se-ia ter olvidado
De que era, ou havia sido,
Defunta sem ter morrido,
Viuva sem ter casado.

IV

Em bella manhã de Maio
(Curiosidade funesta!)
Sobe a freira á larga fresta
Praticada pelo raío,

E vê, lá fóra, enlaçados
(Par em verdade formoso!),
Um cavalheiro amoroso
E a dona dos seus cuidados.

Soror Martha os olhos tapa;
Abre-os de novo; examina...
Treme, chora, desatina...
Um grito d’alma lhe escapa!

A triste reconhecera
No fidalgo, que passára,

Noivo que morto julgára,
Morto que nunca esquecêra!

Já muitos annos havia
— Annos de funda saudade! —
Que a monja da Piedade
O cavalheiro não via.

A commoção tão violenta
A sua razão mesquinha
— Pobre monja! pobresinha! —
Em vão resistir intenta.

Successivas gargalhadas
Soror Martha despedia;
Desorientada, dizia
Mil coisas desencontradas!

E pela medonha brecha
Passou a linda cabeça
E todo o corpo... A abbadessa
Rapida cahiu qual frecha!

Trinta annos tinha a suicida;
Divídira-lh’os a sorte:
— Quinze na morte sem morte,
Quinze na vida sem vida.