A lágrima de Carlota foi largamente paga, porque, alguns dias depois, Lulu Borges lhe fez diretamente a confissão do seu amor; Carlota ouviu-o contente e palpitante. Não lhe respondeu nada; mas o olhar disse tudo, e a mão, em que Lulu Borges pegou e que estava trêmula e fria, disse o resto se alguma coisa ficou por dizer.
O caso ocorreu no gabinete do dr. Cordeiro, onde Lulu Borges escrevia não sei que ofícios relativos à sociedade patriótica. O médico estava fora; Carlota entrou lá com dois fins, um aparente e mentiroso, outro escondido e verdadeiro. O motivo aparente era ir ver um livro, um romance; coisa que aliás não existia no gabinete do dr. Cordeiro. Lulu Borges, depois de procurar em vão o romance pedido, compreendeu que o melhor era dar-lhe uma página de romance real. O que se fez do modo mais correntio do mundo; Carlota corou e não disse nada; depois fugiu, mas fugiu deixando com ele o coração e a confissão.
Lulu Borges triunfara: possuía a moça; restava saber se o pai consentiria em trocar de genro. Não era infalível, mas não era impossível. Quanto ao Conceição...
O Conceição não dava mostras de entender coisa nenhuma; entrava e saía como antes, falava do mesmo modo, posto que a alegria das suas palestras fosse mais aparente do que real. Ninguém reparava nisso, nem Carlota, nem mesmo Lulu Borges. Ele aparecia nas horas do costume, com a sua graça usual nos lábios; jogava o mesmo voltarete, à noite; e se Carlota não ia já, como dantes, colocar-se ao pé da mesa do jogo, ele fingia não reparar nisso e até estimá-lo. O que ninguém percebia é que ele acompanhava os movimentos da moça, via-a ir disfarçadamente até à janela, ou até o sofá, com o outro, falarem, rirem, divertirem-se sem ele, e pode ser que à custa dele.
A falar verdade, o Conceição desconfiou do intruso desde o dia em que o viu ir à casa do dr. Cordeiro; comparou a figura com a do teatro, e viu que era a mesma; assistiu ao zelo patriótico do rapaz, à maneira por que fez eleger presidente da sociedade ao dr. Cordeiro e só hesitou um pouco quando o viu levantar a própria candidatura dele Conceição para tesoureiro da sociedade. Supôs a princípio que ele não conhecesse bem o futuro genro do dr. Cordeiro; mas pouco durou essa suposição; compreendeu que o Lulu Borges era um grande velhaco.
Ora, o Conceição, se não tinha as aparências e a elegância do Lulu Borges, tinha uma grande sensibilidade e não menor circunspecção. No dia em que se persuadiu deveras de que, não só o intruso pretendia arrebatar-lhe a noiva, como que esta parecia aceitar com simpatia as pretensões do intruso, nesse dia, o Conceição padeceu um profundo golpe no coração. Levou quase toda a noite desse dia, a fumar e a contar estrelas do céu. De madrugada, meteu-se em água fria, segundo era o seu costume, e saiu do banho com uma resolução feita. Carlota merecia-lhe muito, mas ainda mais lhe merecia a sua dignidade.
Um dia, pois, quando nenhuma dúvida podia haver, em seu espírito, sobre a aquiescência de Carlota à corte que lhe fazia o rapaz, determinou o Conceição romper o casamento, mas não o quis fazer sem entender-se com ela.
Carlota estava longe de esperar semelhante resolução. No turbilhão em que ia, no gozo de um sentimento, que lhe era agradável, Carlota fechava voluntariamente os olhos às dificuldades inevitáveis; lembrava-se muita vez do casamento projetado, da vontade de seus pais, da aceitação pública, e só não se lembrava do amor do Conceição, que era o menos grave ponto do conflito. O que é o coração humano! Pensava às vezes que podia deixar de casar com o Lulu Borges, mas surgia-lhe a figura do outro, e em vez de buscar meio de vencer a dificuldade, lançava mão do adiamento, e deixava-se ir na corrente de todos os dias.
Não durou muito essa situação ambígua, porque não convinha ao noivo prolongá-la; e um dia, quando Carlota se deixara estar, com os olhos no teto, a pensar no Borges, surgiu-lhe o Conceição, que lhe perguntou com muita brandura onde tinha naquela ocasião os seus olhos.
— No teto, respondeu ela estremecendo e fazendo-se pálida.
— Pode ser, tomou o outro, e efetivamente há ali um teto...
— Não compreendo.
— Quero dizer que a senhora parecia estar olhando para outra parte, porque os olhos fitam muita vez um ponto e a vista não se fixa aí, mas noutro lugar... mais longe...
— Mais longe?
— Por exemplo, a senhora podia estar olhando agora para o Lulu Borges, disse o Conceição sorrindo.
Carlota fez-se ainda mais pálida, e não se atreveu a levantar os olhos. Esteve assim durante alguns segundos; mas, como a situação fosse incômoda, resolveu sair dela com um gracejo.
— Ciúmes! disse ela buscando sorrir.
— Ciúmes?
— Parece...
— Parece mal, atalhou o Conceição com um modo grave; não se trata disso; trata-se de coisa mais séria.
Carlota levantou os olhos para ele.
— Trata-se, continuou o Conceição, nada menos que de romper o nosso casamento, ficando cada um de nós com a sua liberdade. A senhora ama aquele moço; acho que faz bem, se assim lho pede o coração, e agradeço-lhe o tê-lo amado a tempo de me libertar. Concluo que, ou nunca me amou, ou apenas me deu um sentimento fraco, filho do capricho, talvez filho do costume; num ou noutro caso, siga agora os seus atuais impulsos, e pela minha parte declaro-a livre.
Carlota estava atônita, com o que ouvira; misturavam-se nela, em doses iguais, o pasmo, a alegria, o vexame, e não soube o que lhe dissesse quando ele acabou de falar. Ocorreu-lhe, entretanto, um triste recurso.
— Já sei, disse ela, o senhor ama a outra, e quer deixar-me; era melhor dizê-lo com franqueza.
O Conceição sorriu com um ar de dolorosa ironia; depois disse:
— Suponha que é verdade, que amo a outra, e que me vou casar, ou ao menos que pretendo fazê-lo; suponha...
— Não suponho nada, interrompeu a moça; quer deixar-me, deixe...
— Mas se eu me arrependesse, se eu lhe dissesse que...
— Não, nada ouvirei; depois do que me disse, nada é mais possível entre nós, disse a moça com indignação.
Pobre noivo! Depois do que sabia, só lhe faltava o golpe daquela indignação simulada. Nada disse o Conceição durante alguns minutos, enquanto a moça, ora olhava para ele, com um ar de queixa, ora mordia raivosa a ponta do lenço, ora batia com o pé; mas quando todas as mostras de ciúme lhe pareceram excessivas, o Conceição disse em tom decisivo e com voz concentrada:
— Nada há mais entre nós, mas a culpa não é minha, é sua. Não lhe faço nenhuma recriminação; não seria útil nem digno; basta-me dizer-lhe que...
Carlota quis interrompê-lo com um gesto.
— Ouça, disse ele.
E fazendo-a sentar de novo, com um gesto brando e cortês, continuou dizendo que tudo sabia, e que era preciso terminar tudo.
— Minha presença nesta casa é mais do que inútil, é incômoda para a senhora e ridícula para mim; conseguintemente, é força retirar-me; e só me resta fazê-lo de um de dois modos — ou por mim mesmo — ou por iniciativa sua.
— Desde que o senhor sai porque quer, penso que não devo eu fazê-lo sair, disse Carlota.
— Carlota!...
— Perdão, atalhou a moça; já não tem direito de me tratar assim.
— Foi um esquecimento. Qual é a sua resolução?
— A que quiser.
— Está então tudo acabado, tornou o Conceição depois de alguns instantes, como agarrando-se a uma tábua de salvação.
Carlota levantou os ombros, a olhar para o espaldar de uma cadeira, com o ar mais indiferente do mundo; o Conceição não podia ocultar a comoção.
— Adeus! disse ele.
A moça cortejou-o; ele saiu.
Logo que o Conceição a deixou só, Carlota respirou largamente, ergueu-se, e deu alguns passos de um para outro lado. Parecia livre de um grande peso. Não pensava nas explicações nem nas conseqüências; via somente uma coisa: a liberdade de casar com Lulu Borges; e para ela era tudo.
Nesse mesmo dia, o dr. Cordeiro foi surpreendido com uma carta do Conceição. Dizia-lhe este que, certo de não ser correspondido em seus afetos, pedia licença para renunciar à mão da filha. O dr. Cordeiro ficou atônito; a mulher não menos atônita.
— Isto não se faz! clamava ele; isto é uma pelintragem! Quando todos já sabiam do casamento, quando eu... Ora esta! que ordinário!
A mulher persignava-se com a mão esquerda, e não podia crer no que dizia a carta; havia porém, em seu gesto, alguma coisa que mostrava não lhe ser desconhecida a origem do mal. A verdade é que ela desconfiava já de alguma coisa; nunca porém chegara a recear o que se deu, porque atribuía a um simples capricho — uma leviandade de Carlota.
No dia seguinte, o dr. Cordeiro resolveu mandar chamar o Conceição, para entender-se com ele acerca de um ato que lhe parecia desairoso à família; mas no momento em que escrevia a carta, entrou Carlota no gabinete, e, ditas as primeiras palavras, o pai deixou cair a pena da mão.