CAPITULO IV

 
Viagem pelo Mar Vermelho. — Chegada a Aden.— Sua população. — Os nadadores arabes. — Uma regata original. — A cidade arabe.— Um povo patriarchal. —As cysternas de Aden. — O fado de Aden. — Ponta de Galles. — A Ilha de Ceylão.— O Jardim das caneleiras.— O templo de Budha. — Os Portuguezes, os Hespanhoes e os Inglezes em Ceylão. — O budhismo da India. — A origem de Budha IV. — A chiromancia em Ceylão. — Entrevista com um astronomo indiano.
 


L ogo que o Ava sahio de Suez o calor tornou-se insupportavel, um vento apenas apreciável e soprando no mesmo sentido que o navio caminhava, longe de mitigar o ardor, trazia-nos mais calor das planuras dos desertos.

Exhaustos de força, quasi suffocados, passamos quatro dias de penas immerecidas; durante o dia, passavamos a agitar com um leque o ar que rodeava nossa face, e de noite, verdadeiramente prostrados, sentiamos algum allivio ao contacto da humidade que, em densa nevôa, se mostra durante certa épocha do anno sobre as aguas do mar Vermelho.

Não raras vezes, tem-se dado casos de morte a bordo dos navios, durante a passagem do mar Vermelho. São, em geral, as apoplexias fulminantes que determinão a morte, e ainda, na nossa volta, fallecêrão a bordo duas pessoas victimas do calor e da humidade que torna quasi impossivel a vida n'essas paragens.

No fim de quatro dias incompletos de viagem, chegamos a Aden, possessão ingleza situada na entrada do mar Vermelho.

O aspecto d'este paiz é triste; para todos os lados que a vista se volve, estendem-se aridas planícies, onde avultão penedias ennegrecidas pela acção do tempo, e sobre suas lombadas vêm-se largas selladas, sómente accessiveis aos animaes montezes.

No alto de uma collina que rodea o porto de Aden, eleva-se graciosamente um edificio de bello aspecto que serve de residência ao governador da possessão. É esta a unica habitação que nos lembra a architectura europêa; as outras, são verdadeiras choças, cobertas de esteiras, e sem offerecer nenhum conchêgo aos estrangeiros; comtudo, na extremidade da cidade, ou antes em uma pequena povoação, distante de dous kilometros do ancoradouro, encontrão-se algumas lojas ou armazens de venda e um largo edificio construido em columnas e arcadarias, que serve de hospedaria aos officiaes do destacamento inglez.

A população de Aden, compõe-se de negros arabes e de alguns judeos egypcios ou armenios que se empregão nos trabalhos dos navios, e em negociar toda a sorte de objectos e especialmente bellas plumas de abestruz; o que constitue o principal commercio de Aden.

Alguns typos da raça negra, que ahi se vêm, são assaz interessantes, e alguns d'estes indivíduos possuem feições delicadas e expressivas. Muitos, avermelhão seus compridos cabellos, formando cachos, fazendo uso continuo de cal viva, outros, penteão-se á moda das jovens europeas e empregão pentes que retêm os cabellos sobre os parietaes.

Alguns d'estes indigenas deixarão-se photographar mediante alguns shellings que lhes offerecemos.

De boa indole, elles são aptos para certas profissões e com facilidade, aprendem o que se lhes ensina sem que seja necessário o emprego da violencia ou dos castigos.

Entretanto, com o systema colonial da Inglaterra, estes homens, susceptiveis de civilisação e aperfeiçoamento moral, vivem na maior indolencia e liberdade, sem eira nem beira, como diz um velho adagio, á expensas dos europeus ahi residentes ou dos passageiros em transito por Aden.

Apenas o Ava ancorou n’este porto, pequeninas canôas occupadas por um ou dous negros, ainda adolescentes, o rodearão, e os negrinhos arabes, gritavão aos passageiros, em estropeado francez ou inglez, pedindo-lhes que atirassem á agua moedas de prata que irião buscar ao fundo do mar.

Completamente nús, estes amphibios mergulhão com a maior destreza, e durante um ou dous minutos, procurão no fundo do mar o objecto dos seus desejos; é sobretudo, quando a moeda é alguma piastra ou peça de cinco francos, que torna se interessante o combate travado entre os nadadores. Elles mergulhão ao mesmo tempo, seguem a mesma direcção, e depois de se debaterem sobre a arêa, um volta victorioso á superficie d’agua com a moeda preza entre os dentes. Durante este tempo, as canôas impellidas umas contra as outras são emborcadas ou enchem-se d’agua, porém, apenas finda a luta, vencedores e vencidos ajudão-se mutuamente, esgotão a agua que enchem as canôas ou endireitão as que se achão voltadas com a abertura para baixo.

Outras vezes, a troco de um shelling, elles mergulhão e atravessão, sob a agua, a quilha do navio, surgindo no lado opposto ao da partida. O mais interessante é ver com que actividade e destreza elles lutão entre si, para ganharem o premio promettido, por alguns passageiros, ao que mais velozmente percorresse a nado a distancia que separava o Ava de uma boia que via-se a trezentos e alguns metros do navio.

Á regata que assistimos na nossa ida, tomarão parte seis dos mais ageitados nadadores; a partida effectuou-se no logar onde se achava uma boia; e ganharia o premio, que consistia em duas libras sterlinas, o primeiro que tocasse com a mão no bojo do Ava.

Dado o signal, a luta começou com ardor e esforço; os nadadores formavão, instantes depois, dois grupos; no primeiro, contava-se quatro, e no segundo, já distanciado de mais de dez metros, vião-se dous que parecião estar fóra da luta, entretanto, apenas faltava a quarta parte da distancia a vencer quando estes dous ultimos alcançavão seus companheiros e facilmente se adiantavão. Durante alguns instantes a victoria pareceu indecisa entre os dous que, mais intelligentes, souberão poupar no principio seus esforços; finalmente, um era vencedor, attingia a meta marcada, porém esquecia-se de tocar no bojo do Ava, o que com espirito, o outro fez, reclamando o premio promettido.

Legitimamente as duas libras lhes erão devidas, porém como o vencedor foi o primeiro a reconhecer o direito do seu competidor, a equidade mandava que os passageiros do Ava premiassem a ambos, e, com effeito, cada um recebeo duas libras sterlinas.

Parece que tal somma fez a riqueza de alguns dias d’estes dous entes, e tal foi o seu contentamento e alegria que algumas horas depois só se fallava no povoado de Aden sobre esta regata de homens.

Pelo meio do dia descemos a terra e seguimos sem demora para a villa arabe onde chegamos no fim de meia hora de incommoda viagem.

É singular a perfeita harmonia que apresentam essas toscas construcções de madeira que não deixam de produzir um aspecto interessante pela sua originalidade. A sua população não excede de vinte mil almas, suas ruas bem que direitas são estreitas e immundas; as habitações que as limitão são acanhadas, e, em geral, compõem-se de dous ou tres compartimentos muito apoucados para seus habitantes.

As familias dos negros arabes vivem quasi que em commum nas suas cidades, e varias vezes no anno reunem-se em grupos para elegerem os juizes que dicidem das querellas e julgam os criminosos.

Os accusados, quando condemnados, são entregues ao governador inglez que toma conhecimento do crime e os sujeitão a um tribunal regular, quando o delicto é de gravidade; nas simples transgressões de lei as penas mais usadas são: as multas, a expulsão das povoações e a prisão com trabalho.

Em frente á cidade arabe, á uns quinhentos metros de sua entrada, sóbe-se a encosta de um outeiro, em cujas fraldas forão construidas as cysternas de Aden, abertas a polvora e a picão em dura rocha, e onde a população vai buscar a agua necessaria aos diversos misteres da vida.

Estes importantes reservatorios d’agua da chuva, prestão relevantes serviços aos habitantes deste paiz, constantemente flagellado pela secca, e que por isso, ainda, ha poucos annos, era inhabitado.

Quando visitamos estas gigantescas obras, havia já decorrido um anno, que nem uma gota d’agua da chuva molhara o sólo de Aden, entretanto, as quatro vastas cysternas ainda continhão centenares de metros cubicos do liquido indispensavel à vida.

Em roda dos depositos, vêm-se lindos arbustos com flôres odoriferas, pequenos taboleiros de horta e algumas graciosas palmeiras, cuja vista avivavão nossos sentidos e fazião vibrar até em nossos corações as fibras d’alma; aquelles, então entorpecidos, e estas frouxas, pelo ardor: da atmosphera que nos rodeava.

Neste lugar nos demoramos algum tempo até o descambar do sol, desfructando em atmosphera serena e refrescada pela verdura do jardim das cysternas as ultimas horas do dia.

Alguns instantes, depois de estarmos á bordo do Ava, ouvimos do lado de terra um surdo ruido de vozes, que por intervallos succedião aos sons agudos de instrumentos de musica. Soubemos sem demora, que aquelle dia era de festa em Aden, e que os habitantes indigenas, reunidos em grupos, davão começo as suas grotescas danças. Lembramo-nos immediatamente dos fados da nossa boa terra, danças a que tantas vezes assistimos nos terreiros das fazendas dos nossos lavradores; e, desejosos por conhecermos sua origem, voltamos á terra para presenciar estas festas.

Proximo ao caes de desembarque, individuos de ambos os sexos formavão grupos em frente de pequenas barracas que exhalavão o cheiro nauseabundo de azeite de peixe queimado. Ahi, vendião-se bolos de farinha e peixe e uma infusão d’erva-doce bastante alcoolica e muito estimada pelos naturaes.

Em certos grupos o riso estalava com a maior franquia entre os homens e mulheres; os primeiros, quasi nús, apenas cobertos, em roda da cintura, por simples tangas, e estas vestidas com curtos saiotes, conservando quasi nús os seos roliços braços e elevados seios, ora envoltos em mantas riscadas de vivas côres, ora completamente despidos deixando ver os luzidios atavios que lhes ornavão os braços, o pescoço e a cintura.

Em outros grupos, o enthusiasmo ou alegria era desordenada e pela influencia de bebidas alcoolicas as querellas se suscitavão sem interrupção entre homens e mulheres, por coisas de amor.

Assim, notamos, que as mulheres, n’estas disputas, tomavão sempre a parte offensiva, tornando-se necessario a intervenção dos assistentes e especialmente do policeman indiano para aquietar-lhes os animos tão dispostos a ira, quanto faceis a disciplina dos agentes da autoridade.

Em um dos grupos, quatro ou cinco musicos tocavão em instrumentos indigenas um acompanhamento ás cantigas dos fadistas. Apenas estes individuos nos virão, vierão offerecer suas photographias mediante dois shellings. Um delles, fallava o inglez e nesta lingua discorreo sobre suas danças e as bellas dançarinas, que são, muitas vezes procuradas pelos governadores e officiaes da guarnição ingleza, para dançarem em suas festas.

Entre outras dançarinas sobresahia uma, pelo bem desenhado contorno de seus membros e ostensivo vestuario. Esta robusta africana trajava curto saióte sobre largas calças, e na parte superior do seu corpo apparecia o peito de fina camiza, negligentemente aberto, e deixando ver custoso colar que em multiplices voltas rodeavão seos seios e pescoço.

Eis como os naturaes de Aden danção por occasião de suas festas o fado africano.

Á um signal os homens e mulheres formão dois grupos, e quando os musicos dão começo as melodiosas harmonias de que são capazes seus instrumentos; de cada grupo destaca-se um individuo fazendo mil tregeitos com o corpo, batendo palmas e cantando; então, a mulher, depois de parecer acceitar as momices que lhe faz seu par, recua fugindo-lhe com o corpo e afastando com ligeireza seu rosto aos labios do amante.

Um outro individuo embarga o passo ao infeliz pretendente, e, repetindo os mesmos movimentos, esforça-se em roubar o penhor tão desejado; e só quando as faces se encontrão fortuitamente ou por calculada intenção, é que outra meiguiceira fadista sahe ao encontro do seu par, repetindo-se as mesmas scenas; emquanto que os felizes amantes, com seus braços enleiados, e governados por sensual sentimento, vão as barracas beber o licôr indigeno de que já fallamos.

E se a dança que acabamos de descrever, não se parece em todos os pontos com o fado da nossa terra; é certo que este nada mais é do que a dança africana de Aden, mais degenerada, ainda que melhor acompanhada pelas sapateadas e o tinnido das esporas dos nossos jovens lavradores.

Recolhemo-nos a bordo já bastante tarde e no dia seguinte quando subimos a tolda, vimos o Ava rompendo as vagas alterosas do Pacifico.

A viagem de Aden á Ponta de Galles, na ilha de Ceylão, é muito insipida, e esta é a phase da viagem ao Oriente, a mais monotona, pois, durante sete dias, a vista se perde na immensidade do oceano sem repousar em objecto algum que a farte e a deleite. Entretanto, algumas horas antes de entrarmos no porto de Ponta de Galles começaram a desenhar-se a nossos olhos, as bellas costas de Ceylão que pelos seus coqueiros e palmeiras recordou-nos a patria.

Apenas á vista do porto, o Ava parou a espera do pratico que o devia conduzir entre os arrecifes que por entre os cimos das vagas apparecem, ouriçando-se do fundo do mar.

Alguns minutos depois, o pratico entrou a bordo, com o pé direito, o que contrariou os apostadores pelo pé esquerdo; e, emquanto se liquidavão as apostas cujo resultado dependia da maior ou menor aptidão de um dos pés do velho marinheiro em galgar o bordo, elle, depois de engulipar boa dóse de vinho, tomou a direcção do navio, e regularisando-lhe a marcha e sem desvial-o de um metro, o dirigio pelo centro do estreito canal praticado entre os arrecifes.

Lançada a ancora, podemos admirar o deslumbrante panorama que se desenrolava aos nossos olhos, e, ainda que já habituados as bellas paisagens que formão uma luxuriante vegetação no Brazil, quando illuminadas, pelos ardentes raios do brilhante sol; não podiamos comtudo, desdenhar o bello espectaculo desta natureza sempre prodiga em dispensar mil attractivos que encantão a vida.

Esses milhares de bellos coqueiros que adornão a entrada do porto de Ponta de Galles, as baixas palmeiras de um verde puro, que marginão toda a costa e rodeão elegantes construcções, em cujo meio, saliente, se vê a fortaleza ingleza; formavão em seu conjuncto, um contraste bem accentuado com o aspecto triste e desolador das regiões africanas que acabavamos de visitar.

Exteriormente, Ceylão nos interessou, e, animados pela sua bella vista, pensavamos nas surprezas que em terra nos esperavão; por isso, sem perda de tempo, embarcamo-nos no primeiro escaler que partio de bordo com as malas, graças ao convite obsequioso do agente do correio.

Apenas o pé em terra, corremos ao melhor hotel da cidade para tomarmos a primeira refeição do dia, porém, depois de alugarmos um carrinho, bastante ligeiro e geitoso para nos conduzir ao jardim das caneleiras e ao famoso templo do Budha, que ahi existe.

ADEN
 

Lith, Imperial A. Speltz

MUSICOS DE ADEN

Emquanto comiamos, um cicerone apresentava-nos, em inglez, o seu programma do modo a utilisar do melhor modo o tempo de demora do Ava n'este porto, o que não excederia de quarenta e oito horas; e depois de verificarmos o que havia de verdade nas palavras do officioso cicerone, tomamol-o ao nosso serviço mediante uma gratificação.

Ás dez horas da manhã partimos em carro na direcção Sul da cidade para o lado das fortificações, antigas muralhas levantadas pelos legendarios portuguezes, para defeza da cidade, e cuja posse seus filhos não souberão, ou antes, não puderão conservar, o que foi proveito para os fins coloniaes da Inglaterra n'esta ilha.

Fizemos caminho durante uma hora por entre elevados coqueiros e outras arvores de agradavel aspecto até o bello jardim das caneleiras. Acha-se elle situado sobre a borda do mar e estende-se em uma varzea de mais do quatro kilometros.

Na entrada do parque, elevão-se altos coqueiros sustentando seus fructos, e viçosas bananeiras com suas largas folhas verdes; além, vêm-se as pequenas palmeiras em forma de leque formando entre suas filas largos passeios cobertos de relva. No fim de uma extensa alea, começão as ruas das caneleiras cujo perfume activo faz esquecer que nossas vestes estão impregnadas do nauseabundo alcatrão de bordo. Em uma das extremidades do parque, encontra-se um verdadeiro jardim, cultivado com esmero, sobresahindo entre outras flôres, bellas camélias, grandes cravos, uma variedade de rosas cujos pés se elevão do centro das almofadas de amores perfeitos e de violetas, tudo artisticamente disposto. No centro do jardim, vimos um kiosque de estylo chinez onde um natural do paiz offereceu-nos refrescos e gulodices o que de bom grado aceitamos e retribuímos.

Encontrão-se dez especies do caneleiras na ilha, porém, a mais estimada, o corundú, como chamão os indígenas, é o Laurus cinnamomum, cujas folhas são mui parecidas com as da larangeira, a flôr é branca, cheirosa, e quando se tira a epiderme ou a segunda casca da arvore, a canella toma a fórma de tubos; e é assim que se exporta este producto de Ceylão.

A arvore do pão ou de fructa de pão existe em quantidade em toda ilha, e este fructo substitue até certo ponto o pão dos europeus.

Em Ponta de Galles apenas vimos alguns elephantes, porém pequenos e ainda novos, comtudo, é em Ceylão que se encontrão os mais intelligentes e de grande docilidade.

Quando estes animaes vivem em bandos de centenas são inoffensivos aos viajantes, porém, o perigo é encontrar um só elephante vivendo isolado, seja porque se desgarrasse do bando, ou por causa de ser numero impar, quer macho ou femea; então, o animal torna-se furioso, ataca e mata caravanas inteiras, derruba casas, arranca as arvores e chega até a penetrar nas cidades.

O elephante docil desempenha em Ceylão as funcções de executor da alta justiça, aprende e comprehende, com a maior facilidade, qual o genero de supplicio que lhe é ordenado executar.

Assim, se os condemnados devem ser torturados e executados, elles arrancão-lhes os braços, com a tromba, lanção-os ao ar e os recebem sobre suas presas onde morrem.

Do jardim de Ceylão, dirigimo-nos ao templo de Budha, situado a alguns kilometros da cidade sobre um outeiro que domina os arredores.

Ahi chegados, foi necessario que o nosso guia nos abandonasse por alguns intantes, para ir em busca do veneravel sacerdote de serviço, o qual, foi encontrado em uma casa de quitanda, especie de taverna, onde se vende bebidas espirituosas, fructas, e outros artigos com que os naturaes fazem sua cozinha.

É grotesca a capa côr de tijollos com que os sacerdotes de Budha se distinguem das outras classes da população. Reunindo ao mesmo tempo ao seu aspecto respeitavel, a gesticulação a mais comica, elles, approximando-se do templo, dirigem-se aos seus deoses mimicamente, pronunciando uma invocação em lingua indigena, ora sob tom de censura, ora sob o de humilde supplica.

O interior do templo é de um esplendor inteiramente pagão; ahi, vê-se sobre um altar a estatua de Budha, de enormes proporções, e apresentando o deos sentado sobre as pernas.

O dedo minimo das mãos de Budha é maior do que as coixas de um homem, e a sua cabeça terá mais ou menos sessenta centimetros de diametro. Sobre telas, pregadas ás paredes, notão-se tres deoses, aos quaes chamão Wichnou, Samen e Nata; o primeiro pintado em azul, o segundo em amarello e o ultimo em branco. Uma grande quantidade de flores ornavão o altar de Budha, e emquanto o padre invocava o deos, os indigenas que se achavão presentes, deitavão novas flores sobre o altar.

Os padres são, na maior parte, cingulezes, raça menos escura que a dos bedahs, menos selvagem que esta e vivendo em sociedade.

Os cingulezes são, geralmente de alta estatura, bem conformados e musculosos; e se conhece pela forma do rosto, que a raça malaia nelles predomina.

A população de Ceylão divide-se, como todos os povos da India, em varias castas ou classes. Nas castas superiores estão comprehendidos os reis, os homens de guerra e os padres; a classe mediana comprehende os mercadores, e, finalmente, a ultima casta, compõe-se dos homens de trabalho: os criados, os operarios, etc.; aos quaes é prohibido trazerem certas vestes e occuparem em seu serviço um seu igual.

As pessoas das classes superiores vestem-se mais ou menos do mesmo modo que os europeos, sempre trazem um chapéu de sol e muitas vezes um criado, que as acompanhão é encarregado deste trabalho.

Os negociantes da Ponta de Galles são intelligentes e muito interesseiros; muitos, occupão-se em negociar com os estrangeiros uma multidão de pedras preciosas como sejão: os rubis, saphiras, esmeraldas, amethistas, opalas e cornalinas, do que abundão os leitos dos rios e alguns terrenos de alluvião.

Vimos bellos pedaços de crystal de rocha de uma limpidez perfeita, e consta-nos que em Kandy existe uma estatua de Budha trabalhada em um monolitho desta substancia.

A moral do buddhismo é cumprida exactamente em Ceylão, e, segundo ella, o povo deve basear a sua devoção sobre principios essencialmente humanitarios; assim é, que a esmola e o amor do proximo é constantemente assumpto principal das predicas de seus sacerdotes, e tal é o respeito que merecem estes padres que nem os proprios reis ousão sentar-se em presença de um ministro de Budha.

Se acompanharmos entretanto, as praticas religiosas do buddhismo da Asia, em geral, veremos que estas doutrinas tendem ao materialismo, o que, em principio, parece estar em opposição com este ceremonial tão estrictamente observado.

As tradicções religiosas desta seita, são confusas e as doutrinas muitas vezes contradictorias. O buddista acredita na existencia de deoses naturaes, demonios e deoses-homens; segundo elles crêm, um homem póde, pela sua moral, tornar-se, deus, semi-deus, deos-demonio e mesmo animal irracional. A morte é apenas uma modificação de fórma, determina um novo modo de ser.

Depois da transformação da materia segue-se a crença sobre a pluralidade dos mundos que não tiverão começo nem terão fim.

Segundo os padres, quatro Budhas visitarão o mundo, e um quinto, nos seculos vindouros, substituirá a Gutama actual deos e Budha IV. A sua historia é muito interessante para deixarmos em silencio «Appareceu Gutama no leito da rainha Sadoden e foi visto alguns annos depois pelo rei de Kaladivella, que tendo observado o seu andar quiz examinal-o, e encontrando, sobre as plantas de seus pés, duzentos e dezaseis signaes chiromanticos, e sobre o corpo, trinta e dois signaes de belleza, annunciou a: rainha e ao povo que Gutama seria Budha. O filho da rainha cresceu rapidamente e sendo homem de caracter ardente e enthusiastico, entregou-se a cavalharia. Montado em brioso corsel dirigio-se ao rio Ganges, de um salto o atravessou, e depois de mil aventuras abdicou o throno de sua mãi; então, recebendo as vestes sacerdotaes, passou por todas as provas de penitencia que delle exigirão os outros padres; afinal, depois de vencer todos os demonios que o attrahião para as cousas mundanas, subio a um throno de diamantes da mais pura agua, e, ahi, contou o passado, analysou o presente, e predice o que aconteceria no futuro.

«Tendo a faculdade de multiplicar-se, de tomar todas as formas, de vencer os elementos, Budha apparecia a todos que o invocavam; muitas vezes elle invertia a ordem das cousas e transformava as nações segundo sua vontade.» «Quando morreu contava 86 annos e já a maior parte da Asia conhecia o seu poder e seguia sua doutrina.»

Vemos com clareza, por esta transcripção, que a classe sacerdotal do Budhismo tem em varias occasiões regulado as successões ao throno de diamantes e que é, necessariamente d’esta classe que sahem os Budhas; d’ahi explica-se o respeito que á ella tributão todas as classes dos povos aborigenes de Ceylão e a preponderancia dos padres, que são sempre ouvidos e consultados em qualquer deliberação relativa aos negocios publicos ou simplesmente de familia.

As habitações dos naturaes de Ceylão são construidas com taboas de madeira e bambús estreitamente ligadas com sipós ou cordas. No seo interior, apenas se notão duas ou tres camas toscamente feitas, algumas grossas esteiras, um pilão de madeira, que serve para despolpar o arroz, alguns pratos, e outros objectos de barro.

É muito curioso vêr-se um cingulez escrever em folhas de palmeira suas notas commerciaes ou mesmo qualquer outro trabalho. Empregão para esse fim um stylete ou qualquer ponta metallica que corta as fibras longitudinaes das folhas e deixão gravados caracteres originaes do idioma particular d’este povo.

Elles acreditão muito na chiromancia e não se effectua um casamento ou se verifica um nascimento sem que seos astrologos tirem o horoscopo dos consortes ou do recem-nascido. Então consultão os astros, especialmente as constellações, e por um acaso singular chegão sempre nos seos calculos ao numero 432, que considerão como expressão dos diversos movimentos combinados dos astros e o que torna esta circumstancia, já observada por outros viajantes, digna de menção, é que este numero é conforme com os algarismos de Newton.

Tivemos occasião de visitar um dos famosos chiromantes de Kandy, capital de Ceylão, e que se achava então em Ponta de Galles. Durante a conversação que tivemos com este individuo, por intermedio do nosso cicerone, notamos que sua linguagem era de um homem de letras, que cultiva a historia a medicina e sobretudo a cosmographia. Assim, sendo perguntado se acreditava na existencia de uma atmosphera na Lua, respondeo que não, a menos de não ser este astro povoado do outro lado que não póde ser observado da Terra, e que quanto a luz era do sol, e para melhor explicar, tomou um vidro de espelho, pronunciou elle em sua linguagem a palavra sol, soprou sobre o espelho exclamou — «Lua» —.

Ousamos tambem perguntar se acreditava na chiromancia ou no horoscopo que elles levantavão sobre os nascimentos, ao que, o velho astrologo ou astronomo, respondeo com certa malignidade, dizendo ser aquella sua profissão.

Assim podemos de um modo geral ajuisar dos conhecimentos d’estes individuos sobre a astronomia e certamente só como meio de vida, elles empregão-se em illudir a credulidade do povo com estes embustes.

Na bahia de Ponta de Galles vê-se o pico de Adão que domina toda ilha, e cuja altura excede de mil toesas sobre o nivel do mar. Segundo os musulmanos de Ceylão, foi sobre esta montanha que Adão depois de expulso do paraiso terrestre veio refugiar-se e ahi conservou-se em penitencias até que Deus compadecido perdoou sua falta.

Desejavamos fazer uma excursão ao pico de Adão d’onde, segundo contão alguns viajantes, goza-se de uma extensa e muito interessante vista, porém, o Ava só teve demora para tomar combustivel, e n’esta excursão gasta-se pelo menos dois dias.

Os indigenas fazem perigrinações ao pico, para venerarem o sulco deixado no sólo, pelo pé de Budha IV, e ahi, precedidos por um padre, praticão certas ceremonias religiosas. O padre veste então uma capa amarella, colloca-se junto do sulco deixado pelo pé de Buddha, e olhando para os perigrinos, que de pé se achão alinhados, recita todas as phrases do symbolo e que os assistentes repetem. Finda a cerimonia, o padre retira-se, porém os devotos começão e recomeção durante horas inteiras a mesma ceremonia que então é presidida pelo individuo mais idoso d’entre elles. Finalmente, findo o exercicio abração-se uns aos outros e offerecem-se uma composição adstringente, feita com folhas de betel, que elles mascão com grande prazer. O padre recebe tambem certos presentes a troco da benção que lhes deita como ministro de Buddha.

Uma das grandes producções de Ceylão, consiste em perolas, — entretanto, o seu preço é elevado; assim, vimos com um joalheiro indigena, algumas, do tamanho de uma ervilha, e perfeitas. O mercador pedia duas libras por cada uma, preço senão superior, pelo menos igual ao do mesmo objecto nas grandes capitaes da Europa.

Fizemos acquisição de algumas pedras em estado bruto, para nossa collecção, porém, entre as verdadeiras, encontramos posteriormente, alguns pedaços de vidro coloridos e apresentando as mesmas fórmas de cristallisação; tal é a honestidade dos negociantes de joias de Ceylão contra os quaes os estrangeiros devem se prevenir, pois, a imitação dos crystaes de saphira e de esmeralda é tão perfeita, que os seus caracteres physicos não bastão para distinguil-os dos verdadeiros. Consta-nos que esta falsificação é industria ingleza nos paizes da India e de que são unicas victimas, os proprios estrangeiros.

Reconhecemos o logro, em que tinhamos cahido, medindo os angulos formados pelas faces dos crystaes, e como na nossa volta á Ceylão, reclamassemos do negociante, (cujo retrato merece ser apreciado pelos leitores), sobre a falsificação; elle conveio em trocar as pedras falsas por vinte e cinco lindas perolas, porém, nem desta vez, escapamos; sete perolas erão verdadeiras imitações, como depois verificamos, entretanto na apparencia, côr e tamanho todas erão perfeitamente semelhantes.

A historia primitiva da Ilha de Ceylão é muito obscurecida pelas figuras e allegorias maravilhosas que difficultão o estudo sobre os povos asiaticos.

O que se sabe de positivo é que, em 379 da nossa era, depois de ter sido Ceylão o imperio de grandes e numerosos monarchas, a religião de Budha foi ahi introduzida por um padre de nome Mihiduma.

Segundo a tradição ingleza, elle atravessou os ares e parou no rochedo de Amuradapura, no momento em que o rei desta região por ahi passava.

O Rei ficou attonito vendo este homem com largas vestes amarellas, atravessar o espaço e pousar sobre o rochedo; então, o missionario fallou-lhe em nome de Budha; converteu o rei miraculosamente e esta religião foi ordenada em toda a ilha.

Sómente no seculo XVI os portuguezes forão pela primeira vez á Ponta de Galles, por occasião de grande temporal que obrigou o almirante Lourenço de Almeida a procurar refugio em algum ponto da costa. Reinava então na ilha, Darma Praccaram, que, sabendo da chegada de estrangeiros á ilha, mandou um grande da sua côrte recebe-los e offerecer-lhes hospitalidade.

Os portuguezes demorarão-se ainda algum tempo em Ceylão, e alguns mezes depois, nova frota veio encarregada de explorar as costas da ilha. Comtudo, n’esta occasião não julgarão os portuguezes poderem com vantagem estabelecer uma feitoria em qualquer ponto da ilha, cujos habitantes erão numerosos e o reino achava-se em completa paz; porém, alguns annos depois, morreu Darma, e a guerra civil apresentou occasião propicia aos ousados navegantes para se apoderarem de Colombo, onde levantarão altas muralhas que forão guarnecidas com boa artilheria.

CEYLÃO
 
Lettrado indiano
Lettrado indiano

Lith, Imperial A. Speltz

LETTRADO INDIANO

Em 1634, o Radja Singha querendo vingar uma afronta que lhe fôra feita por Simão Corrêa, chefe dos portuguezes, ligou-se aos hollandezes e sitiou Colombo, cuja tomada determinou a expulsão de todos os soldados e colonos portuguezes de Ceylão.

Entretanto, a alliança com os hollandezes não foi duradoura, e depois de cem annos de lutas continuas, estes comprehenderão a impossibilidade de occuparem o interior da ilha e limitarão-se a conservar as feitorias do littoral.

Foi então, em 1782 que aportou na bahia de Trincomalay uma esquadra ingleza commandada pelo almirante Munröe que desembarcou alguma tropa com o fim de conquistar Colombo e Negoumbo, porém, só em 1786, pôde o general Hewart entrar nesta ultima cidade por traição do commandante hollandez, que occultamente assignara capitulação sem consultar seus officiaes.

Progressivamente os inglezes estenderão seu dominio até que, em 1804, levarão a guerra aos reis de Kandy; em que varias vezes a sorte foi adversa aos temerarios invasores, que, assim, em nome da civilisação, apoderarão-se da liberdade e da propriedade de um povo livre. Dizem que acima de todas as considerações que levarão os inglezes à Ceylão, elles nutrião o desejo de se apoderarem dos immensos thesouros dos reis de Kandy; o que afinal levarão a effeito, em 1815, tendo por essa occasião, o general Brownigg tomado posse da ilha de Ceylão em nome do rei d’Inglaterra.

Como nas outras possessões inglezas da India, o systema colonial adoptado é o mesmo; a humilhação da moral, o aniquillamento de uma nacionalidade, a corrupção dos costumes; — taes são os commodos meios de que se servem os actuaes dominadores para conservarem suas possessões; comtudo, foi difficil fazer desapparecer, ao principio, todo o patriotismo de milhões de homens; por varias vezes elles tentarão sacudir o jugo, mas, diante das bayonetas e das metralhas, o direito e a justiça ainda são, infelizmente, sacrificadas no seculo XIX.

Os portuguezes em outras épochas serviam-se de seus missionarios para mais facilmente dominarem os povos; em seguida, os hollandezes empregarão muitas vezes a intriga e sacrificarão suas crenças religiosas para desalojarem aquelles de suas possessões; finalmente, no nosso tempo, os inglezes, alimentão o vicio, degradão os povos para que desarmando-os de seus brios, lhes dispensem o emprego da força.

Os primeiros, empregavão o meio do seu tempo, fazião christãos e alliados; os segundos, todos os meios erão bons, porém a corrupção era própria; os últimos, transformão seus semelhantes em brutos para melhor governal-os; e isto, em nome da civilisação como altamente proclamão.

Assim, quanto a dominação Europea na Asia, longe de ser um prejuizo dos antigos tempos que tende a desapparecer, é, no nosso século, a perda da moral e de quaesquer sentimentos que ainda os indianos conservão dos seus antigos usos; entretanto, será esta dominação legitima e o systema colonial humanitario que permitia a qualquer escriptor sustentar o direito e a pretendida philantropia da liberal Inglaterra nas suas possessões da India?

A mais cabal prova do vicio da sociedade ingleza, é a miseria que se observa nos seus proprios condados ou ducados e que faz callar o expontaneo sentimento de honra nas classes desprotegidas da fortuna.