Contos em verso/Contos maranhenses/A nuvem

A NUVEM
 

A scena era na rua
De São Thiago, á meia noite. A lua
Brilhava intensamente
Do céo na amplidão nua,
Azul e transparente.
Que luar o luar do Maranhão! dir-se-ia
Um bello meio-dia,
Illuminado por um sol sem fogo!

A rua era deserta.
De vez em quando, ao longe, apparecia
A negra fórma incerta
De um vago transeunte
Regressando do amor, talvez do jogo.

Que ninguem me pergunte
Quem era o moço que parado estava
Junto ao muro da casa em que morava
O capitão Pedrosa,
Velho cuja honradez foi bem famosa.
Era um moço, — isto basta.
Accrescente-se apenas
Que a cabelleira vasta,
Caindo em crespas, rutilas melenas,

E o chapéo desabado,
Davam-lhe um ar romantico...
— Parado

Já elle estava a um quarto de hora em frente
Ao muro, e impaciente
Esperava. Mas quem? O bom Pedrosa
Tinha tres filhas, cada qual mais feia,
E a mais nova era já senhora idosa,
Que vivia a rezar e a fazer meia.

Debalde o velho pretendeu casal-as,
Correndo festas, frequentando salas...
Jámais lhe foi possivel impingil-as;
Nos saráos, os rapazes
Deixavam-nas tranquillas,
Não dansavam com ellas:
E as miseras donzellas
Eram alvo de satyras mordazes,
Como se fosse um crime a fealdade!

E passaram-se os dias,
E passaram-se os mezes,
E passaram-se os annos,
E com elles passára a mocidade...
E as tres irmãs, sombrias,
Carpindo os máos revezes
E os negros desenganos,
Ficaram para tias
E deram em devotas...

Sabidas essas notas,
Ninguem crerá que o moço de melenas
E chapéo desabado
Ali fosse levado
Por alguma daquellas tres pequenas,
Que não só eram feias como puras.

Não te percas, leitor, em conjecturas:
O capitão Pedrosa
Tinha em casa uma «cria» appetitosa,
Que o somno a muita gente
No Maranhão tirava
Inconscientemente...

Era mestiça e tinha sido escrava,
Ou filha de uma escrava, a rapariga
Que tanta gente boa cubiçava
No tempo em que se passa a historia antiga
Que vim, leitor, contar-te
Com toda a singeleza, mas sem arte.

Mas não estranhes que tirasse o somno
A humilde creatura,
Pois era um ideal de formosura,
Que merecia um throno!
A côr de jambo, o labio nacarado;
O cabello ondulado,
Negro, da negridão dos olhos bellos,
Desafiando anhelos;
Dentes alvos; nariz arrebitado,

Petulante, expressivo;
O corpo esvelto, senhoril, altivo,
De uma fina princeza;
Emfim, toda a belleza,
Que na casa faltava,
Reuniu caprichosa natureza
Naquella moça que nascera escrava!


A linda Philomena
(Ella assim se chamava)
Com muita vigilancia era guardada
Ali, desde pequena;
Jámais sahiu senão acompanhada,
E nem mesmo á janella
Curiosa vizinha
Nunca a apanhou sózinha:
Sempre estava com ella
Alguma das Pedrosas,
E a companhia dessas tres feiosas
Tornava-a inda mais bella,
Sobresair fazendo
O quanto nella havia de estupendo.

A rua de São Thiago
Atravessavam muitos namorados;
Levava-os o desejo, embora vago,
De entrevel-a de longe; mas... coitados!...
As Pedrosas faziam sentinella,
E se um homem qualquer se aproximava,
Philomena sahia da janella...
E o sujeito passava!

Demais, qualquer das tias, desdenhada
Pelos rapazes dos saráos de outr’ora,
Inveja tinha agora
A’ bella requestada.
«Passámos pelo indomito desgosto,
Pensavam ellas, de ficar solteiras
Por sermos feias; queiras ou não queiras,
Tambem o ficas... por motivo opposto.»

Eis que chega a novena
De São Thiago. As filhas do Pedrosa
Uma noite não perdem. Vai com ellas,
Elegante e garbosa
A nossa Philomena,
Guardada á vista pelas tres donzellas.

Durante á cerimonia religiosa,
Na pequenina egreja. á quarta noite
(Moça opprimida é justo que se afoite...)
Ella notou que um moço,
Que já de outra novena conhecia
E lhe causára um intimo alvoroço,
Certos signaes de longe lhe fazia,
Mostrando-lhe um bilhete que trazia;
Pezar de muito esperta,
Responder não podia:
As tres estavam de olho e ouvido alerta.

A situação comprehende o moço, e logo,
Como se endoidecesse de repente,
Grita: — Fujam, que ha fogo! —

De confusão enche-se toda a gente
Que á uma quer sair da igreja aos gritos!
Ha quedas, apertões e faniquitos!
Separam-se as Pedrosas! Philomena,
Que vira o moço preparar a scena,
Chega-se a elle, toma-lhe o bilhete,
E mette-o logo dentro do corpete.
Sóbe ao pulpito um frade barbadinho
E consegue acalmar o borborinho.
Ninguem soube que estupido gaiato
Produzira o medonho espalhafato.

No seu quarto, sósinha,
Philomena, que lia soletrado,
Suspirando de gozo a cada linha,
Leu estas linhas do mancebo ousado:
«Amo-te loucamente!
Se pensas no futuro,
Illude a vigilancia dessa gente,
E amanhã, meu amor, vai ter commigo,
A’meia noite, no portão do muro.
Não correrás perigo,
Por minha honra, o juro.
Se me dàs a entrevista, ó Philomena,
Logo que eu te appareça
Amanhã, na novena,
Leva a mão á cabeça.»

Escusado é dizer que, sem protesto,
Fez Philomena o reclamado gesto,

E é por isso que estava ali parado,
Naquella noite placida e silente,
O chapéo desabado...

O namorado necessariamente
Não se lembrou da lua, mas a lua
Foi, por acaso, protectora sua,
Pois se estivesse escuro,
Não roubaria a mulatinha a chave,
E de mansinho, lepida, suave,
Não abriria o muro...
Elle a nada se atreve
(Pensou): a lua defender-me deve... —

Com effeito, queria
Levar longe a ousadia
O moço cujo peito era offegante
E cujas mãos curiosas...
Mas a lua era guarda vigilante,
Mais vigilante ainda que as Pedrosas.

Entretanto, uma nuvem carregada,
A rolar isolada
Naquelle céo tão limpo,
Parecendo enviada
Por qualquer deusa lubrica do Olympo,
Se não a deusa em nuvem transformada,
Aproxima-se indolentemente
Da lua. De repente,
Vendo a moça indiscreta

O perigo imminente,
Quiz despedir-se inquieta.
— Não! não me fujas, Philomena! Espera
Que aquella benemerita cortina
Cubra a abelhuda austera,
Que, suspensa no céo, nos illumina...

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A nuvem libertina
Tanto tempo os deixou ficar no escuro,
Que, ao surgir outra vez a branca lua,
Já não se via mais ninguem na rua,
Nem estava aberto o muro.