Correspondência ativa de Euclides da Cunha em 1909

Rio, 5 de maio de 1909 editar

Meu digno amo dr. Oliveira Lima,

O motivo essencial da falta de minhas cartas é este: Andei perdido, dentro da Caverna de Platão… Conhece com certeza a alegoria daquele máximo sonhador ― de sorte que bem pode avaliar os riscos que passei. Volto à claridade embora ainda sinta a repercussão formidável das rixas intermináveis dos filósofos e os últimos ecos irritantes da algazarra das Teorias. Tudo isto quer dizer que me preparei para o concurso de Lógica. Mas surge um contratempo: a mesa examinadora (oficial) demitiu-se há um mês, e até hoje não foi possível organizar-se outra! De sorte que o problema se complicou singularmente. Ontem: serei feliz no concurso? Hoje:… e haverá concurso?

Nesta situação de espírito, não há alinhar-se ideias ― para uma conversa calma com um bom amigo ausente. Escrevo-lhe apenas para que o sr. e d. Flora não nos incluam entre os ingratos.

Uma notícia a correr: foram no dia 12 eleitos o velho Lafayette e Vicente de Carvalho e embora a do 1º seja eleição de uma vaga, o velho lutador merecia bem essa homenagem de seus patrícios.

Muitas e respeitosas saudações a d. Flora, e receba um abraço do

Euclides da Cunha

P. S. ― Não preciso dizer-lhe que transmiti logo ao Calmon o seu recado sobre a Flora Brasiliensis ― há dias ele afirmou que já tinha satisfeito o seu pedido. Muito agradecido pela sua lembrança a propósito das terras do alto Paraná. Logo que me desembarace do Kant, do Comte, do Spencer, do Espinosa (o mais maravilhoso dos malucos) e não sei mais quantos sujeitos que vieram a este mundo apenas para tortura e desespero do espírito humano ― logo que me veja livre desses felizes medalhões ― irei dedicar-me de corpo e alma à tarefa.

Mas ao falar nos sujeitos precitados, não tenho meios de conter uma expansão de sinceridade: que desapontamento, lendo-os detidamente! Até então eu rodeava-os de uma veneração religiosa. De perto, vi-lhes a inferioridade. Kant, sobretudo, assombra-me, não já pela incoerência (porque é o exemplo mais escandaloso de um filósofo a destruir o seu próprio sistema) senão pelos exageros apriorísticos que o reduzem. A minha opinião de bugre é esta: o famoso solitário de Königsberg, diante do qual ainda hoje se ajoelha a metade da Europa pensante, é apenas um Aristóteles estragado. Comte (que eu só conhecia e admirava através da matemática) revelou-se-me, no agitar ideias preconcebidas e prenoções, e princípios, um ideólogo, capaz de emparceirar-se ao mais vesânico dos escolásticos, sem distinção de nuances, em toda a linha agitada que vai de Roscelin a S. Tomás de Aquino. E quanto a Espinosa, surpreende-me que durante tanto tempo a humanidade tomasse ao sério um sujeito que arranjou artes de ser doido com regra e método, pondo a alucinação em silogismos!

Mas faço ponto. Não pararia mais se desse curso à onda de rancor que me abala diante desses nomes outrora tão queridos. Felizmente aí estão George Dumas, Durkheim, Poincaré, e na Áustria, o lúcido e genial Ernesto Mach ― almas novas e claras, que nos reconciliam com a filosofia. Adeus outra vez; e outra vez um abraço do

Euclides

Em tempo ― Recebi o seu recado, dado pelo Primitivo Moacir, e já escrevi ao Alves e ao Laemmert ― para que enviem os livros desejados.

Saiu ontem ― simultaneamente ― no Jornal e no Estado o seu notável artigo sobre Machado de Assis. Ainda estou num terço da leitura, mas já ajuizei dele o bastante para dar-lhe os meus parabéns pela precisão e lucidez com que considerou o inolvidável mestre.

Rio, 25 de maio de 1909 editar

Coelho Neto

Um bravo pela tua delicadeza moral!

Seria cruel se eu recebesse à noite aquele telegrama...

Mas não seguirei o teu conselho. O revés desafoga-me: merecido castigo ao deslize de haver tentado deslocar um concorrente oficialmente mais amaparado pelo Direito.

A minha reta, diante das vacilações do Governo, é esta: renunciar. É o que vou fazer já, por telegrama.

E sinto-me verdadeiramente feliz, porque nesta longa fox-hunting que principia no voto do Accioli e termina nas tendências simnpáticas de alguns poderosos ― em tudo isto, descobri uma alma honesta e perfeitamente clara, a tua.

Logo ou amanhã te abraçará, agradecido, o teu

Euclides

Rio, 25 de julho de 1909 editar

Meu ilustre amigo Dr. Oliveira Lima

Não será, certo, nesta carta, escrita vertiginosamente, que poderei dizer todas as razões da demora no responder a sua última e prezada carta. Somente há oito se encerraram os meus dias agitados. Para defini-los bem eu teria de contar-lhe a história do mais atrapalhado, confuso e inconsequente dos concursos. Não fosse ele um concurso de Lógica!… E teria também de juntar artigos de Oliveira e Silva, de não sei quantos padres do “Hebdomadário Católico” de um tal Sentroul, jesuíta sanhudo que pontifica hoje em S. Paulo, e não sei mais quantos outros retardatários, que sem motivo algum filaram-se-me as pernas, com uma ânsia de morder, em que venceram todos os mastins de todos os fundos dos quintais! Mas seria dar, talvez, importância excessiva ao caso. Explicação: A causa de todo este desquerer foram as referências desatenciosas que fiz ao cardeal Mercier!

Quanto ao concorrente feliz – tranquilo Tertius gaudet, presenteado com o 1º lugar em toda esta desordem, o extraordinário Farias Brito, grande filósofo, único filósofo brasileiro (que o sr., tão sabido nestas coisas, não conhece!) embuchou serenamente na majestade nebulosa da sua metafísica. Mas não foi escolhido. Precisamente na véspera do dia em que o governo devia resolver sobre a nomeação (caso intricando porque se eu tinha de meu lado a simpatia do barão e de outros bons amigos, ele tinha nada menos que três bancadas, entre as quais a do Pará!) – precisamente naquele ocasião estourou o laudo Alcorta, e no meio dos telegramas, todos ansiosamente lidos, de Buenos Aires, passava, a relanços, o nome do Peru versus Bolívia, de cujo autor creio que também recebi eficacíssima proteção.

Nomeado, embora malqueira a metafísica – para demonstrar-lhe a justiça do ato, vou, no próximo vapor, fazer uma coisa simples: marndar-lhe os livros de Farias Brito.

O meu d. João VI mandei-o encadernar na Imprensa Nacional. Li-o; e o crescendo, a que me referi em carta anterior, manteve-se até ao fim. Vou relê-lo; e penso que até farei as pazes com o 1º capítulo, tão brilhantes e admiráveis se me afiguraram os demais. Não é minha esta opinião. Outros já lhe devem ter dito que o sucesso foi excepcional; e se o espírito nacional não tivesse tão escravizado a uma poderosa e nefasta preocupação de considerações pessoais – o efeito seria muito maior. A prova – e é uma prova maciça, tangível – é que o Briguet está encantado; e a alegria de um livreiro, nesta terra, diante de um livro de alto preço – vale dez artigos de crítica encomiástica. Eu espero que se aplaque um pouco a histeria política para dizer o que penso a respeito. O mesmo esperam Coelho Neto e outros. Se o sr. aqui estivesse, e visse, como vemos, que só se leem interviews ou intrigas de politicagem – compreenderia a nossa atitude. Não é o tempo que nos falta – é a serenidade para pensar em outra coisa além do alarmante assunto de todos os dias. Os mais indiferentes, como eu, estão contagiados do mal. Porque é uma doença, isto que aí está, nas ruas, na imprensa e nas câmaras, a agitar a nossa fraqueza irritável, preparando talvez os mais funestos desenlaces. Não se pode dizer tudo em carta. Sei, por intermédio dos amigos de S. Paulo, qual a sua opinião; e aplaudo-a. Não poderia ser outra. Mas por outro lado… No próximo vapor conversaremos mais longamente.

Renovei ao Francisco Alves o pedido para mandar-lhe os Contrastes e Confrontos e Peru versus Bolívia – que o sr. não deve devolver porque são seus.

Todos de casa enviam muitas saudades e lembranças a Exma. sra. d. Flora de quem a Saninha se recorda com saudades. Aceite um apertado abraço do

Euclides da Cunha

P.S. – A conselho médico assisto agora à rua de N. S. de Copacabana 23 H, ao lado de três grandes vizinhos incomparáveis: o sol, o céu e o mar.

Rio, 25 de julho de 1909 editar

Aos srs. Lello & Irmão, Livr. Chardron. Porto

Recebi ontem as provas do livro e hoje as devolvo revistas. Como verão, a nova grafia da Academia continua a perturbar-me grandemente na revisão.

Devo aceitá-la por coerência; mas na realidade atraído por tantos afazeres, não tive ainda tempo de exercitá-la.

As minhas próprias cartas denotam desta desordem gráfica. Em geral obedeço por hábito. É feição antiga. Felizmente o revisor de V. Sa não procede mecanicamente, como quase todos; é realmente inteligente, e acautelado ― como o demonstram as últimas provas que recebi…

Euclides da Cunha

Rio, 3 de agosto de 1909 editar

[telegrama]

dr. Otaviano Vieira

São Carlos

Vou melhor mas não posso ainda sair adiante Saninha dinheiro precisar voltar pagarei aqui.

Saudações a todos

Euclides

Rio, 6 de agosto de 1909 editar

Otaviano

Ontem te escrevi ainda de cama. Renovo hoje o assunto, melhor esclarecido pela Saninha que acaba de chegar. Assim está decidida a vinda do velho, senão definitivamente, ao menos por algum tempo.

Acordamos então no seguinte: ele que se prepare, de modo que possamos ir buscá-lo na ocasião oportuna. Diz-me a Saninha que as boas almas são-carlenses estranham ― comovidas ― (santas almas!) a minha pecaminosa indiferença, diante da moléstia do meu pai. Mas esta indiferença é uma fantasia dessas almas caridosas, sempre muito prontas a derramarem lágrimas sobre os nossos defeitos ― mas no geral cegas, surdas e mudas diante das nossas dificuldades. Felizmente estou bem certo de que terás esclarecido as coisas. Ainda convalescente do mais atrapalhado e traiçoeiro dos concursos (é uma história que te contarei mais tarde) diante de uma congregação na maioria comprometida com outro candidato ― é claro que eu não poderia seguir logo para aí ― no meio do ano ― quando o próprio ministro, ao nomear-me, me recomendava que ressarcisse tanto quanto em mim coubesse, o tempo que se perdera. Sobre tudo isto ― e exatamente na ocasião mais crítica, veio a débâcle pulmonar, cujos efeitos ainda estou sentindo. Como deliberar e viajar no meio de tanto embrulho? Quero que sejas o meu advogado perante os amigos desconhecidos, que tanto se alarmam com a secura dest'alma descurável.

A Saninha contou-me os desvelos e cuidados com que você e Adélia rodeiam o velho; e não me disse nenhuma novidade. Também nós os prestaríamos, se o destino não andasse até hoje a jogar-me como peteca por esse mundo além. Somente agora descansou, o bárbaro.

Quando o meu pai puder vir ― se por acaso eu não puder ir buscá-lo irá a Saninha; mesmo porque ele lucrará com a troca.

Resta-me pedir-te desculpas de não haver mandado a carta noticiando a minha mudança. (A carta escrita há dois meses, encontrei-a hoje no meio de umas cartas geográficas, sobre a estante! Como anda esta cabeça.)

Adeus. Um abraço na Adélia e no meu pai. Recomendações ao Deolindo e amigos.

Dispõe do

Euclides da Cunha
R. N. S. Copacabana 23 H

Rio, 8 de agosto de 1909 editar

Meu caro Pethion de Villar

Antes de tudo peço-te que me desculpes perante o bom amigo Egas Moniz ― pelo dirigir-me de preferência ao poeta.

Rio, 8 de agosto de 1909 editar

Gastão da Cunha

Escrevo-te com uma das mãos a bater um mea-culpa sincero, que entretanto não absolveria do pecado injustificável de deixar de responder à tua última carta. Mas, felizmente, não é à toa que és meu amigo: só me estimam almas generosas e altas que não podem ver pequenas tortuosidades ou desvios. A verdade é que, no próprio dia em que fui nomeado lembrei-me de telegrafar a duas pessoas: 1º, ao meu pai; 2º, a ti. E a intenção era tão boa que com certeza naquele dia o Diabo calçou uma avenida inteira…

Mas aqui estou a corrigir o erro. Infelizmente, não te poderei contar as peripécias do pinturesco concurso, indisioso “mundéu”, onde me debati, caindo como um tigre de Bengala. Pergunta ao Coelho Neto e ao Chaves (careca) ― (este “careca” estraga-me um pouco a frase, mas é preciso respeitar a verdade histórica) o que foi a minha arguição oral.

Comecei repelindo a atitude subserviente de examinando: e mau grado a posição vantajosa dos que lá estavam “para perguntar e não para responder” (como alegaram cautelosamente) mantive intactas todas as linhas de defesa que eu delineara com os ensinamentos do meu mestre Stuart Mill ― tão incompreendido pelos presunçosos filosofantes destes tempos…

Ao fim de duas horas de refrega, vi-os em plena debandada.

Depois veio a classificação, na qual dois avocati diaboli votaram pela minha reprovação! contribuindo para que galgasse o 1° lugar um pobre filósofo, cearense e anônimo, que há 25 anos (um quarto de século!) escreve uma interminável ''Finalidade do Mundo'', estopante e indecifrável como o célebre ''Nova Luz sobre o Passado''.

Vê agora como o Diabo as arma: estava o Governo vacilante na escolha do candidato (porque se a meu lado estava o barão, ao lado do outro estavam três bancadas, inclusive a do Pará), quando estourou o desarrazoado laudo Alcorta ― e entre os telegramas vindos de Buenos Aires apareceram vários noticiando a impressão que causara o meu Peru versus Bolívia, nas rodas diplomáticas etc. Assim o concurso de lógica tinha um remate adequado. E a nomeação se fez. Sinto que estou confuso e atrapalhado, escrevendo-te às carreiras. Além disto, egoísta, só a tratar deste pequeno inútil.

Não tenho há três meses notícias da tua família. Sei que está boa porque me encontrei há quatro dias com teu sogro na Avenida. O velho está desempenado e lépido e acha, como eu e todos os teus amigos, que devem ficar ainda algum tempo aí ― sobretudo na quadra atual para terem “jus” a uma legação melhor, iniciando ao mesmo tempo a tua carreira de uma maneira eficaz e brilhante.

O nosso barão continua triunfante e açambarcador das simpatias nacionais. A sua habilidade tem feito prodígios entre as duas facções que o disputam ― como duas sultanas histéricas disputam o lenço de um sultão. E ele tem realizado o milagre de não desagradar a ambas. Que assim seja até o fim.

Adeus, meu querido amigo.

De ora em diante te escreverei por todos os vapores.

Aí vai um apertado abraço do
Euclides

Rio, 8 de agosto de 1909 editar

Meu Pai

Desejo que o senhor continue melhorando.

A Saninha diz que combinou com o sr. ir ela buscá-lo no fim deste mês, ou princípio de setembro.

Mas se por qualquer circunstância o sr. deseja vir antes peço dizer-me logo, para providências.

Há três dias encontrei-me com o comendador Ferreira Chaves a quem dei notícias do sr. Ele interessou-se vivamente por elas; disse-me que ia escrever-lhe; ficou muito satisfeito quando eu lhe disse que o sr. viria breve. Também dei esta notícia ao dr. Gomes, que é sempre um bom e digno amigo.

Eu estou muito melhor, e creio que obedecendo ao regime que marcaram nada terei a temer. Diz o Otaviano em carta, que passando o cabo dos 40 não mais temer a tísica. Mas a estas palavras animadoras se opõe o juízo dos médicos, que me acham muito predisposto ― até por influência hereditária ― e insistem nas maiores recomendações para evitá-la. Na dúvida opinarei pelos últimos. A verdade é que tenho abusado da minha resistência, e preciso parar.

Ainda não recebi cartas do sr. Continuo mandar as minhas para São Carlos.

Peço-lhe que dê muitas lembranças ao Otaviano, Adélia, ao dr. Deolindo. Aceite saudades de todos e abraço do filho e amo

Euclides

Rio, 8 de agosto de 1909 editar

Otaviano

Respondo a tua prezada carta de 7 ― agradecendo-te as palavras animadoras ― embora recordes, melancolicamente, que já estamos na reserva. Para você, elegante e faceiro, o caso é desastroso; para mim desarranjado e revolto, é uma nesga. Estou na reserva desde os vinte anos, quadra em que me assaltou o pessimismo incurável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. Talvez não acredites: ando nas ruas desta aldeia de avenidas, com as nostalgias de um inglês smart perdido numa enorme aringa da África Central. Nostalgia e revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! Na Câmara e no Largo de S. Francisco, os mirabeaux andam aos pontapés. Em cada esquina um O’Connel; em cada degrau de Secretaria um salvador das instituições e da Pátria. Da noite para o dia surgem não sei quantos imortais… É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem. Já […] vezes penso em romper a fundo com tudo isto: dois ou três artigos desabalados e rijos ― tomando a frente de toda essa sujeira […] canalha com o meu rubro desassombro de caboclo sanspeur et sans reproche. Mas contenho-me. Lembro-me do único Homem que reúne o resto das esperanças do país, e ao lado do qual ainda estou, porque ele ainda não me dispensou. Mas no dia em que não houver mais trabalhos para o cartógrafo da Secretaria do Exterior… que desabafo! Como eu açularei nervosamente no rastro destas raposas insaciáveis a matilha feroz dos meus adjetivos implacáveis!

Ponto, porém. Deves estar espantadíssimo! Absolutamente não contavas com esta tirada do ex-rebelde da Praia Vermelha… Nem eu. Escapou-me no final de um artigo de fundo, hipócrita, como a maioria dos que por aí se imprimem. E como a tua carta coincidiu com a leitura dele ― apanhaste uns restos de rajada.

Tornando ao assunto principal da tua carta: a Saninha diz que combinou com o velho em buscá-lo nos princípios de setembro, depois que ele ordenar as coisas na fazenda. Diz também que ele prefere a ida dela à do Arnaldo. Mas pela tua carta deduzo que ele quer vir já. Se assim for manda-me dizer logo, para providenciarmos.

Ontem estive com o comendador Chaves, que se mostrou muito interessado pela saúde do meu pai, a quem vai escrever. Também o dr. Gomes e Erico manda-lhe muitas recomendações, desejando vê-lo, breve, aqui.

Já iniciei o meu curso de Lógica no ex-Ginásio Nacional (hoje Pedro II graças a um lance de histeria republicana). Curso principiado no meio do ano ― serei obrigado a sapecar a matéria para preencher o programa. Mas levo-o por diante numa grande convicção pedagógica. Ao menos direi aos meus alunos a simples e límpida lógica de Stuart Mill, ao invés de transcendentais tolices metafísicas. Diz-me a consciência que serei mais útil do que o funambulesco filósofo (diz-se ele o único filósofo brasileiro!) da ''Finalidade do Mundo'', que há 25 anos escreveu um livro que ninguém lê e estuda uma lógica que ninguém entende.

Muitas lembranças ao dr. Deolindo. Saudades à Adélia e sobrinhos. Escrevo-te deitado ― não por doença, mas porque é domingo e como não posso ainda andar muito, aproveito a ocasião para pagar o meu silêncio anterior. Daí os exageros desta carta, a que darás todos os devidos descontos.

Abraça-te cordialmente o

Euclides

[À margem:]

A Saninha disse-me que o sr. Ellis aí contou uma porção de coisas (que lhe revelara grandes dificuldades na vida, etc.). Embora eu já esteja fatigado de repelir as torpezas desta pobre humanidade ― não tenho ânimo em mim que não declare: o sr. Ellis mentiu. E peço que não dês ouvidos a tais indivíduos com os quais falo de ano em ano, e fortuitamente.

Rio, 10 de agosto de 1909 editar

Otaviano

Recebi a tua carta de 5, que muito me satisfez dando-me notícia das melhoras de meu pai ― assim como da resolução em que ele está de vir já parar aqui. À vista disto falei com o Arnaldo que está pronto a seguir à primeira voz. Se, entretanto, ele não puder vir já e sim em princípios de setembro, irá a Saninha, ou irei eu se os médicos suspenderem a proibição de viajar.

De qualquer modo estamos entendidos; e eu aguardo a tua resposta, ou a do meu pai, para resolver.

Ulteriormente responderei a outros tópicos da tua carta.

Muitas saudades e lembranças a meu pai, Adélia e sobrinhos.

Abraço-te cordialmente

Euclides

Rio, 12 de agosto de 1909 editar

Otaviano

Anteontem te escrevi. Renovo hoje o velho assunto: mande-me dizer quanto antes se o Velho quer vir já, ou em princípios de setembro. No caso irá o Arnaldo buscá-lo; no 2º eu ou Saninha. Esta última alternativa provém do meu estado de saúde, que me impossibilita dizer desde já se poderei ou não ir naquela ocasião. Sei que aí não se acredita nisto; sei ainda que umas boas almas são-carlenses estranham e criticam muito o que chamam a minha indiferença ou ingratidão. Paciência… A pobre humanidade é frágil, e para os seus juízos despropositados e injustos resta-nos a instância superior da consciência, que realmente nos absolve ou condena. Infelizmente não é de todo verdadeiro o teu otimismo. O haver dobrado o cabo melancólico dos 40 não remove inteiramente o espantalho da tísica.

A prova está em que somente hoje deixei de acordar com febre; e estou plenamente certo de que se abandonar o regime que me impuseram não resistirei ― tal o depauperamento e miséria orgânica a que cheguei. Felizmente me sinto cada dia melhor e penso que em menos de um mês terei readquirido a robustez antiga.

Não tenho cartas de meu pai. Acompanhará ele também o falso conceito dos espontâneos e numerosos juizes que aí tenho? Neste caso peço-te que sejas o meu advogado.

Muitas saudades a todos e escreve logo ao teu amo

Euclides