CAPITULO XVIII

 
Excursões pelos arredores de Shangaï. — O collegio dos jesuitas em Si-Ka-Waii. — La Provence. — Chegada a Napoles


Yedo, a populosa capital do Japão, apresenta-se aos estrangeiros como o centro de um grande paiz que parece ainda em estado de organisação, porém que dispõe pelo seu commercio e pela actividade de seus habitantes, de ricos elementos, para ser, em breve, uma capital typo dos paizes asiaticos; Shangaï, ainda que seja mais moderna, limita o seu desenvolvimento em vista a especulação estrangeira, servindo, quasi que exclusivamente, de emporio dos objectos de importação para Pekin, ainda que, em troca, exporte alguns milhares de kilogrammas de excellente chá, que é cultivado nas immediações da capital do Celeste Imperio.

Shangaï, com suas bellas edificações, dispostas ao longo do caes, com suas largas ruas bem arborisadas, leva vantagem a qualquer outra cidade pelo aspecto todo europeo; o viajante, já acostumado com os habitos orientaes que e aporta a essa cidade, encontra todos os objectos indispensaveis de uso europêo, e uma sociedade escolhida e amavel que o faz crer em algumas das cidades situadas na margem do Rheno.

Sobre o cáes de Shangaï, vê-se edificações modernas e de imponente architectura, que são occupadas pelos bancos, escriptorios e pelas principaes casas de venda da cidade.

Em toda a extensão do cáes, existem pontes e docas para a descarga dos navios, e no centro, eleva-se o edificio da repartição fiscal da alfandega chineza que está sob a direcção de um agente do Sr. Hart.

Em uma avenida, parallela ao cáes, e que é orlada por bellas e comadas arvores, encontrão-se as casas de venda a retalho, sendo a maxima parte pertencente aos chins.

Nestas lojas, vendem-se todos os objectos de uso domestico na China, comprehendendo os objectos de luxo e de elevado preço. O charão, as obras d’arte em bronze e a porcellana abundão por toda parte: nas portas, sobre o balcão, em largas e altas prateleiras, dispostas em fórma de degráos; e o conjuncto destes objectos apresenta o aspecto de um verdadeiro musêo de curiosidades.

O marfim é trabalhado com arte pelos chins, e ainda que vissemos na India meridional grandes pedaços desta substancia, representando elephantes e os deoses indianos, comtudo, é na China que se encontrão grandes modelos de graciosas embarcações, de bem ornados palacios; – tudo apresentando tal minudencia, de que só os chins, pela paciencia com que trabalhão, são capazes.

Alguns dias depois da nossa chegada á Shangaï, partimos em carro puchado por dois fogosos cavallos australianos, em direcção a escola dos jesuitas, situada ou Si-Ka-Waii.

Durante o trajecto de algumas leguas, só vimos largos e extensos campos, que deverão ser chamados os campos dos mortos: tal é o numero de tumulos que nelles se achão espalhados.

Em alguns lugares, a estrada se estreita, porém, de ambos os lados, apparecem por centenas e centenas as lapides amarellas e os massicos de alvenaria, que cobrem ou rodeão os tumulos.

Em outros lugares, são verdadeiros esquifes que se mostrão, todos de madeira e quasi sempre rodeados por viçosas couves e outras hortaliças, e que, segundo nos disserão, são sem escrupulo enviadas ao mercado de Shangai. Sob a acção dos raios do sol, estes corpos desprendem taes miasmas que o viajante é obrigado a empregar perfumes, para não se deixar infeccionar pelo cheiro nauseabundo que o obriga a conservar-se callado, e que faz desapparecer os encantos dessas excursões.

Esse modo, dos chins venerarem os restos mortaes de seus maiores, já tem sido, por varias vezes, fatal a saúde de populações inteiras.

Os esquifes, sendo de madeira e mal fechados, não preservão os corpos do contacto do ar, de modo que, em poucas horas, elles estão em completo estado de putrefacção formando, assim, verdadeiros focos de epidemia.

No fim de tres horas de rapida viagem, tinhamos percorrido os dez kilometros que separão Si-Ka-Waii de Shangai.

Si-Ka-Waii é uma pequena povoação de individuos, na môr parte jovens chinezes que recebem excellente educação moral e intellectual de dedicados missionarios jesuitas.

O collegio contava em 1874 mais de mil alumnos que se achavão divididos em tres classes:

A primeira comprehendia seiscentas e algumas crianças que aprendião a ler, escrever e contar, e, em certas horas, diversas profissões como a do carpinteiro, pedreiro, marceneiro, impressor, etc.

A segunda contava duzentos alumnos, mais ou menos, os quaes erão escolhidos d’entre os mais intelligentes e que mostravão aptidão para os estudos. Estes recebião uma educação litteraria, mas essencialmente chineza.

A terceira classe ou classe superior, compunha-se de jovens estudantes, que já tinhão dado provas sufficientes das materias da 2ª classe.

Os alumnos desta classe estudavão o sanscrito, o latim, a rhetorica, a poetica, litteratura geral e linguas vivas, com especialidade o inglez.

Ao concluir este curso de estudos, os estudantes recebem sucessivamente o gráo de bacharel, licenciado ou doutor, e chegando a certa idade são nomeados mandarins.

Apezar de christãos, os doutores chinezes aprofundão e discutem a philosophia de Confucio, do mesmo modo que, entre nós, os estudantes adiantados das nossas escolas entregão-se ao estudo da philosophia positiva, desenvolvida magistralmente por Augusto Comte.

E, na verdade, estes dois grandes homens estabeleceram a philosophia debaixo dos mesmos principios; o primeiro, a verdade religiosa livremente comprovada pela razão humana; o segundo, tudo pela observação, cujas condições devem ser estabelecidas pelo methodo e verificadas.

Porém, Confucio não limitou a liberdade, deixou a razão livremente julgar; emquanto que Comte pára em sua analyse e chega a anniquilar as faculdades do homem, não negando nem affirmando. O exame do mundo moral parece, segundo elle, não constituir prova.

Visitamos na vespera da nossa partida para França um templo chinez de grande nomeada, que se acha edificado na direcção norte de Shangaï e distante de duas leguas dessa cidade.

O templo eleva-se no meio de uma planice arenosa, e mede trinta e cinco metros de altura.

Na parte superior vê-se elevados curucheos que cobrem os tres corpos principaes do templo.

Na frente, pequenas janellas de forma ogival, e ornadas com complicados relevos; nos lados, estendem-se lindas avenidas que são limitadas pela luxuriante vegetação de densos bosquetes que ha muito tempo são conservados.

No interior, o principal personagem é um grande Budhá de oito a dez metros de altura, e que tem a seus lados os deoses do mal e do bem – Vichnou e Siva.

Os padres chins vestem uma especie de batina feita de estofo preto ou azul ferrete, e sobre a cabeça trazem uma gerra de estofo de seda azul claro.

Alguns, vivem no interior do templo, muitos têm familia e habitam nas immediações, sendo, porém, obrigados, segundo nos informarão, a comparecerem tres vezes por dia ao templo para os Officios Divinos.

Ao despedirmo-nos dos padres chins, offerecemos algumas piastras a um delles, que aceitou, porém nos fez dizer pelo interprete, que empregaria em esmolas o pequeno obulo, pois, os christãos não deverião concorrer para sustentação do Culto de Budhá; o que agradecemos por julgarmos mais acertado o emprego.

Approveitamos o ensejo para colhermos interessantes informações sobre a caridade chineza. Soubemos que mesmo em Shangaï, existia dois hospitaes para os desprotegidos da fortuna, e que estes estabelecimentos de caridade erão custeados pelos habitantes, que a administração achava-se á cargo dos sacerdotes budhistas, os quaes annualmente prestavão contas ao mandarim civil da cidade.

E como um dos ministros do gigante Budhá perguntasse qual era nossa opinião sobre a cidade chineza de Shangaï, e com franqueza respondessemos, que o seu aspecto era triste e indicava haver muita miseria dentro de seus muros, o padre chim, longe de se mostrar contrariado, disse-nos que já esperava essa resposta, porém que os individuos que mendigavão pelas ruas, rôtos e esfarrapados, erão verdadeiros vagabundos, viajando de cidade em cidade implorando a caridade publica, e que se demoravão em cada uma, apenas alguns dias, até que a policia os obrigava a partir.

Na vespera da nossa partida visitamos pela ultima vez a cidade chineza, e como tivesse chovido durante toda a noite e prevessemos a influencia da chuva sobre a lama das estreitas ruas dos chins, calçamos nossas botas de montar, mas, nem assim, as nossas vestes sahirão de tal chiqueiro sem serem cobertas de lama; e os chins, quasi que atolados, salpicavão com profusão grossas gotas do pastoso liquido sobre as vestes dos seus proprios mandarins.

No dia seguinte, pela manhã, embarcamo-nos a bordo do navio que devia levar-nos a Europa.

La Provence é um velho, porém commodo paquete das Messageries maritimes; o seu commandante era um bravo e delicado cavalheiro, que havia trinta annos vivia sobre as ondas.

Partindo de Shangaï chegamos depois de quatro dias a Hong-Kong, onde demoramo-nos um dia; sete dias depois abordavamos a Saigon, e no fim de cincoenta dias de viagem, depois de termos aportado em Sincapura, Ceylão, Aden, Suez, etc., chegamos á bella cidade de Napoles, exhaustos de forças pelas fadigas de uma longa viagem de mar, ainda que, fortemente impressionados com o que tinhamos visto nos paizes do Oriente.

Nos pareceu que tinhamos vivido varios annos durante os nove mezes que estivemos ausentes da Europa; e se uma longa viagem apresenta muitas vezes inconvenientes, é no mór numero dos casos, a mais instructiva e salutar distracção, das que o homem póde, sem prejudicar o proximo, gosar durante o curto tempo que vivemos.

Se podessemos, percorreriamos tantas vezes todos os mares e todos os paizes, que traçariamos em nossa marcha, pelas terras e mares, todos os circulos que vemos das espheras terrestres.

E, se assim fizessemos, só o leitor seria prejudicado em seus preciosos momentos de ocio, pelos numerosos volumes que entregariamos a mercê de sua avida curiosidade.