Lorena, 19 de janeiro de 1902
editarEscobar, saúdo-te.
Ao chegar, ontem, de Jacareí, encontrei aqui, esperando-me o Taine e o Camilo. E foi uma esplêndida surpresa! Obrigadíssimo. No dia em que chegaste a S. Paulo parti eu de lá. Lamento muito o desencontro. Previno-te, porém, que invariavelmente nos dias 5, 6 ou 7 de cada mês lá estarei. Assim se tiveres de realizar qualquer viagem até lá, convém que a aproximes tanto quanto possível daquelas datas, porque assim nos encontraremos. Manda-me notícias do Álvaro e Jovino. Não sei porque não me escrevem. Se for possível vá a S. Paulo no dia 6 de fevereiro, dia em que também, para lá seguirei. Infelizmente não posso prolongar esta carta, tento entretanto muito que contar. Estou esmagado de ofícios e requerimentos! Recomenda-nos a todos os teus, abraça os amigos e creia sempre no
Euclides
P.S.― Recebi ontem uma carta do Laemmert. Virão as primeiras provas dos Sertões dentro de oito dias.
[1902?]
editarEscobar,
Envio-te a toda a família muitas felicitações. ― Mais uma filha… (aqui acodem-me ao bico de pena meia dúzia de considerações amargas-filosóficas que prudentemente calo). De qualquer modo envio-te um parabéns sincero: que ela cresça e te seja, mais tarde, quando te cobrirem desilusões e cabelos brancos, uma Cordélia carinhosa e pura. ― Seguem os jornais e cartas. ― Abraça-te o amº.
Euclides
Lorena, 10 de abril de 1902
editarMeu caro Escobar, Somente hoje posso te agradecer da delicadeza da participação do nascimento de tua filhinha. Tenho levado vida trabalhosa e dura. Felizmente trabalhosa apenas, o que não é um mal. Cheguei hoje de S. Paulo ― e lá não tive o prazer de encontrar-te. Porque não escolhes os dias 6, 7 ou 8 de cada mês para ir até lá. É o melhor meio de nos vermos. Eu pelo menos tenho o maior desejo de abraçar o excelente companheiro. Responda-me neste sentido. É bem possível que eu te acompanhe, ao voltares, até S. José para rever a nossa ponte. A Saninha manda muitos parabéns e saudades à tua digna sra. Desejamos todas as venturas à gentil Esmeralda. Creia sempre no velho amigo
Euclides
P.S. ― O meu livro vai indo regularmente. Ainda hoje respondi a carta do Laemmert ― sobre o papel a empregar. Tenho já revisto algumas provas. Não estará, porém, pronto no fim deste conforme o contrato.
Euclides
Lorena, 21 de abril de 1902
editarEscobar
Respondo a tua última carta. Ontem te escrevi. Mas como é preciso responder logo a tua pergunta inspirada pelo último discurso do Martim Francisco ― renovo a carta. Também me impressionou aquela belíssima oração ― embora aquele homem tenha o mais desastrado dos critérios, como historiador. Veja o que disse ele do padre Feijó ― cujo perfil napoleônico e escultural é certamente a mais bem acabada figura de lutador de toda a nossa história. Revolto-me vê-lo tratado daquele modo. Por outro lado quantas verdades considerando a nossa situação atual! E que adorável ironia! E que felicíssima descoberta ― a deste Paes Ferreira, cuja face murcha orlada de uma suíças safadas é a fisionomia exata ― (um prodígio de síntese orgânica) dos nossos politicões. Mas penso contigo: a nossa raça (?) está liquidada. Deu o que podia dar: a escravidão, alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está ― a bandalheira sistematizada. A monarquia só nos poderia se fosse heróica. Uma monarquia guerreira e atrevida. Imagina um Carlos XII arremessando-nos sobre o Prata subjugando a Argentina… Mas onde o encontrar? E onde estão os suecos? Quer isto dizer que a restauração não resolve o problema. Resignemo-nos. Quanto ao livro o Laemmert pelo que vejo não o dará no fim deste, como está escrito no contrato. Está pronta apenas a 1a parte e começada a 2a. ― Em todo o caso tenho recebido as provas tipográficas, e creio que a publicação se fará até fins de maio. Não sei como. Seja como for, porém, alenta-me a antiga convicção de que o futuro o lerá. Nem outra coisa quero. Serei um vingador e terei desempenhado um grande papel na vida ― o de advogado dos pobres sertanejos assassinados por uma sociedade pulha, covarde e sanguinária… Além disto terei o aplauso de uns vinte ou trinta amigos em cuja primeira linha estás. E isto me basta. Tive há três dias ligeira congestão pulmonar. Passou, deixando um leve arrepio de morte, que também passará. Vou no dia 5 ou 6 a S. Paulo. É absolutamente necessário que lá estejas. Não faltes; mas escreva-me antes dizendo onde nos encontraremos. Lembranças a todos os teus. Dê notícias minhas ao velho Mateus. E creia sempre no amo velho
Euclides
Lorena, 14 de maio de 1902
editarEscobar
Saúdo-te e todos os teus. Estive em S. Paulo onde não te encontrei, verificando depois que havia marcado o princípio de junho para a tua ida. Não faltes, pois, desta vez. Pretendo levar-te as primeiras páginas, já definitivamente impressas, do meu livro. Mas não faltes. São raros os bons companheiros, nestes tempos maus e bem sabes que eu não dispenso os raríssimos que possuo. Ao chegar de S. Paulo tive em casa, dolorosíssima surpresa: o Quidinho queimado, o rosto em chaga, vitimado por uma bomba! Imagina lá o meu espanto e a minha dor. Felizmente (se posso dizer tal coisa) não ficou ele cego ― e creio que se vai restabelecendo graças aos nossos cuidados de todos os instantes ― e como somente em dois pontos a queimadura atingiu fundamente os tecidos, não ficará transfigurado. Sempre planeei estar aí dia 18, no 1o aniversário da ponte. Não estarei aí. Mas estarão: você, o Álvaro, o João Moreira e o Jovino. Encaminhem-se para lá naquele dia, paguem uma garrafa de cerveja (Barbante) ao velho Mateus e recordem-se por um minuto do amigo agradecido, ausente… Será uma bela comemoração. Neste país de esnobismo reles não desejo outras. Manda-me dizer depois os episódios principais da festa. Não imaginas como me entristeceu o inesperado falecimento do Leite, na ocasião em que a fortuna o favorecia parecendo destiná-lo a uma esplêndida carreira. É possível que tome, afinal, a resolução de ir para a Politécnica, onde há bons companheiros e poderei encontrar os elementos de vida que faltam nesta convivência estúpida com as dezenas de empreiteiros que rodeiam. Comunicar-te-ei qualquer resolução que tomar definitivamente a respeito. Não sou mais extenso porque tenho de atender a todo o instante ao doentinho que exige agora toda a nossa atenção. Adeus. Lembranças a todos e dispõe do amo velho
Euclides
Lorena, 22 de maio de 1902
editarEscobar
Desculpa-me este papel: procurei debalde a caixa de cartas, e não quero demorar por mais tempo a resposta à tua última e às impressões que meu causou. ― Magnífico! A comemoração do aniversário da minha ponte (ah! não estar ela num dos trechos deste incomparável Paraíba) não poderia ser melhor. Convirás em que eu nunca imaginei que lá aparecessem algumas centenas de indivíduos que, com os foguetes, as bandeirolas velhas, o assobio dos moleques e os tabuleiros de doces, são a matéria-prima do que nesta costa d'África da América se chamam manifestações!… Não! sempre desejei aquilo: dois ou três amigos que ali chegassem e se lembrassem, durante algum tempo, de mim. Iludi-me apenas num ponto: os numerosos quatro amigos de que falei antes, reduziram-se a dois: você e o Lafaiete. Mas estes… Estou satisfeitíssimo ― O Quidinho está restabelecido. Deves ter visto pelos jornais que talvez esteja, breve, em pleno mar, à cata do lugar para um presídio. Adorável comissão! Calcula lá, se podes, o enorme prazer com que vou desempenhá-la… e se pudesse escolher também os presidiários… Adeus, meu velho Escobar. Abraça-me o Lafaiete. Recomenda-me a todos os teus. Olha um pouco o velho Mateus. E creia no
Euclides
Lorena, 10 de agosto de 1902
editarEscobar
Saúdo-te e todos os teus. Venho do Rio, onde fui ― celeremente, de um noturno a outro, ― para conversar com o Laemmert e saber o dia que, afinal, ficará pronto o meu encaiporado livro. Felizmente os frios alemães receberam-me num quase entusiasmo, e, quebrado o antigo desalento, quase prevêem um sucesso àquelas páginas despretensiosas. Apresso-me em dar-te a notícia, porque foste o meu melhor colaborador neste ermo de S. José do Rio Pardo, e peço-te transmiti-la ao Augusto, dizendo-lhe que o nosso contrato sem escrituras tem a garantia da minha palavra, que às vezes parece ser palavra de rei. Agora, um grande, um sério, um reservadíssimo favor. Tão reservado que te peços não o boquejes nem mesmo junto ao ouvido da tua filhinha mais nova: Lá vai: constou-me (não preciso dizer quem foi o desalmado) que há no encontro direito, ― lado do Pompeu, ― da ponte, uma frincha descendo por todo ele até embaixo. Imagina como fiquei, e quanto cabelo branco vai-me nascendo dentro desta ansiedade… Pensei seguir logo até aí. Infelizmente, não posso agora. Por isso escrevo-te. Quero que, ― com a tua cautela habitual, sem que ninguém o perceba, ― observes aquilo, e indiques-me, num esboço qualquer, o lugar, as dimensões aproximadas da coisa, e se é visível e se ameaça aumentar, ou se é um recalque comum nestas obras. Não és engenheiro, mas, que diabo, ― também estas coisas não são tão transcendentes… De qualquer modo, aguardo a tua resposta contando os dias. Esta chegará aí na segunda ou terça, à tarde. Poderei ter, aqui, a resposta na sexta ou sábado. Não faltes, ― sobretudo se tiveres de confirmar meus pressentimentos. Adeus, meu velho amigo, e creia sempre no
Euclides
Lorena, 24 de agosto de 1902
editarEscobar
Recebi, sim, a tua carta. Obrigadíssimo. Amanhã te escreverei mais longamente. Li a verrina do tal Júlio no Comércio ― e não lhe liguei importância alguma. Protesto contra a explicação que me deste! Pelo amor de Deus! Então era preciso que me dissesses aquilo? Então não sabes o infinito desprezo que tenho por tal gente? Andaste mal, meu velho Escobar. Creia que não é com muita facilidade que se abalará a profunda estima e altíssimo conceito que te dedica o companheiro de sempre
Euclides da Cunha
P.S. ― Se houver tempo desfaça a procuração para processar o Comércio. Não vale a pena. Estás muito acima dessas coisas.
Euclides
Lorena, 27 de agosto de 1902
editarPlínio Barreto
Saúdo-te. Recebi o seu cartão e agradeço muito o delicado favor. Já recebi, de fato, as provas. Felizmente o Mesquita recebeu em tempo a minha carta. Não saiu o artigo; e ainda tremo pensando na singular figura que ia fazendo, nesta quadra de embrulhos e cutiladas, a tratar de coisas tão diversas. Que ele não saia tão cedo ― ou nunca mais, o que é melhor. Lembranças a todos os bons companheiros do confrade e amº.
Euclides
Lorena, 17 de setembro de 1902
editarEscobar
Saúdo-te. ― Ciente do que dizes na tua última carta. A viagem a S. Paulo, porém, deve ser feita nos dias 2 ou 3, pois se eu for a S. José deverei partir de 1o a 4 ou 5. Neste caso, o melhor é transferir a ida. Espera-me aí e voltaremos juntos a 6 para São Paulo. Serve? Quanto ao mais: a tua inclusão no Diretório. Belo pensamento. Lembraste do profundo Xavier de Maistre? Que diabo, meu amigo! ― É preciso que deixemos la bête espojar-se um pouco… Nada de exagerado idealismo: nada de escravização completa à Teoria e ao Princípio ― umas coisas rebarbativas que estragam a vida e a dificultam. Já não fazes (como eu) pouco, conservando uma forte Centelha de independência mental nessa Chateza (plena mania do maiúsculo!) horrorosa que aí vai. Depois… que estupendos contrastes, a gente passa duas ou três horas com o Taine, ou com o Camilo, ou qualquer outro velho amigo, e vai confabular com o Nascimento sobre a organização da mesa eleitoral e sobre o solerte eleitor B etc. Que tombo… mas também que belo exercício. O espírito também precisa de ginástica e não lhe vai mal às vezes um salto mortal desses. Além disto assim está para salvar-te e não deixar que aí fiques muito convictamente membro de Diretório, a Ironia, a nossa boa irmã mais velha, cautelosa, previdente e cauta, cortando devagarinho na alcochoada papeira mental dessas boas almas desses santíssimos pândegos que se não existissem fora preciso inventá-los, adiposa chair à canon com que nós outros idealistas incorrigíveis, damos o nosso diário combate ao Tédio e a Tristeza… Assim a tua resolução tem meu beneplácito franco. Lamento apenas que a nova situação te impossibilite em parte de conversar mais folgadamente sobre a comédia republicana, que vai no seu período agudíssimo de graça mercê do último entreato hilariante de Ribeirãozinho, Araraquara e malocas adjacentes. Infelizmente vai ela perdendo a forma antiga. Dispensou a princípio Tácito, extinta a decomposição sinistra do Encilhamento e das Revoltas: despedindo depois Molière desmoralizado e entremez eleitoral. ― desmoralizou depois Daudet, criando tipos que espantariam Tartarin: acalcanhou Sardou… agora é a pochade franca. O contra-regra é o Fregoli. Admiráveis tempos… Mas veja o que faz a ausência! Estou aí com uns pensamentos esparsos tão desconexos que outro qualquer, não entenderá o que vou dizendo. Faço por este ponto ― e aguardo a réplica ― enviando-te agora um abraço.
Euclides
Lorena, 3 de outubro de 1902
editarEscobar
Saúdo-te e à Exma. senhora, agradecendo-lhe o fidalgo acolhimento com que aí me honraram. Aqui cheguei; parti logo para o Rio; lá conversei com os Laemmert sobre o livro que estará pronto ao fim deste. Estive em Casa Branca com o Valdomiro que prometeu-me ir com você a S. Paulo, a fim de virem ambos até aqui. Não te esqueças, porém, de avisar com seis dias de antecedência, por causa das minhas viagens. Em todo o caso, caso sobrevenha alguma em que tenha de demorar 5 ou 6 dias, te avisarei, a fim de evitarmos algum desencontro. Abraça por mim ao Jovino, Zé Rodolfo, João Moreira e Bráulio, aos quais não escrevo por ter encontrado aqui, sobre a mesa, uma montanha de ofícios a ler e a resolver. Recomenda-me aos teus, e dispõe do
Euclides.
P.S. ― No dia 6 estarei em S. Paulo. Estará também a Darclée. Por que não resolves a viagem para esse dia? Veremos juntos a genial artista. Feito?
S. Paulo, 11 de outubro de 1902
editarVicente de Carvalho
Aqui cheguei, sábado; fiz o Relatório no domingo; entreguei-o segunda-feira; mas não voltei na terça para Lorena ― ressolvendo fazê-lo somente hoje, quarta, pelo norturno, a fim de cumprir a promessa de esperá-lo aqui. É que homem prático, massudo, enrijado nessa engenharia rude ― não avalio as grandes abstrações dos sonhadores e as promessas enganadoras dos poetas… Volto para a minha Lorena e lá fico inteiramente ao seu dispor. Recomende-me à Exma. sra.
Euclides da Cunha
P.S. ― Dentro de vinte dias ou um mês, o dr. Cardoso de Almeida irá até aos Búzios. Vamos?
Euclides
Lorena, 19 de outubro de 1902
editarEscobar
Respondo a tua carta, agora recebida. ― Pilhérico sonho, o teu… Ministro! Ministro da Viação este teu pobre amigo! Só mesmo em sonhos… Mas queres saber de uma coisa? Prefiro ser realmente ministro nos breves minutos de um sonho, ocupando a imaginação de um amigo, do que o ser, de fato, nesta terra onde não há mais altas e baixas posições… Minado tudo. Tenho passado mal. Chamaste-me a atenção para vários descuidos dos meus Sertões; fui lê-lo com mais cuidado e fiquei apavorado! Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente… Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro? Manda-me dizer daí algo a respeito. Imagina que lá encontrei à falcão, à pranchada, braço à braço, tempos à tempos, etc. etc. Não te posso dizer como fiquei. Por fim abrindo, ao acaso, depois do jantar, uma página, encontrei isto: “Não iludiu à história…” Não te descrevo o que houve! Quer isto dizer que estou à mercê de quanto meninote erudito brune as esquinas; e passível da férula brutal dos terríveis gramatiqueiros que passam por ai os dias a remascar preposições e a disciplinar pronomes! Felizmente disseram também que o Victor Hugo não sabia francês. Vou escrever ao Laemmert para reduzir quanto possível, a primeira edição, se houver tempo. Mas, egoisticamente, falei-te só no que me dizia respeito. Desculpa-me; e escreva-me logo. Quero que venha daí, de longe partindo dessa boa alma de velho companheiro, uma palavra que me anime um pouco. Adeus. Recomenda aos teus ― o velho amº.
Euclides
O Napoleão de Roseberry… Extraordinário.
Lorena, 3 de dezembro de 1902
editarCoelho Neto
Antes de tudo um parabéns sincero por vê-lo assim ― como o mensageiro da Maratona ― exausto da carreira, mas levando a notícia do triunfo. É a fadiga heróica de um grego. Não a tenho eu. Nessa meia escravidão de engenheiro oficial a seguir e a voltar, a voltar e a seguir, as intermináveis viagens, para os mesmos pontos, tenho a miserável canseira de um Sísifo que é o fardo de si mesmo a rolar por essas estradas… ou então realizo cada dia aquela sombria tarefa siberiana de que nos fala Dostoievski, consistindo em abrir todos os dias desmesurada vala e preenchê-la, depois, todos os dias. Assim vou, no círculo vicioso de uma faina ingrata. Ao passo que o meu bom amigo desaparece adiante ― numa tangente retilínea, e firme, e dilatada e vai ― como mensageiro da Maratona ― senão para Atenas, para o futuro onde já está chegando, levando o grito da vitória. E não descansará na reta. As férias de que fala, sei que as aproveitará para maiores trabalhos; e bom será se delas aproveitar alguns dias para vir até cá, a esta Tebaida-caipira de Lorena, onde o aguardarei com a satisfação mais viva. Peço, porém, para mais ou menos prefixar o dia, de modo que, desde já, disponha as coisas para não me achar na ocasião numa das minhas viagens. No dia 8 estarei em S. Paulo, Hotel da França. Disseram-me que o Correio da Manhã de ontem, anuncia para hoje o artigo de José Veríssimo sobre Os Sertões. Outros virão, talvez. Alguns, talvez, acerbos. E pensando nestes nem sei como enfrentar os adversários prováveis nessa atitude deplorável de engenheiro-cometa manietado pelo ofício e pela turba reclamadora de empreiteiros roazes. O resultado será levar pancada como cavalo acuado, como dizem pinturescamente os nossos admiráveis patrícios dos sertões. Restar-me-á, nesse caso, o consolo de haver feito por eles o último sacrifício ― e o recurso para apelar para as gentes do futuro para as quais especialmente está escrito aquele livro mau e implacável. E restar-me-ão os fartos corações de alguns amigos. Não sei porque o Laemmert não te enviou ainda o livro. Lá deixei recomendação expressa. Não admira porque também eu não tenho um único! O que tinha, tirou-me, à força em S. Paulo, um irmão mais velho, o Mesquita. Até breve. Saúdo respeitosamente a tua Exma. senhora. Abraços e saudades ao Bierrenbach e Campos Novais. Do
Euclides da Cunha
Lorena, 3 de dezembro de 1902
editarExmo sr. José Veríssimo
Ao ler no Correio de ontem a notícia do seu juízo critico sobre Os Sertões, tive, renascida, uma velha comoção que já supunha morta ― a de calouro, nos bons tempos passados, em véspera de exame. E não era para menos, dada a competência do juiz. Felizmente este foi generoso. Demonstra-o o belo artigo que acabo de ler, no qual, atendendo principalmente às observações relativas à minha maneira de escrever, colhi proveitosos ensinamentos. Num ponto apenas vacilo ― o que se refere ao emprego de termos técnicos. Aí, a meu ver, a crítica não foi justa. Sagrados pela ciência e sendo de algum modo, permita-me a expressão, os aristocratas da linguagem, nada justifica o sistemático desprezo que lhes votam os homens de letras ― sobretudo se considerarmos que o consórcio da ciência e da arte, sob qualquer de seus aspectos, e a tendência mais elevada do pensamento humano. Um grande sábio e um notável escritor, igualmente notável como químico e como prosador, Berthelot, definiu, faz poucos anos, o fenômeno, no memorável d com que entrou na Academia Francesa. Segundo se colhe de suas deduções rigorosíssimas, o escritor futuro será forçosamente um polígrafo; e qualquer trabalho literário se distinguirá dos estritamente científicos, apenas, por uma síntese mais delicada, excluída apenas a aridez característica das análises e das experiências. Se não mo impedisse esta minha vida perturbada de commis-voyageur da engenharia (e hoje mesmo seguirei para S. Luís do Paraitinga em viagem urgente!) abordaria esta questão pela imprensa. Mais competente, porém, para isto, é o sr., que, ademais, tem grandes responsabilidades pelo nosso movimento literário. Por que não a agita? Eu estou convencido que a verdadeira impressão artística exige, fundamentalmente, a noção científica do caso que a desperta ― e que, nesse caso, a comedida intervenção de uma tecnografia própria se impõe obrigatoriamente ― e é justo desde que se não exagere ao ponto de dar um aspecto de compêndio ao livro que se escreve, mesmo porque em tal caso a feição sintética desapareceria e com ela a obra de arte. Desejo muito conhecer o seu pensamento acerca desta questão; e comprometo-me desde já a defender, na medida das minhas forças, a tese acima esboçada. Terminando, resta-me agradecer de todo o coração o nobilitador juízo que manifestou por mim e a verdadeiramente admirável compreensão que teve do meu livro, em que pese a uma leitura naturalmente rápida. Peço-lhe que me recomende à Exma. senhora e filhos, acreditando sempre na alta consideração do ― amº. e admirador
Euclides da Cunha
P. S. ― Estarei de volta, de S. Luís, no domingo, 7 do corrente.