Em casa de EDUARDO. Gabinete de estudo.
CENA PRIMEIRA
editarCARLOTINHA, HENRIQUETA
CARLOTINHA – Mano, mano! (Voltando-se para a porta.) Não te disse? Saiu! (Acenando.) Vem, psiu, vem!
HENRIQUETA – Não, ele pode zangar-se quando souber.
CARLOTINHA – Quem vai contar-lhe? Demais, que tem isso? Os homens não dizem que as moças são curiosas?
HENRIQUETA – Mas, Carlotinha, não é bonito uma moça entrar no quarto de um moço solteiro.
CARLOTINHA – Sozinha, sim; mas com a irmã não faz mal.
HENRIQUETA – Sempre faz.
CARLOTINHA – Ora! Estavas morrendo de vontade.
HENRIQUETA – Eu não; tu é que me chamaste.
CARLOTINIIA – Porque me fazias tantas perguntinhas, que logo percebi o que havia aqui dentro. (No coração.)
HENRIQUETA – Carlotinha!...
CARLOTINHA – Está bom, não te zangues.
HENRIQUETA – Não; mas tens lembranças!
CARLOTINHA – Que parecem esquecimentos, não é? Esquecia-me que não gostas que adivinhem os teus segredos.
HENRIQUETA – Não os tenho.
CARLOTINHA – Anda lá!... Oh! meu Deus! Que desordem! Aquele moleque não arranja o quarto do senhor; depois mano vem e fica maçado.
HENRIQUETA – Vamos nós arranjá-lo?
CARLOTINHA – Está dito; ele nunca teve criadas desta ordem.
HENRIQUETA (a meia voz) – Porque não quis!
CARLOTINHA – Que dizes?... Cá está uma gravata.
HENRIQUETA – Um par de luvas.
CARLOTINHA – As botinas em cima da cadeira.
HENRIQUETA – Os livros no chão.
CARLOTINHA – Ah! Agora pode-se ver!
HENRIQUETA – Não abrimos a janela?
CARLOTINHA – É verdade. (Abre.)
HENRIQUETA – Daqui vê-se a minha casa; olha!
CARLOTINHA – Pois agora é que sabes? Nunca viste mano Eduardo nesta janela?
HENRIQUETA – Não; nunca.
CARLOTINHA – Fala a verdade, Henriqueta!
HENRIQUETA – Já te disse que não: se vi, não me lembra. Há tanto tempo que esta janela não se abre!
CARLOTINHA – Bravo! Depois não digas que são lembranças minhas.
HENRIQUETA – O que? O que disse eu?
CARLOTINHA – Nada; traíste o teu segredo, minha amiguinha. Se tu sabes que esta janela não se abre, é porque todos os dias olhas para ela.
HENRIQUETA – Pois não...
CARLOTINHA – Para que procuras esconder uma coisa que teus olhos estão dizendo? Tu choras!... Por quê? É pelo que eu disse? Perdoa, não falo mais em semelhante coisa.
HENRIQUETA – Sim; eu te peço, Carlotinha. Se soubesses o que eu sofro...
CARLOTINHA – Como! Meu irmão é tão indigno de ti, Henriqueta, que te ofendes com um simples gracejo a seu respeito?
HENRIQUETA – Eu é que não sou digna dele; não mereço, nem mesmo por tua causa, uma palavra de amizade!
CARLOTINHA – Que dizes! Mano Eduardo te trata mal?
HENRIQUETA – Mal, não; mas com indiferença, com uma frieza!... Às vezes nem me olha.
CARLOTINHA – Mas antes, quando nos visitavas mais a miúdo, e passavas dia conosco, ele brincava tanto contigo!
HENRIQUETA – Sim; porém, um dia, tu não reparaste, talvez; eu me lembro... ainda me dói! Um dia vim passar a tarde contigo, e durante todo o tempo que estive aqui ele não me deu uma palavra. CARLOTINHA – Distração! Não foi de propósito.
HENRIQUETA – Oh! foi! Desde então essa janela nunca mais se abriu. Agora posso dizer-te tudo... Eu o via do meu quarto a todas as horas do dia; de manhã, apenas acordava, já ele estava; antes de jantar, quando ele chegava, eu o esperava; e à tarde, ao escurecer.
CARLOTINHA – E nunca me disseste nada!
HENRIQUETA – Tinha vergonha. Hoje mesmo se não adivinhasses, se eu não me traísse.
CARLOTINHA – Deixa estar que hei de perguntar-lhe a razão disto.
HENRIQUETA – Eu te suplico! Não lhe digas nada. Para quê? Sofri dois meses, sofri como tu não fazes ideia. Uns versos sobretudo que ele me mandou fizeram-me chorar uma noite inteira.
CARLOTINHA – Mas por isso mesmo! Não quero que ele te faça chorar. Hei de obrigá-lo a ser para ti o mesmo que era.
HENRIQUETA – Agora... É impossível!
CARLOTINHA – Por quê?
HENRIQUETA – Não tenho coragem de dizer; e, entretanto, vim hoje só para dar-te parte e para... despedir-me desta casa.
CARLOTINHA – Vais fazer alguma viagem?
HENRIQUETA – Não, mas vou... (Ouve-se subir a escada.)
CARLOTINHA – É ele! É mano!
HENRIQUETA – Ah! Meu Deus!
CARLOTINHA – Depressa! Corre!...
CENA II
editarEDUARDO, CARLOTINHA
EDUARDO – Pedro!... Moleque!... O brejeiro anda passeando, naturalmente! Pedro!
CARLOTINHA (entrando) – O que quer, mano? Pedro saiu.
EDUARDO – Onde foi?
CARLOTINHA – Não sei.
EDUARDO – Por que o deixaste sair?
CARLOTINHA – Ora! Há quem possa com aquele seu moleque? É um azougue; nem à mamãe tem respeito.
EDUARDO – Realmente é insuportável; já não o posso aturar.
CENA III
editarOs mesmos, PEDRO
PEDRO – Senhor chamou?
EDUARDO – Onde andava?
PEDRO – Fui ali na loja da esquina.
EDUARDO – Fazer o quê? Quem lhe mandou lá?
CARLOTINHA – Foi vadiar; é só o que ele faz.
PEDRO – Não, nhanhã; fui comprar soldadinho de chumbo.
EDUARDO – Ah! O senhor ainda brinca com soldados de chumbo... Corra, vá chamar-me um tílburi na praça; já, de um pulo.
PEDRO – Sim, senhor.
CENA IV
editarEDUARDO, CARLOTINHA
CARLOTINHA – Onde vai, mano?
EDUARDO – Vou ao Catete ver um doente; volto já.
CARLOTINHA – Eu queria falar-lhe.
EDUARDO – Quando voltar, menina.
CARLOTINHA – E por que não agora?
EDUARDO – Tenho pressa, não posso esperar. Queres ir hoje ao Teatro Lírico?
CARLOTINHA – Não, não estou disposta.
EDUARDO – Pois representa-se uma ópera bonita. (Enche a carteira de charutos.) Canta a Charton. Há muito tempo que não vamos ao teatro.
CARLOTINHA – É verdade; mas quem nos acompanha é você, e seus trabalhos, sua vida ocupada... Depois, mano, noto que anda triste.
EDUARDO – Triste? Não, é meu gênio; sou naturalmente. seco; gosto pouco de divertimentos.
CARLOTINHA – Mas houve um tempo em que não era assim; brincávamos, passávamos as noites a tocar piano e a conversar; você, Henriqueta e eu. Lembra-se?
EDUARDO – Se me lembro!... Estava formando há pouco, não tinha clínica. Hoje falta-me o tempo para as distrações.
CENA V
editarOs mesmos, PEDRO
PEDRO – Está aí o tílburi, sim, senhor; carro novo, cavalinho bom.
EDUARDO – Agora veja se se larga outra vez. Quero tudo isto arrumado, no seu lugar; não me toque nos meus livros; escove esta roupa. Respeite-me os charutos. Quem abriu aquela janela?
CARLOTINHA – Fui eu, mano. Fiz mal?
EDUARDO – Não gosto que esteja aberta, o vento leva-me os papéis. (A PEDRO.) Fecha!
CARLOTINHA – Você outrora gostava de passar as tardes ali, fumando ou lendo.
EDUARDO – Até logo, Carlotinha. Moleque, não saia.
CARLOTINHA – Ouça, mano!... Não quer ver Henriqueta?
EDUARDO – Ah!... Há muito tempo não te visitava!
CARLOTINHA – Por isso mesmo, venha falar-lhe.
EDUARDO – Não; já me demorei mais do que pretendia.
CARLOTINHA – Escute!
CENA VI
editarPEDRO, CARLOTINHA
PEDRO – Sr. moço Eduardo pensa que a gente tem perna de pau e não precisa andar!
CARLOTINHA – Fecha aquela porta!
PEDRO – Então, nhanhã, V.M.ce não recebe aquele bilhete, não?
CARLOTINHA – Moleque! Tu estás muito atrevido!...
PEDRO – Pois olhe, nhanhã; o moço é bonito, petimetre mesmo da moda!... Mais do que o Sr. moço Eduardo. Xi!... Nem tem comparação!
CARLOTINHA – Não o conheço!
PEDRO – Pois ele conhece nhanhã; passa aqui todo o dia. Chapéu branco de castor, deste de aba revirada; chapéu fino; custa caro! Sobrecasaca assim meio recortada, que tem um nome francês; calça justinha na perna; bota do Dias; bengalinha desse bicho, que se chama unicorne. Se nhanhã chegar na janela depois do almoço há de ver ele passar, só gingando: Tchá, tchá, tchá... Hum!... Moço bonito mesmo!
CARLOTINHA – Melhor para ele; não faltará a quem namore. PEDRO – Não falta, não; mas ele só gosta de nhanhã. Quando passa, nhanhã não vê; mas eu, cá de baixo, estou só espreitando. Vai olhando para trás, de pescocinho torto! Porém nhanhã não faz caso dele!
CARLOTINHA – É um desfrutável! Está sempre a torcer o bigode!
PEDRO – É da moda, nhanhã! Aquele bigodinho, assim enroscado, onde nhanhã vê, é um anzol; anda só pescando coração de moça.
CARLOTINHA – Moleque, se tu me falares mais em semelhante coisa, conto a teu senhor. Olha lá! PEDRO – Está bom, nhanhã; não precisa se zangar. Eu digo ao moço que nhanhã não gosta dele, que ele tem uma cara de frasquinho de cheiro...
CARLOTINHA – Dize o que tu quiseres, contanto que não me contes mais histórias.
PEDRO – Mas agora como há de ser!... Ele me deu dez mil-réis.
CARLOTINHA – Para quê?
PEDRO – Para entregar bilhete a nhanhã. (Tira o bilhete.) Bilhetinho cheiroso; papel todo bordado!
CARLOTINHA – Ah! se mano soubesse!
PEDRO – Ele é amigo de Sr. moço Eduardo.
CARLOTINHA – Nunca vem aqui!
PEDRO – Oh! se vem; ainda ontem; por sinal que me perguntou se já tinha entregado.
CARLOTINHA – E tu que respondeste?
PEDRO – Que nhanhã não queria receber.
CARLOTINHA – E por que não restituíste a carta?
PEDRO – Porque a carta veio com os dez mil-réis... e eu gastei o dinheiro, nhanhã.
CARLOTINHA – Ah! Pedro, sabes em que te meteste?
PEDRO – Mas que tem que nhanhã receba! É um moço mesmo na ordem!
CARLOTINHA – Não!... não devo! (Chega-se á estante e escolhe um livro.)
PEDRO – Nhanhá não há de ser freira!... (Mete a carta no bolso sem que ela o perceba.) Entregue está ela!
CARLOTINHA – Que dizes?
PEDRO – Nada, nhanhã! Que V.M.ce é uma moça muito bonita e Pedro um moleque muito sabido!
CARLOTINHA – É melhor que arrumes o quarto de teu senhor, vadio! (CARLOTINHA senta-se e lê.)
PEDRO – Isto é um instante! Mas nhanhã precisa casar! Com um moço rico como Sr. Alfredo, que ponha nhanhã mesmo no tom, fazendo figuração. Nhanhã há de ter uma casa grande, grande, com jardim na frente, moleque de gesso no telhado; quatro carros na cocheira; duas parelhas, e Pedro cocheiro de nhanhã.
CARLOTINHA – Mas tu não és meu, és de mano Eduardo.
PEDRO – Não faz mal; nhanhã fica rica, compra Pedro; manda fazer para ele sobrecasaca preta à inglesa: bota de canhão até aqui (marca o joelho); chapéu de castor; tope de sinhá, tope azul no ombro. E Pedro só, trás, zaz, zaz! E moleque da rua dizendo "Eh! cocheiro de sinhá D. Carlotinha!"
CARLOTINHA – Cuida no que tens que fazer, Pedro. Teu senhor não tarda.
PEDRO – É já; não custa! Meio-dia, nhanhã vai passear na Rua do Ouvidor, no braço do marido. Chapeuzinho aqui na nuca, peitinho estufado, tundá arrastando só! Assim, moça bonita! Quebrando debaixo da seda, e a saia fazendo xô, xô, xô! Moço, rapaz deputado, tudo na casa do Desmarais de luneta no olho: "Oh! Que paixão!..." O outro já: "V.Ex.a passa bem?" E aquele homem que escreve no jornal tomando nota para meter nhanhã no folhetim.
CARLOTINHA – Oh! meu Deus! Que moleque falador! Não te calarás? (Lê.)
PEDRO – Quando é de tarde, carro na porta; parelha de cavalos brancos, fogosos; Pedro na boleia, direitinho, chapéu de lado, só tenteando as rédeas. Nhanhã entra; vestido toma o carro todo, corpinho reclinado embalançando: "Botafogo!" Pedro puxou as rédeas; chicote estalou; tá, tá, tá; cavalo, toc, toc, toc; carro trrr!... Gente toda na janela perguntando: "Quem é? Quem é?" – "D. Carlotinha..." Bonito carro! Cocheiro bom!... E Pedro só deitando poeira nos olhos de boleeiro de aluguel.
CARLOTINHA – Ora, mano não vem! Disse que voltava já!
PEDRO – De noite, baile de estrondo, como baile do Sr. Barão de Meriti; linha de carro na porta, até no fim da rua, e torce na outra; ministro, deputado, senador, homem do paço, só de farda bordada, com pão-de-rala no peito. Moça como formiga! Mas nhanhã pisa tudo; brilhante reluzindo na testa como faísca, leque abanando, vestido cheio de renda. Tudo caído só, com o olho de jacaré assim. E nhanhã sem fazer caso.
CARLOTINHA (rindo) – Onde é que tu aprendeste todas essas histórias, moleque? Estás adiantado!
PEDRO – Pedro sabe tudo!... Daí a pouco, música vom, vom, vom, tra-ra-lá, tra-ra-lá-ta; vem ministro, toma nhanhã para dançar contradança; e nhanhã só requebrando o corpo! (Arremeda a contradança.)
CARLOTINHA – Ora, senhor! Já se viu que capetinha!
CENA VII
editarOs mesmos, JORGE
JORGE – Mana Carlotinha, Henriqueta está lhe chamando para dizer-lhe adeus.
PEDRO – Sinhá Henriqueta está ai?
CARLOTINHA – Ela já vai?
JORGE – Já está deitando o chapéu.
CARLOTINHA – É tão cedo ainda!
PEDRO – Duas horas já deu há muito tempo em S. Francisco de Paula.
CARLOTINHA (à janela) – Mano não voltará para jantar?...
PEDRO – Não tarda aí, nhanhã!
JORGE (na mesa) – Olha! que pintura bonita, Pedro!
PEDRO – Comece, comece a remexer! Depois fica todo derretido. Foi moleque!...
CARLOTINHA – Quando Eduardo voltar, vai me chamar, ouviste, Pedro?... Jorge, venha!
JORGE – Já vou, Carlotinha!
CARLOTINHA – Não toque nos papéis de Eduardo; ele não gosta.
CENA VIII
editarPEDRO, JORGE
PEDRO (querendo tomar o livro) – Ande, ande, nhonhô; vá lá para dentro! Deixe o livro.
JORGE – Se tu és capaz, vem tomar!
PEDRO – Ora! É só querer!
JORGE – Pois eu to mostrei!
PEDRO – Está arrumado! Pedro, moleque capoeira, mesmo da malta, conta lá com menino de colégio! Caia! É só neste jeito; pé no queixo, testa na barriga.
JORGE – Espera; vou dizer a mamãe que tu estás te engraçando comigo!
PEDRO – É só o que sabe fazer; enredo da gente! Nhonhô não vê que é de brincadeira. Olhe este livro; tem pintura também; mulher bonita mesmo! (Abre o livro.)
JORGE – Deixa ver! Bravo!... Que belo! (Tirando um papel.) Que é isto?
PEDRO – Um verso!... Oh! Pedro vai levar à viúva!
JORGE – Que viúva?
PEDRO – Essa que mora aqui adiante!
JORGE – Para quê?
PEDRO – Nhonhô não sabe? Ela tem paixão forte por Sr. moço Eduardo; quando vê ele passar, coração faz tuco, tuco, tuco! Quer casar com doutor.
JORGE – E mano vai casar com ela?
PEDRO – Pois então! Mas não vá agora contar a todo o mundo.
JORGE – E ele gosta daquela mulher tão feia? Antes fosse com D. Henriqueta.
PEDRO – Menino não entende disto! Sinhá Henriqueta é moça bonita mas é pobre! A viúva é rica, duzentos contos! Sr. moço casa com ela e fica capitalista, com dinheiro grosso! Compra carro e faz Pedro cocheiro!... Leia o verso, nhonhô.
JORGE – Deixa-me; não estou para isto!
PEDRO – Ah! Se Pedro soubesse ler (sentando-se) fazia como doutor, sentado na poltrona, com o livro na mão e puxando só a fumacinha do havana. Por falar em havana. .. (Ergue-se, vai à mesa e mete a mão na caixa dos charutos.) Com efeito! Sr. moço Eduardo está fumando muito! Uma caixa aberta ontem; neste jeito acaba-me os charutos.
JORGE – Ah! tu estás tirando os charutos de mano!
PEDRO – Cale a boca, nhonhô Jorge! É para fumar quando nós formos passear lá na Glória, de tarde.
JORGE – Amanhã?
PEDRO – Sim.
JORGE – Eu vou pedir a mamãe.
PEDRO – Espere, deite sobrescrito neste verso, roxo, não; viúva não gosta desta cor; verde, cor de esperança!
JORGE – Toma!
PEDRO – Pronto!... Agora Pedro chega lá, deita na banquinha de costura, volta as costas fazendo que não vê! Ela, fogo! (Finge que beija.) Lê. E guarda no seio, tal qual como se o Sr. moço mandasse. O pior é se vai perguntar, como outro dia, por que Sr. moço não vai visitar ela; eu respondi que era para não dar que falar; mas viúva não quer saber de nada; está morrendo por tomar banho na igreja para deixar vestido preto!
JORGE – Então tu levas versos a ela sem mano mandar?
PEDRO – Pedro sabe o que faz! Agora veja se vai contar!
JORGE – Eu não!! Que me importa isto!
CENA IX
editarPEDRO, ALFREDO
ALFREDO – O Dr. Eduardo não está?
PEDRO – Não, senhor; saiu, Sr. Alfredo!
ALFREDO – Então, já entregaste?
PEDRO – Hoje mesmo!
ALFREDO – A resposta?
PEDRO – Logo; é preciso dar tempo. V.M.ce cuida que moça escreve a vapor! Pois não; primeiro passa um dia inteiro a ler a carta, depois outro dia a olhar assim para o ar com a mão no queixo, depois tem dor de cabeça para dormir acordada; por fim vai escrever e rasga um caderno de papel.
ALFREDO – Parece-me que tu me estás enganando; não entregaste a carta a D. Carlotinha, e para te desculpar me contas estas histórias.
PEDRO – Não sou capaz de enganar a meu senhor.
ALFREDO – Pois bem; o que disse ela quando recebeu?
PEDRO – Perguntou quem era V.M.ce.
ALFREDO – E tu, que respondeste?
PEDRO – Ora, já se sabe: moço rico bem parecido.
ALFREDO – Quem te disse que eu era rico? Não quero passar pelo que não sou.
PEDRO – Não tem nada; riqueza faz crescer amor.
ALFREDO – Também sabes isto?... Mas depois, que fez ela da carta?
PEDRO – Deitou no bolso. Fui eu que deitei; mas é o mesmo.
ALFREDO – Como? Foste tu que deitaste...
PEDRO – No bolso do vestido! Ela estava com vergonha. Sr. Alfredo não sabe moça como é, não?
ALFREDO – Bem; olha que espero a resposta!
PEDRO – Dê tempo ao tempo, que tudo se arranja.
CENA X
Os mesmos, CARLOTINHA
CARLOTINHA (fora) – Pedro!
PEDRO (puxando ALFREDO para a porta) – É nhanhã!
ALFREDO – Não faz mal!
PEDRO – Este negócio assim não está bom, não!
ALFREDO – Por quê?
CARLOTINHA – Moleque, tu tiveste o atrevimento... (Vendo ALFREDO) Ah!
ALFREDO – Perdão, minha senhora; procurava o Dr. Eduardo.
CARLOTINHA – Ele saiu... Eu vou chamar mamãe...
ALFREDO – Não precisa, minha senhora, eu me retiro já; mas antes desejava ter a honra de...
PEDRO (baixo, puxando-lhe pela manga) – Não assuste a moça! Senão está tudo perdido.
ALFREDO – E não hei de fazer a declaração do meu amor?
PEDRO – Qual declaração! Já não se usa!
ALFREDO – Então julgas que não devo falar-lhe?
PEDRO – Nem uma palavra. Mostre-se arrufado, que é para ela responder. Moça é como carrapato, quanto mais a gente machuca, mais ela se agarra.
ALFREDO – Ah! Ela não quer responder-me! (Cumprimenta friamente.)
CARLOTINHA – Não espera por mano?
ALFREDO – Obrigado; não desejo incomodá-la.
CARLOTINHA – A mim!
CENA XI
editarCARLOTINHA, PEDRO
CARLOTINHA – Nem sequer me olhou! E diz que gosta de mim! A primeira vez que me fala...
PEDRO – O moço está queimado, hi!...
CARLOTINHA – Ora, que me importa? O que te disse ele?
PEDRO – Perguntou por que nhanhã não queria responder à carta dele.
CARLOTINHA – Ah! É sobre isto mesmo... Tu sabes o que vim fazer, Pedro?
PEDRO (rindo-se) – Veio ver Sr. Alfredo!
CARLOTINHA – Eu adivinhava que ele estava aqui?... Vim te chamar porque mamãe quer te perguntar donde saiu esta carta que deitaste no meu bolso.
PEDRO – Nhanhã foi dizer?... Pois não!... Esta Pedro não engole.
CARLOTINHA – Chego na sala; vou meter a mão no bolso, encontro um papel; abro-o; é uma carta de namoro! Não sei como mamãe não percebeu!...
PEDRO – Ah! Nhanhã abriu!... Então leu.
CARLOTINHA – Não li! É mentira
PEDRO (com um muxoxo) – Mosca anda voando; tocou no mel, caiu dentro do prato. Nhanhã leu!
CÁRLOTINHA – E que tinha que lesse?
PEDRO – Se leu, deve responder!
CARLOTINHA – Faz-te de engraçado! (Dando a carta.) Toma; não quero!
PEDRO – Nhanhã faz isto a um moço delicado!
CARLOTINHA – Saiu; e nem sequer me olhou.
PEDRO – Não sabe por quê? Porque nhanhã não quis responder à carta dele.
CARLOTINHA – E o que hei de eu responder?
PEDRO – Um palavreado, como nhanhã diz quando está no baile.
CARLOTINHA – Mas ele escreveu em verso.
PEDRO – Ah, é verso! E V.M.ce não sabe fazer verso?
CARLOTINHA – Eu não; nunca aprendi.
PEDRO – É muito fácil, eu ensino a nhanhã; vejo Sr. moço Eduardo fazer. Quando é esta coisa que se chama prosa, escreve-se O papel todo; quando é verso, é só no meio, aquelas carreirinhas. (Vai à mesa.) Olhe! olhe, nhanhã!
CARLOTINHA – Sabes que mais? A resposta que eu tenho de dar é esta: dize-lhe que, se deseja casar comigo, fale a mano.
PEDRO – Ora, tudo está em receber a primeira; depois é carta para lá e carta para cá; a gente anda como correio de ministro.
CARLOTINHA – Eu te mostrarei.
CENA XII
editarPEDRO, EDUARDO e AZEVEDO
EDUARDO – Onde vai?
PEDRO – Ia abrir a porta a meu senhor!
EDUARDO (para a escada) – Entra, Azevedo! Eis aqui o meu aposento de rapaz solteiro; uma sala e uma alcova. É pequeno, porém basta-me!
AZEVEDO – É um excelente appartement! Magnífico para um garçon... Este é o teu valet de chambre?
EDUARDO – É verdade; um vadio de conta!
PEDRO (a AZEVEDO, em meia voz) – Hô... Senhor está descompondo Pedro na língua francesa.
EDUARDO – Deste lado é o interior da casa; aqui tenho janelas para um pequeno jardim e uma bela vista. Vivo completamente independente da família. Tenho esta entrada separada. Por isso podes vir conversar quando quiseres, sem a menor cerimônia; estaremos em perfeita liberdade escolástica.
AZEVEDO – Obrigado, hei de aparecer. Ah! tens as tuas paisagens signées Lacroix? Mas não são legítimas; vi-as em Paris chez Goupil; fazem uma diferença enorme.
EDUARDO – Não há dúvida; mas não as comprei pelo nome, achei-as bonitas. Queres fumar?
AZEVEDO – Aceito. Esqueci o meu porte-cigarres. São excelentes os teus charutos. Onde os compras? No Desmarais?
EDUARDO – Onde os encontro melhores. (PEDRO acende uma vela.)
PEDRO (baixo) – Rapaz muito desfrutável, Sr. moço! Parece cabeleireiro da Rua do Ouvidor!
EDUARDO – Cala-te!
AZEVEDO (acende o charuto) – Obrigado!... Eis o que se chama em Paris – parfumer la causerie!
CENA XIII
editarEDUARDO, AZEVEDO
EDUARDO – Com que então, vais te casar? Ora quem diria que aquele Azevedo, que eu conheci tão volúvel, tão apologista do celibato...
AZEVEDO – E ainda sou, meu amigo; dou-te de conselho que não te cases. O celibato é o verdadeiro estado!... Lembra-te que Cristo foi garçon!
EDUARDO – Sim; mas as tuas teorias não se conformam com esse exemplo de sublime castidade!
AZEVEDO – Considera, meu caro, a diferença que vai da divindade ao homem.
EDUARDO – Mas enfim, sempre te resolveste a casar?
AZEVEDO – Certas razões!
EDUARDO – Uma paixão?
AZEVEDO – Qual! Sabes que sou incapaz de amar o quer que seja. Algum tempo quis convencer-me que o meu eu amava a minha bête, que era egoísta, mas desenganei-me. Faço tão pouco caso de mim, como do resto da raça humana.
EDUARDO – Assim, não amas a tua noiva?
AZEVEDO – Não, decerto.
EDUARDO – É rica, talvez; casas por conveniências?
AZEVEDO – Ora, meu amigo, um moço de trinta anos, que tem, como eu, uma fortuna independente, não precisa tentar a chasse au mariage. Com trezentos contos pode-se viver.
EDUARDO E viver brilhantemente; porém não compreendo então o motivo...
AZEVEDO – Eu te digo! Estou completamente blasé, estou gasto para essa vida de flaneur dos salões; Paris me saciou. Mabille e Chôteau des Fleurs embriagaram-me tantas vezes de prazer que me deixaram insensível. O amor hoje é para mim um copo de Cliqcot que espuma no cálice, mas já não me tolda o espírito!
EDUARDO – E esperaste chegar a este estado para te casares?
AZEVEDO – Justamente. Tiro disso duas conveniências: a primeira é que um marido como eu está preparado para desempenhar perfeitamente o seu grave papel de carregador do mantelete, do leque ou do binóculo, e de apresentador dos apaixonados de sua mulher.
EDUARDO – Com efeito! Admiro o sangue frio com que descreves a perspectiva do teu casamento.
AZEVEDO – Chacun son tour, Eduardo, nada mais justo. A segunda conveniência, e a principal, é que, rico, independente, com alguma inteligência, quanto basta para esperdiçar em uma conversa banal, resolvi entrar na carreira pública.
EDUARDO – Seriamente?
AZEVEDO – Já dei os primeiros passos; pretendo a diplomacia ou a administração.
EDUARDO – E para isso precisa casar?
AZEVEDO – Decerto!... Uma mulher é indispensável, e uma mulher bonita!... É o meio pelo qual um homem se distingue no grand monde!... Um círculo de adoradores cerca imediatamente a senhora elegante, espirituosa, que fez a sua aparição nos salões de uma maneira deslumbrante! Os elogios, a admiração, a consideração social acompanharão na sua ascensão esse astro luminoso, cuja cauda é uma crinolina, e cujo brilho vem da casa do Valais ou da Berat, à custa de alguns contos de réis! Ora, como no matrimônio existe a comunhão de corpo e de bens, os apaixonados da mulher tornam-se amigos do marido, e vice-versa; o triunfo que tem a beleza de uma, lança um reflexo sobre a posição do outro. E assim consegue-se tudo!
EDUARDO – Tu gracejas, Azevedo; não é possível que um homem aceite dignamente esse papel. A mulher não é, nem deve ser, um objeto de ostentação que se traga como um alfinete de brilhante ou uma joia qualquer para chamar a atenção!
AZEVEDO – Bravo! Fizeste a mais justa das comparações, meu amigo! Disseste com muito espírito; a mulher é uma joia, um traste de luxo... E nada mais!
EDUARDO – Ora, não acredito que fales seriamente!
AZEVEDO – Podes não acreditar, mas isso não impede que a realidade seja essa. Estás ainda muito poeta, meu Eduardo! Vai a Paris e volta! Eu fui criança no espírito e voltei com a razão de um velho de oitenta anos!
EDUARDO – Mas com o coração pervertido!... Ouve, Azevedo. Estou convencido que há um grande erro na maneira de viver atualmente. A sociedade, isto é, a vida exterior, tem-se desenvolvido tanto que ameaça destruir a família, isto é, a vida íntima. A mulher, o marido, os filhos, os irmãos, atiram-se nesse turbilhão dos prazeres, passam dos bailes aos teatros, dos jantares às partidas; e quando, nas horas de repouso, se reúnem no interior de suas casas, são como estrangeiros que se encontram um momento sob a tolda do mesmo navio para se separarem logo. Não há ali a doce efusão dos sentimentos, nem o bem-estar do homem que respira numa atmosfera pura e suave. O serão da família desapareceu; são apenas alguns parentes que se juntam por hábito, e que trazem para a vida doméstica, um, o tédio dos prazeres, o outro, as recordações da noite antecedente, o outro, o aborrecimento das vigílias!
AZEVEDO – E que concluis desta tirada filosófico-sentimental?
EDUARDO – Concluo que é por isso que se encontram hoje tantos moços gastos como tu; tantas moças para quem a felicidade consiste em uma quadrilha; tantos maridos que correm atrás de uma sombra chamada consideração; e tantos pais iludidos que se arruinam para satisfazer o capricho de suas filhas julgando que é esse o meio de dar-lhes a ventura!
AZEVEDO – Realmente estás excêntrico. Onde é que aprendeste estas teorias?
EDUARDO – Na experiência. Também fui atraído, também fui levado pela imaginação que me dourava esses prazeres efêmeros, e conheci que só havia neles de real uma coisa.
AZEVEDO – O quê?
EDUARDO – Uma lição; uma boa e útil lição. Ensinaram-me a estimar aquilo que eu antes não sabia apreciar; fizeram-me voltar ao seio da família, à vida íntima!
AZEVEDO – Hás de mudar. (Toma o chapéu e as luvas.)
EDUARDO – Não creio!... Já te vais?
AZEVEDO – Tenho que fazer. Algumas maçadas de homem que se despede de sua vida de garçon. Janto hoje com minha noiva; amanhã parto para minha fazenda, onde me demorarei alguns dias, e na volta terei o prazer de te anunciar, com todas as formalidades de estilo, em carton porcelaine sob o competente enveloppe satinée et dorée sur tranche, o meu casamento com a Sra. D. Henriqueta de Vasconcelos.
EDUARDO – Henriqueta!... Ah! É com ela que te casas?
AZEVEDO – Sim. De que te admiras?
EDUARDO – Julguei que escolhesses melhor! É tão pobre!
AZEVEDO – Mas é bonita e tem muito espírito. Há de fazer furor quando a Gudin ajeitá-la à parisiense.
EDUARDO – Dizem que é muito modesta.
AZEVEDO – Toda a mulher é vaidosa, Eduardo; a modéstia mesmo é uma espécie de vaidade inventada pela pobreza para seu uso exclusivo.
EDUARDO – Assim, estás decidido?
AZEVEDO – Mais que decidido! Estou noivo já. Adeus, aparece; andas muito raro.
CENA XIV
editarEDUARDO, PEDRO
PEDRO – O jantar está na mesa.
EDUARDO – Não me maces! Vai-te embora.
PEDRO – Sr. não vem, então?
EDUARDO – Chega aqui. Tu sabias que D. Henriqueta estava para casar?
PEDRO – Sabia, sim, senhor; rapariga dela me contou.
EDUARDO – E por que não vieste dizer-me?
PEDRO – Porque V.M.ce me deu ordem que não falasse mais no nome dela.
EDUARDO – É verdade.
CENA XV
editarOs mesmos, CARLOTINHA
CARLOTINHA – Demorou-se muito, mano. Eu lhe esperei!... Agora vamos jantar.
EDUARDO – Não; não tenho vontade, deixa-me.
PEDRO – Sr. moço está triste porque sinhá Henriqueta vai casar!
EDUARDO – Moleque!
CARLOTINHA – Você sabia? Era dela mesmo que eu queria falar-lhe.
EDUARDO – Sabia; o seu noivo acaba de sair daqui.
CARLOTINHA – Um Azevedo, não é?
EDUARDO – Sim, um homem que, além de não amá-la, estima-a tanto como as suas botas envernizadas e os seus cavalos do Cabo!
CARLOTINHA – Mas você não sabe a razão desse casamento?
EDUARDO – Sei, Carlotinha. Um amor pobre possui tesouros de sentimentos, mas não é moeda com que se comprem veludos e sedas!
CARLOTINHA – Oh! mano, não seja injusto! Ela me contou tudo!
EDUARDO – Desejava saber o que te disse.
CARLOTINHA – Logo depois de jantar, no jardim. Venha, mamãe está nos esperando.