Contos em verso/Contos cariocas/Rogerio Brito

ROGERIO BRITO
 
I

Tinha Rogerio uma ambição: ser celebre;
Fazer bons versos, ter bonito estylo;
Na bocca, finalmente, andar do publico.

Fez o que poude para conseguil-o.
Escreveu com ardor as Nuvens pallidas,
E publicou-as, de animo insoffrido,
Num bom volume de duzentas paginas;
Mas o livro passou despercebido,
E nem as honras mereceu da critica.

Redigiu para a imprensa alguns artigos,
E ninguem deu por elles. Um periodico
Fundou, co’a protecção de dois amigos
E um calote pregado no typographo.
Vinte vezes sahiu a Voz do Povo,
Mas o povo foi surdo á voz do misero.

Poz-se á procura de horisonte novo:
Fez o libretto de uma opera-comica,

Mas não achou, depois de muita pena,
Maestro que a quizesse pôr em musica,
Empreza que a quizesse pôr em scena.

Escreveu em seguida tres comedias
E um drama... não me lembro em quantos actos...
Uns cinco, seis ou sete... e tinha epilogo...
Gastando em vão a sola dos sapatos,
Debaldo cortejou tres emprezarios:
De palco em palco o pobre autor corrido,
Metteu na pasta as producções dramaticas.

Minto: certo emprezario que vencido
Pelo cansaço foi, poz-lhe os Dois bebedos,
Peça com que não se arriscava nada,
A representação, primeira e ultima,
Ficou por todo o sempre assignalada
Por um charivari medonho e sério.
Si a comedia tivesse mais um acto,
Talvez nenhum actor ficasse incolume,
Nenhum banco talvez ficasse intacto!

Dias depois, de certa folha publica
No copioso e lido noticiario
Dizia-se, a respeito dos Dois bebedos,
Que um bebedo era o autor, o outro o emprezario.

Mas a esperança não deixou Rogerio,
E elle, febril, sequioso de renome,
Por diante foi! Visou todos os generos

E em nenhum acertou. Morria á fome,
Si acaso não possuisse oitenta apolices,
E só contasse co’a litteratura
Para as ordens satisfazer do estomago.
Para a vida aguentar acerba e dura.

Escreveu com vagar alguns capitulos
De um romance chamado Amor maldito
Mas no meio estacou, e, com desanimo,
Destruiu tudo quanto havia escripto.

Os elementos reuniu, solicito,
Para um grande poema, uma obra prima,
Cujo assumpto seria a nossa Patria;
Escolhendo por metro a oitava rima,
Quiz por modelo a fórma dos Luziadas;
Mas, falhando-lhe os versos e as idéas,
Nunca mais quiz saber de poemas épicos.

Seu nome em todas as polyanthéas
Appareceu, firmando artigos frivolos,
Cuja inserção quasi a chorar pedia.
Rogerio Brito em toda a parte lia-se;
Entretanto, ninguem o conhecia.
Nem uma citação, ligeira e rapida,
Faziam delle os outros literatos...
Ninguem lhe dava a minima importancia...
Publico inepto! multidão de ingratos!...


II

Numa noite fatal em que Rogerio
Em vão tentou conciliar o somno,
E da Fortuna o perfido abandono
Memorou entre lagrimas,

— Cansado de pensar nos tantos obices
Que lhe oppunha malevolo destino,
Da sua cama inhospita o mofino
Levantou-se de subito.

O seu fato melhor vestiu num apice;
Poz o chapéo, pegou no guarda-chuva;
Calçou numa das mãos vistosa luva;
Sahiu de casa lepido.

Era de madrugada. Melancolica
Na planicie dos céus vagava a lua.
Nem um cão, nem um bebedo na rua.
Era tudo silencio.

No Rocio morava o insomne, o Icaro,
Perto da rua do Ouvidor, e como
Se obedecesse a repentino assomo
De perturbado espirito.

A direcção tomou da «grande arteria».
Chegado ao largo, pára, o olhar ardente

Medindo a rua que lhe fica em frente,
Longa, sósinha, estupida.

— Eil-a! murmura. O ang’lo rectilineo
Que dos lampeões descreve a dupla fila,
Aos seus olhos esplendido scintilla
Com effeitos phantasticos.

Já viste alguma vez, leitor benevolo,
A rua do Ouvidor de madrugada?
Dir-se-ia uma travessa abandonada,
Uma viela insipida.

Quando o nosso inditoso comediographo
Entrou a percorrer a rua, tudo
Deserto estava, solitario e mudo,
Como velha necropole.

Apenas dois agentes da ordem publica
Mal animavam essas horas mortas,
E tomava café um grupo ás portas
Do Jornal do Commercio.

Era de junho a madrugada, e, humido,
Não convidava o tempo a estar a gente
Longe do bom colxão flacido e quente
E dos lençóes beneficos.

Porém Rogerio, allucinado o cerebro,
De par em par as lojas viu abertas,
E as lages dos passeios viu cobertas
De individuos em transito.

Lugubre, horrenda phantasia morbida,
Terrivel sonho de cabeça enferma,
Rua tão triste, tão sem luz, tão erma
Enche de povo gárrulo!

Elle janotas viu, numerosissimos,
Nos botequins e nas confeitarias,
E mulheres formosas e vadias
Nos armarinhos cupidos!

Que movimento! parecia um sabbado!
Saltavam rolhas e tiniam copos!
E illuminava aquelle fervet opus
Um bello sol mirifico!

Os transeuntes acotovelavam-se,
Vendo passar quem tanto tinha escripto,
E diziam: — Lá vae Rogerio Brito,
O autor das Nuvens pallidas...

Literatos, artistas e politicos
O chapéo lhe tiravam, respeitosos.
Femineos olhos, meigos e formosos,
Contemplavam-no languidos!

Do Castellões á porta um poeta celebre,
Vendo-o na rua, reverente acode,
E elle dois dedos rapido sacode,
E passa magestatico.

Parece um general — que digo? — um principe,
Passando uma revista aos seus vassallos,

Só se dignando de cumprimental-os
Desdenhoso e fleugmatico!

No emtanto, nessa madrugada frigida,
Na rua do Ouvidor estava tudo
Triste, deserto, solitario, mudo,
Como velha necropole.

Mas Regerio lá vae, pobre lunatico!
Ora os passos minuindo, ora apressando,
Parando aqui e ali cumprimentando
Vultos imaginarios!

Só dos seus pés o ruido echôa estridulo,
Sem que outro som nos echos se desate,
Sonoro, o salto do sapato bate
Na cantaria lubrica.

Afinal, os agentes da ordem publica,
Vendo-o cumprimentar casas fechadas,
Difficilmente, á força de pranchadas,
Levaram-no, prenderam-no.

III

Ha tres annos Rogerio está no Hospicio.
E’ socegado; escreve o dia inteiro.
Quando lhe dão papel, penna e tinteiro,
Não ha doido mais commodo.


Si ha visitas, percebe-lhes o misero
Dizer, embora nada tenham dito:
— Eil-o!... E’aquelle!... Acolá... Rogerio Brito,
O autor das Nuvens pallidas!...