O Borges — ou, mais exatamente, Lulu Borges — que era esse o nome familiar do mancebo — não voltou a cabeça para o lado do piano, e foi direito ao pai de Carlota. Não quer isto dizer que não tivesse adivinhado a moça, ou porque lhe ouvira o eco amortecido da voz, ou porque possuísse o faro da ave de rapina. Carlota pôde dominar-se, e, sem dizer palavra ao noivo, retirou-se cautelosamente para dentro. O noivo atribuiu a retirada da moça a um sentimento de simples discrição, e fez a mesma coisa, indo para o gabinete contíguo. D. Fausta já se havia retirado. Os dois homens ficaram a sós.
— Como passou o resto da noite? perguntaram um ao outro, visto que no baile da véspera tinham sido apresentados pelo dono da casa.
Feitos os cumprimentos, e trocadas as primeiras palavras, Lulu Borges disse que motivo o levava ali. Era um motivo patriótico; tratava de fundar nova sociedade destinada a festejar o dia 7 de setembro, e ia convidar o dr. Cordeiro para sócio e presidente dela. O dr. Cordeiro que tinha a paixão dos cargos, por uma tal ou qual vocação de governo que a natureza lhe dera, sorriu imperceptivelmente, mas recusou a pé firme, durante cinco minutos. Não há, porém, modéstia que possa resistir às instâncias de um homem disposto a triunfar; o pai de Carlota cedeu enfim.
— Com uma condição, disse ele; servirei o primeiro ano, ou ainda dois...
— Três, peço-lhe eu, interrompeu Lulu.
— Pois sim, mas não mais. Não é que me falte sentimento patriótico; é porque estou velho, cansado...
— Velho!
— Depois, sou muito obscuro; acho que estes cargos devem ser confiados a pessoas ilustres...
— Não sei quem o seja mais, em todo o nosso bairro. Seus talentos, seus longos serviços, a posição científica, a verdadeira popularidade de que goza, são títulos de alta valia. Aceita, não é? Agradeço-lhe em nome dos meus amigos. Na verdade, o nosso bairro precisava de uma sociedade destas, não só para lhe dar alguma vida, como para mostrar que o sentimento nacional não se acha extinto nele.
— Perfeitamente.
Lulu Borges disse ainda muitas outras coisas galantes, que o dr. Cordeiro ouviu encantado. O rapaz era mestre na arte da cortesania; sabia tecer um louvor dando-lhe a intensidade apropriada ao caráter da pessoa. Acresce que era insinuante, metia-se facilmente no coração dos outros. Quando dali saiu deixou o pai de Carlota vibrante de entusiasmo.
A sociedade organizou-se depressa, conquanto nada existisse feito ou sequer iniciado no dia em que Lulu Borges falou ao dr. Cordeiro. Dentro de oito dias estavam apalavradas umas trinta pessoas e convocada a primeira reunião. Logo aí, o Ernesto, o rapaz que encontramos de passagem no Teatro de S. Januário, propôs que Lulu Borges, na qualidade de iniciador, fosse aclamado presidente da sociedade; mas este, que parecia não esperar ouvir outra coisa, recusou nobremente tamanha honra, propondo que ela fosse conferida ao digno e ilustrado médico, “uma das ilustrações do Brasil”.
O dr. Cordeiro sorriu e aceitou. Lulu Borges foi nomeado secretário.
Confessam todos os amigos de Lulu Borges, que jamais lhe atribuíram uma décima parte do patriotismo que ele revelou naquele tempo. Lulu Borges era uma das almas da sociedade, que tinha a boa fortuna de contar duas, sendo a outra o digno presidente. Parecia não ter outra preocupação que não fosse celebrar de modo brilhante o grande dia da pátria, e para isso tratava de aumentar a associação, e fazê-la conhecida. Por um verdadeiro rasgo de gênio, a nomeação do tesoureiro recaiu na pessoa do Conceição, indicada e sustentada por Lulu Borges. Houve, é certo, um grupo que recalcitrou, alegando que o Conceição era quase da família do dr. Cordeiro, e que assim dois dos primeiros cargos ficavam na mesma casa; mas venceu a indicação de Lulu Borges, não obstante a oposição do grupo e a pouca vontade do escolhido.
Os trabalhos da sociedade reuniram freqüentemente o dr. Cordeiro e o secretário, em casa daquele. Lulu Borges fez-se assim familiar do médico; vieram os chás e os jantares, as palestras longas, os passeios em família. Simpático, insinuante, o secretário era também dotado de algumas prendas; tocava flauta, recitava ao piano, contava anedotas. Parece que também desenhava, porque um domingo, pouco antes do jantar, Carlota foi achá-lo no gabinete a traçar um perfil; desconfiou, ou pareceu-lhe ver que esse perfil era o dela. Lulu Borges escondera o papel e guardou tranqüilamente o lápis.
— Que estava fazendo? perguntou a moça.
— Nada.
— Nada? Vi-o esconder um papel; é um desenho, creio eu...
— Não, senhora; era uma conta.
— Deixe ver.
— Não posso.
— Por quê? Não há nada oculto ou reservado em uma conta... Dê cá; penso que era um perfil, talvez o da sua namorada...
Lulu Borges ergueu-se solenemente, olhou para ela e saiu do gabinete. Carlota sentiu cair-lhe uma lágrima e murmurou:
— Não me ama, não me ama!