Contos em verso/Contos maranhenses/Lindas scenas
E’ na varanda a scena, onde o trabalho
Occupa tres morenas,
Rosas do mesmo galho,
A quem desponta apenas
Um sol de primavera.
Que lindo! ai, quem me dera
Saber reproduzir tão lindas scenas:
A primeira uma saia finalisa,
E a outra um cós posponta,
E a terceira marcando uma camisa
Está, que já das mãos lhe sahiu prompta.
Na pobre meassaba
(O canapé da misera vivenda)
Das morenas a mãe ligeira acaba
Algumas varas de engenhosa renda.
Trabalho de encommenda.
A velha mão cansada
Dos bilros no vaivem parece nova,
Acompanhando a languida toada,
A invariavel trova,
Entre dentes cantada.
De vez em quando cessa a cantilena,
E ao taquary sorvendo umas fumaças,
A velha mãe ordena
Mais activo trabalho áquellas graças.
Meu Deus! que linda scena!
E que pintor pintal-a poderia!
A primeira das tres, toda alegria,
Tem a feição bregeira;
A segunda é não menos prazenteira;
Mas que melancolia
Entenebrece o rosto da terceira!
A primeira, da mãe severa e dura
A distracção aguarda,
Pois em baixo dos pannos da costura
A Moreninha, de Macedo, guarda,
E, em rapido relance,
Fundo e furtivo olhar manda ao romance.
A segunda parece mais sensata:
As vistas em redor jámais espaça,
Mas a mana maltrata
Um beliscão que é dado em ar de graça.
Si a felicidade só no rir consiste,
Que são felizes todas tres diviso;
Mas a terceira ri de um rir tão triste...
As lagrimas prefiro áquelle riso.
Em vão simúla calma...
Deixa dos dedos lhe cahir a agulha.
Aquella candida alma
Acaso se mergulha
N’alguma dor sincera?
Que lindo! ai, quem me déra
Saber reproduzir tão linda scena!
A velha está serena.
— Que tens, sinhá, que tens? Te desconheço!
Tu bem sabes, pequena:
Quando eu te vejo triste, me entristeço! —
Disfarça a moça a commoção, o enleio,
Partindo a linha co’os formosos dentes,
Mas desfolha no seio
Um rosário de lagrimas ardentes.
Desse modo accusada,
Ergue-se envergonhada,
E no collo materno, abrigo santo,
Tenta esconder o resto do seu pranto.
As outras duas moreninhas bellas,
Erguidas logo, serenar procuram
A dolorida irmã, bem sabem ellas
Que são artes de amor que assim misturam
As lagrimas aos risos
Tristes, amargurados, indecisos:
Mas não sabem da missa nem metade...
Com que meiga piedade
Em beijos degenera
Aquella doce pena!
Que lindo! ai, quem me déra
Saber reproduzir tão linda scena!
A porta da varanda se escancára
E no lumiar a cara
De um velho se apresenta.
Carregando garboso os seus sessenta.
Dá-lhe um solemne, venerando aspeito,
A barba branca que lhe cobre o peito.
Não está só o ancião: traz ao seu lado
Um bonito rapaz, typo de poeta,
E vem acompanhado
Por um cão agitando a cauda inquieta.
Dirigindo-se a velha
Que, sorprehendida, franze a sobrancelha,
— Minha senhora, diz o velho, queira
Perdoar-me entrar aqui desta maneira,
Sem me fazer annunciar; urgente
Caso me traz humilde e reverente:
Este moço é meu filho;
Sahio-me, por desgraça, um peralvilho!
De uma destas meninas
Alcançou entrevistas clandestinas.
E fugiu della, calculando, injusto,
Que eu, que sou velho honrado, me opporia
Ao casamento. Só a muito custo
Me revelou essa patifaria,
Da qual me prevenira um bom amigo.
Senhora, aqui o tem, trouxe-o commigo,
E peço-lhe, para este bigorrilha,
Com o seu perdão, a mão de sua filha,
Si o julga digno de casar com ella.
Nesta pallida téla
Não ponho, que o pincel me não ajuda,
A longa scena muda
Que se passou; da velha o grande espanto,
E da culpada o pranto,
E a sorpresa das manas, e o enleio
Do seductor, parado ali, no meio
Da casa, cabisbaixo, e o pae sisudo,
De barbas brancas e figura austera,
E o cão curioso, farejando tudo,
Indifferente á sorte da pequena.
Que lindo! ai, quem me déra
Saber reproduzir tão linda scena!
Quando a velha, passado o espanto immenso,
Lançou á moça um longo olhar magoado,
Esta, mordendo o lenço,
De lagrimas lavado,
— Mamãe, perdôa... murmurou apenas.
Ai, quem me déra, em verso aprimorado,
Saber reproduzir tão lindas scenas!