O tempo, que tudo some,
Não me apagou da lembrança
O dia em que á vez primeira
A passear te encontrei.
Perguntei qual o teu nome;
Tu respondeste: — Não sei. —
Mas não perdi a esperança,
E retorqui: — E’solteira? —
Conservaste-te calada,
E eu calado não fiquei.
— Diga: é viuva? é casada? —
Tu respondeste: Não sei. —
— Por que vae tão apressada?
Onde é que mora? — Indaguei.
Alguma coisa me diga,
E, se não quer que eu a siga,
Não seja assim tão austera,
E não responda: — Não sei. —
Tomaste um bonde, e eu — pudéra! —
O mesmo bonde tomei,
No banco em que te sentaste
Resoluto me sentei;
Logo de mim te afastaste,
E eu para ti me cheguei;
Do bonde, porém, saltaste,
E eu, em seguida, saltei,
E o caminho que tomaste
Como a tua sombra tomei;
As esquinas que dobraste
Pacientemente dobrei;
Na confeitaria entraste,
Na confeitaria entrei;
De novo á rua voltaste,
De novo á rua voltei;
Caminhaste... caminhaste...
E eu caminhei... caminhei...
Mas, por minha desgraça,
Passou junto de nós um tilbury de praça,
E tu rapida, lepida,
Mesmo com o carro a andar, saltaste nelle, intreepida!
O attonito cocheiro
Quiz protestar; mostraste-lhe dinheiro,
Falaste-lhe baixinho,
E o tilbury rodou vertiginosamente,
Tirando fogo ás pedras do caminho,
Em risco até de atropelar a gente!
Naquella circumstancia,
Recordei-me da infancia,
Do tempo em que corria
Como um gato com medo da agua fria,
E disse: — Pernas, para que vos quero?
Corri com desespero!
Felizmente outro tilbury bemdito
De uma esquina surgiu. Tomei-o, afflicto,
Deitando os bofes pela bocca, e disse
Ao cocheiro que rapido seguisse;
— Cocheiro, aquelle tilbury
Leva a mulher mais bella,
Casta visão archangela
Que nos meus sonhos vi!
Eu cem mil vezes pago-te
O preço da tabella,
Se apanhas o anjo celere
Que vae voando ali! —
Por tua intervenção, o magico dinheiro
Póde ter azas o peor sendeiro!
Vencendo o espaço indomito, valente,
O meu carro rodou rapidamente,
E eu apanhei o tilbury ligeiro,
Dizendo aos meus botões: — Agora não me escapas,
Mulher que me puzeste a roupa branca empapas! —
Tu foste á estrada de ferro;
A’estação te acompanhei.
A locomotiva um berro
Raivoso estava soltando.
Não sei como, foste entrando,
E eu comtigo não entrei:
Era preciso um bilhete!
Mais prompto do que um foguete
O tal bilhete comprei,
As pessoas repellindo
Que ao pé do postigo achei,
Descomposturas ouvindo
A’s quaes attenção não dei.
Por causa dessa delonga,
Não mais teu vulto avistei:
Dos vagons na cauda longa
Debalde te procurei.
Afinal, por f’licidade,
Num cantinho te encontrei,
E um sorriso de bondade
Nos teus labios divisei,
Compensação generosa
Da massada que apanhei,
Promessa vaga e mimosa
Das delicias que sonhei...
Logar havia ao teu lado,
Ao teu lado me sentei,
Tão suado, tão cançado,
Que compaixão te causei.
— Em que suburbio reside?
Arquejante perguntei.
— Responda, não se intimide...
Tu respondeste: Não sei —
— «Não sei!» Sempre «não sei!» Outra coisaresponda,
E aos meus olhos os seus, o’bella, não esconda!
Onde é que mora? Attenda á minha voz amiga!
São Diogo, São Francisco ou São Christovão!Diga:
Qual destes santos? Hein? Talvez Todos-os-Santos!
Responda por quem é, sinhá dos meus encantos!
Vae ao Sampaio? ao Rocha? ao Cupertino? Fale!
Da sua meiga voz a musica me embale!
A Sapopemba vae? salta na Cascadura?
Cala-se? Que tortura!
Meu amor vae ficar no Meyer!... Acertei!
Respondeste: Não sei. —
Durante a nossa longa viagem,
Outra resposta não te arranquei!
— Vamos, bemsinho! vamos! coragem!
Alguma coisa diga! — Não sei. —
Como deixasses que a mão fremente
Eu te apertasse, bem t’a apertei...
— Não sente nada? Diga: não sente
Estes apertos de mão? — Não sei. —
— Diga, meu anjo, minha alegria,
Se uma esperança ter poderei...
Deve este affecto ser pago um dia?
— Não sei. — Não sabe? Por que? — Não sei. —
O trem deixámos. Sombrio atalho
Como tomasses, tambem tomei.
Quanta canceira! quanto trabalho!
Não está cançada, meu bem? — Não sei. —
Depois de andarmos quasi uma hora,
A que parasses eu te obriguei.
— Que matta virgem! Onde é que mora?
Não está cançada? Diga! — Não sei. —
— Pois descancemos. — Ella sentou-se
Sobre umas folhas, e eu me sentei.
— Que fresca aragem! que aragem doce!
Dá-me um beijinho... dá-me? — Não sei. —
Depois de te possuir, outro vocabulo
Dos labios arrancar-te em vão tentei:
Sempre as mesmas, estupidas, monotonas,
Aquellas duas syllabas — «Não sei»! —
Lembrei-me então que tu («horresco referens»)
Eras idiota... e que eu... Oh, céos! que horror!...
Affastei-me de ti nervoso e pallido...
Tive remorsos de meu triste amor!
Alguns mezes depois, passei num bonde
Pela rua do Conde,
E ti vi á janella de um sobrado
De aspecto duvidoso.
Fiquei muito intrigado
E muito curioso.
Subi. Abriste a porta,
E logo me disseste: — Estava morta
Por vel-o, meu amigo,
E falar-lhe a respeito
Daquella tarde que passou commigo.
— Pois mora num sobrado tão suspeito?
— Eu já naquelle tempo aqui morava,
E era o que sou: uma mulher perdida
Que o seu corpo vendia a quem pagava.
Quiz passar uma tarde divertida...
Vendo-me perseguida,
Simulei ser uma senhora honesta...
Fugi... corri... fiz toda aquella festa!
Tilbury... trem de ferro... aquillo tudo
Pura comedia foi. ’Stou satisfeita,
Pois vi do que é capaz um cabeçudo
Que persegue na rua uma sujeita!
Mas eu formalisei-me então, e disse-te:
— Aos olhos teus por toleirão passei...
Vamos? Dize! Franqueza! Fui ridiculo?
Respondeste: — Não sei. —