Em casa de EDUARDO. Sala interior.

CENA PRIMEIRA editar

EDUARDO, HENRIQUETA, CARLOTINHA, AZEVEDO, VASCONCELOS,

D. MARIA, PEDRO, JORGE

(Toma-se chá. Na mesa do centro, CARLOTINHA e AZEVEDO; à direita, VASCONCELOS e D. MARIA; à esquerda, HENRIQUETA; EDUARDO passeia, JORGE numa banquinha à esquerda. PEDRO serve.)

CARLOTINHA – Ora, Sr. Azevedo! Pois o senhor esteve em Paris e não aprendeu a fazer chá?...

AZEVEDO – Paris, minha senhora, não sabe tomar chá, é o privilégio de Londres.

D. MARIA (a PEDRO) – Serve ao Sr. Vasconcelos.

PEDRO (baixo, a JORGE) – Eh! Nhonhô! Hoje não fica pão no prato, velho jarreta limpa a bandeja.

VASCONCELOS – Excelentes fatias! É uma coisa que em sua casa sabem preparar!

CARLOTINHA – Mano Eduardo, venha tomar chá.

EDUARDO – Não; depois.

PEDRO (baixo, a CARLOTINHA) – Nhanhã está enfeitiçando o moço!

CARLOTINH& – Henriqueta, não dizes nada! Estás tão calada!

HENRIQUETA – Tu me deixaste sozinha.

CARLOTINHA – Tens razão!... Ora, mano, deixe-se de passear e venha conversar com a gente.

AZEVEDO – É verdade. Em que pensas, Eduardo? Na homeopatia ou nalguma beleza inconnue?

EDUARDO – Penso na teoria do casamento que me expuseste esta manhã; estou convertido às tuas ideias.

AZEVEDO – Ah!... D. Carlotinha, não quer que a sirva?

CARLOTINHA (ergue-se; a EDUARDO) – Vai-te sentar junto de Henriqueta.

EDUARDO (baixo) – Não; se me sento junto dela esqueço tudo. Tu me lembraste há pouco que sou o chefe de uma família.

CARLOTINHA – Não lhe entendo.

EDUARDO – Daqui a pouco entenderás.

D. MARIA – Tens alguma coisa, meu filho?

EDUARDO – Não, minha mãe; espero alguém que tarda.

CARLOTINHA (a HENRIQUETA) – Não te zangues!... (Beija-a na face.)

HENRIQUETA – Não; já estou habituada.

PEDRO (servindo HENRIQUETA) – Sr. moço Eduardo gosta muito de sinhá Henriqueta.

HENRIQUETA – Agora é que me dizes isto!

PEDRO – Ele há de casar com sinhá!

AZEVEDO – D. Maria, sabe? Sua filha está zombando desapiedadamente de mim.

CARLOTINHA – Não creia, mamãe.

D. MARIA – Decerto; não é possível, Sr. Azevedo.

VASCONCELOS (a PEDRO) – Deixa ver isto!

PEDRO (baixo) – Sr. Vasconcelos come como impingem!

VASCONCELOS – Hein!... (D. MARIA senta-se.)

PEDRO – Este pão está muito gostoso!

JORGE – Vem cá, Pedro!

PEDRO (baixo) – Guarda, nhonhô! Sinhá velha está só com olho revirado para ver se Pedro mete biscoito no bolso.

CARLOTINHA – Ora, Sr. Azevedo, não gosto de cumprimentos. Todo esse tempo, Henriqueta, o teu noivo não fez outra coisa senão dirigir-me finezas. Previno-te para que não acredites nelas!

HENRIQUETA – Estás tão alegre hoje, Carlotinha.

CARLOTINHA (baixo) – Isto quer dizer que estás triste! Tens razão! Fui egoísta. Mas ele te ama. HENRIQUETA – Tu o dizes!

AZEVEDO (a EDUARDO) – Realmente não pensava encontrar no Rio de Janeiro uma moça tão distinta como tua irmã. É uma verdadeira parisiense.

CARLOTINHA – Vamos para a sala! Venha Sr. Azevedo. Mano...

CENA II editar

VASCONCELOS, PEDRO, D. MARIA, JORGE

VASCONCELOS – É preciso também pensar em casar a Carlotinha, D. Maria; já é tempo!

D. MARIA – Sim, está uma moça, mas, Sr. Vasconcelos, não me preocupo com isto. Há certas mães que desejam ver-se logo livres de suas filhas, e que só tratam de casá-las; eu sou o contrário.

VASCONCELOS – Tem razão; também eu se não estivesse viúvo!... Mas isso de um homem não ter a sua dona de casa, é terrível! Anda tudo às avessas.

D. MARIA – Por isso não; Henriqueta é uma boa menina! Bem educada!...

VASCONCELOS – Sim; é uma moça do tom; porém não serve para aquilo que se chama uma dona de casa! Estas meninas de hoje aprendem muita coisa: francês, italiano, desenho e música, mas não sabem fazer um bom doce de ovos, um biscoito gostoso! Isto era bom para o nosso tempo, D. Maria!

D. MARIA – Eram outros tempos, Sr. Vasconcelos; os usos deviam ser diferentes. Hoje as moças são educadas para a sala; antigamente eram para o interior da casa!

VASCONCELOS – Que é o verdadeiro elemento. Confesso que hoje, que vou ficar só, se ainda encontrasse uma daquelas senhoras do meu tempo, mesmo viúva!...

D. MARIA – Vamos ouvir as meninas tocarem piano!... Cá deve estar mais fresco! (Durante as cenas seguintes ouve-se, por momentos, o piano.)

CENA III editar

PEDRO, JORGE

PEDRO – Hô!... Tábua mesmo na bochecha! Sinhá velha não brinca! Ora, senhor. Homem daquela idade, que não serve para mais nada, querendo casar. Para ter mulher que lhe tome pontos nas meias!

JORGE – Vou me divertir com ele.

PEDRO – Não; sinhá briga. Vá sentar-se lá junto de nhanhã Carlotinha, e ouça o que Sr. Azevedo está dizendo a ela.

JORGE – Para quê?

PEDRO – Para contar a Pedro depois.

JORGE – Eu, não.

PEDRO – Pois Pedro não leva nhonhô para passear na Rua do Ouvidor.

JORGE – Ora, eu já vi!

PEDRO – Mas agora é que está bonita! Tem homem de pau vestido de casaca, com barba no queixo, em pé na porta da loja, e moça rodando como corrupio na vidraça de cabeleireiro.

JORGE – Está bom! Eu vou!

CENA IV editar

PEDRO, VASCONCELOS, JORGE

VASCONCELOS – Não deixaria por aqui a minha caixa e o meu lenço?

PEDRO (a JORGE) – Um dia é capaz também de deixar o nariz!... Vintém é que não esquece nunca! Está grudado dentro do bolso!

JORGE – Lá no sofá, Sr. Vasconcelos!

VASCONCELOS – Ah! Cá está! Acabou-se-me o rapé! Chega aqui, Pedro!

PEDRO (a JORGE) – Já vem maçada! (Alto.) Sr. quer alguma coisa?

VASCONCELOS – Vai num pulo ali em casa, pede a Josefa que me encha esta caixa de rapé, e traze depressa.

PEDRO – Sim, senhor; Pedro vai correndo.

VASCONCELOS – Olha, não te esqueças de dizer-lhe que eu sei a altura em que deixei o pote. Às vezes gosta de tomar a sua pitada à minha custa.

PEDRO – Mas, Sr. Vasconcelos...

VASCONCELOS – O que é? (JORGE sai.)

PEDRO – Nhonhô dá uns cobres para comprar... uma jaqueta.

VASCONCELOS – Ora que luxo!... Uma jaqueta com este calor?

PEDRO – É para passear num domingo, dia de procissão!

VASCONCELOS – Pede a teu senhor!

PEDRO – Qual!... Ele não dá!

VASCONCELOS – Bom costume este! Vocês fazem pagar caro o chá que se toma nestas casas! Mas eu não concorro para semelhante abuso!

PEDRO – Ora! dez tostões; moedinha de prata! Chá no hotel custa mais caro!

VASCONCELOS – Sim; vai buscar o rapé e na volta falaremos. (Batem palmas.)

CENA V editar

EDUARDO, ALFREDO

ALFREDO – Boa-noite. Ah! Dr. Eduardo...

EDUARDO – Sente-se, Sr. Alfredo; preciso falar-lhe.

ALFREDO – Peço-lhe desculpa de me ter demorado; mas quando levaram o seu bilhete não estava em casa; há pouco é que recebi e imediatamente.

EDUARDO – Obrigado; o que vou dizer-lhe é para mim de grande interesse, e por isso espero que me ouça com atenção.

ALFREDO – Estou às suas ordens.

EDUARDO – Sr. Alfredo, minha irmã me pediu que lhe entregasse esta carta.

ALFREDO – A minha!...

EDUARDO – Sim. Quanto à resposta, é a mim que compete dá-la. É o direito de um irmão, não o contestará, decerto.

ALFREDO – Pode fazer o que entender. (Ergue-se.)

EDUARDO – Queira sentar-se, senhor, creio que falo a um homem de honra, que não deve envergonhar-se dos seus atos.

ALFREDO – Eu o escuto!

EDUARDO – Não pense que vou dirigir-lhe exprobrações. Todo o homem tem o direito de amar uma mulher; o amor é uni sentimento natural e espontâneo, por isso não estranho, ao contrário, estimo, que minha irmã inspirasse uma afeição a uma pessoa cujo caráter aprecio.

ALFREDO – Então não sei para que essa espécie de interrogatório!...

EDUARDO – Interrogatório? Ainda não lhe fiz uma só pergunta, e nem preciso fazer. Tenho unicamente um obséquio a pedir-lhe; e depois nos separaremos amigos ou simples conhecidos.

ALFREDO – Pode falar, Dr. Eduardo. Começo a compreendê-lo; e sinto ter a princípio interpretado mal as suas palavras.

EDUARDO – Ainda bem! Eu sabia que nos havíamos de entender; posso ser franco. Um homem que ama realmente uma moça, Sr. Alfredo, não deve expô-la ao ridículo e aos motejos dos indiferentes; não deve deixar que a sua afeição seja um tema para a malignidade dos vizinhos e dos curiosos.

ALFREDO – uma acusação imerecida. Não dei ainda motivos...

EDUARDO – Estou convencido disso, e é justamente para que não os dê e não siga o exemplo de tantos outros, que tomei a liberdade de escrever-lhe convidando-o a vir aqui esta noite. Quero apresentá-lo à minha família.

ALFREDO – Como? Apesar do que sabe? E do que se passou?

EDUARDO – Mesmo pelo que sei e pelo que se passou. Tenho a este respeito certas ideias, não sou desses homens que entendem que a reputação de uma mulher deve ir até o ponto de não ser amada. Mas é no seio de sua família, ao lado de seu irmão, sob o olhar protetor de sua mãe, que uma moça deve receber o amor puro e casto daquele que ela tiver escolhido.

ALFREDO – Assim, me permite...

EDUARDO – Não permito aquilo que é um direito de todos. Somente lhe lembrarei uma coisa, e para isso não e necessário invocar a amizade. Qualquer alma, ainda a mais indiferente, compreenderá o alcance do que vou dizer.

ALFREDO – Não sei o que quer lembrar-me, doutor; se é, porém, o respeito que me deve merecer sua irmã, é escusado.

EDUARDO – Não; não é isso, nesse ponto confio no seu caráter, e confio sobretudo em minha irmã. O que lhe peço é que, antes de aceitar o oferecimento que lhe fiz, reflita. Se a sua afeição é um capricho passageiro, não há necessidade de vir buscar, no seio da família, a flor modesta que se oculta na sombra e que perfuma com a sua pureza a velhice de uma mãe, e os íntimos gozos da vida doméstica. O senhor é um moço distinto; pode ser recebido em todos os salões. Aí achará os protestos de um amor rapidamente esquecido; aí no delírio da valsa, e no abandono do baile, pode embriagar-se de prazer. E quando um dia sentir-se saciado, suas palavras não terão deixado num coração virgem o germe de uma paixão, que aumentará com o desprezo e o indiferentismo. ALFREDO – A minha afeição, Dr. Eduardo, é seria e não se parece com esses amores de um dia! EDUARDO – Bem; é o que desejava ouvir-lhe. (Vai à porta da sala, e faz um aceno.)

CENA VI editar

Os mesmos, CARLOTINHA

EDUARDO – Vem, mana; quero apresentar-te um dos meus amigos.

ALFREDO – Agradeço!... (a EDUARDO, e a meia voz.)

CARLOTINHA – Mano!... Que quer dizer isto?

EDUARDO – Uma coisa muito simples! Desejo que vejas de perto o homem que te interessa; conhecerás se ele é digno de ti.

CARLOTINHA (com arrufo) – Não quero!... Não gosto dele!

EDUARDO – Dir-lhe-ás isto mesmo. Em todo o caso é um amigo de teu irmão! (a ALFREDO) Previno-lhe, Sr. Alfredo, que não usamos cerimônias!

ALFREDO Obrigado; quando se está entre amigos a intimidade é a mais respeitosa e a mais bela das etiquetas.

EDUARDO – Muito bem dito! (PEDRO atravessa a cena, entra na sala com a caixa de rapé, volta, e vem aparecer na porta do lado oposto.)

D. MARIA – Henriqueta te chama, Carlotinha!

CARLOTINHA – Sim, mamãe! (Sai.)

EDUARDO (a ALFREDO) – É minha mãe! (A D. MARIA) Um dos meus amigos, o Sr. Alfredo, que vem pela primeira vez a nossa casa e que, espero, continuará a frequentá-la.

ALFREDO – Terei nisto o maior prazer. Eu estimava já, sem conhecê-la, a sua família.

D. MARIA – Pois venha sempre que queira. Os amigos de Eduardo são aqui recebidos como filhos da casa!

ALFREDO – Não mereço tanto, e a sua bondade, minha senhora, honra-me em extremo.

EDUARDO – Vamos, estão aqui na sala algumas pessoas de nossa amizade, a quem desejo apresentá-lo.

ALFREDO – Com muito gosto.

D. MARIA – Eu já volto!

CENA VII editar

PEDRO, CARLOTINHA

CARLOTINHA – Pedro, traz copos d'água na sala.

PEDRO – Ho! Nhanhã!... Rato está dentro do queijo!

CARLOTINHA – Não te entendo!

PEDRO – Sr. Alfredo já sentado junto do piano, só alisando o bigodinho!

CARLOTINHA – Que tem isso?

PEDRO – Eh!... Casamento está fervendo! Pedro vai mandar lavar camisa de prega para o dia do banquete.

CARLOTINHA – Não andes dizendo estas coisas!

PEDRO – Ora não faz mal! E Sr. Azevedo? Nhanhã viu! Está caído também, só arrastando a asa!

CARLOTINHA – Pedro!

CENA VIII editar

D. MARIA, EDUARDO

D. MARIA – Onde vais?

EDUARDO – Vinha mesmo em sua procura, minha mãe.

D MARIA – Precisas falar-me?

EDUARDO – Quero dizer-lhe uma coisa que lhe interessa. Este moço, Alfredo...

D. MARIA – O teu amigo... que me apresentaste?

EDUARDO – Ama Carlotinha!

D. MARIA – Ah! E ela sabe?

EDUARDO – Sabe e talvez já o ame!

D. MARIA – Não é possível! Tua irmã!...

EDUARDO – Sim, minha mãe; ela o ama, sem compreender ainda o sentimento que começa a revelar-se.

D. MARIA – E esse moço abriu-se contigo e pediu-te a mão de tua irmã?

EDUARDO – Não, minha mãe; eu disse-lhe que sabia a afeição que tinha a Carlotinha, e por isso queria apresentá-lo à minha família. D. MARIA – E exigiste dele a promessa de casar-se com ela?

EDUARDO – Não; não exigi promessa alguma.

D. MARIA – Foi ele então que a fez espontaneamente?

EDUARDO – Não podia fazer, porque não tratamos de semelhante coisa.

D. MARIA – Mas, meu filho, não te entendo. Tu chamas para o interior da família um homem que faz a corte à tua irmã e nem sequer procuras saber as suas intenções!

EDUARDO – As intenções de um homem, ainda o mais honrado, minha mãe, pertencem ao futuro, que faz delas uma realidade ou uma mentira. Para que obrigar um moço honesto a mentir e faltar à sua palavra?...

D. MARIA – Assim, tu julgas que é inútil pedir ou receber uma promessa?

EDUARDO – Completamente inútil, quando a promessa não constitui uma verdadeira obrigação social e um direito legítimo.

D. MARIA – Não te percebo!

EDUARDO – É preciso conhecer o coração humano, minha mãe, para saber quanto as pequeninas circunstâncias influem sobre os grandes sentimentos. O amor, sobretudo, recebe a impressão de qualquer acidente, ainda o mais imperceptível. O coração que ama de longe, que concentra o seu amor por não poder exprimi-lo, que vive separado pela distância, irrita-se com os obstáculos, e procura vencê-los para aproximar-se. Nessa luta da paixão cega todos os meios são bons: o afeto puro muitas vezes degenera em desejo insensato e recorre a esses ardis de que um homem calmo se envergonharia; corrompe os nossos escravos, introduz a imoralidade no seio das famílias, devassa o interior da nossa casa, que deve ser sagrada como um templo, porque realmente é o templo da felicidade doméstica.

D. MARIA – Nisto tens razão, meu filho! É essa a causa de tantas desgraças que se dão na nossa sociedade e com pessoas bem respeitáveis; mas qual o meio de evitá-las?

EDUARDO – O meio?... É simples; é aquele que acabo de empregar e que V.M.ce estranhou. Tire ao amor os obstáculos que o irritam, a distância que o fascina, a contrariedade que o cega, e ele se tornará calmo e puro como a essência de que dimana. Não há necessidade de recorrer a meios ocultos, quando se pode ver e falar livremente; no meio de uma sala, no seio da intimidade, troca-se uma palavra de afeto, um sorriso, uma doce confidência; mas, acredite-me, minha mãe, não se fazem as promessas e concessões perigosas que só arranca o sentimento da impossibilidade.

D. MARIA – Mas supõe que esse homem, que parece ter na sociedade uma posição honesta, não é digno de tua irmã, e que, portanto, com este meio, proteges uma união desigual?

EDUARDO – Não tenho esse receio. Ninguém conhece melhor o homem que a ama, do que a própria mulher amada; mas para isso é preciso que o veja de perto, sem o falso brilho, sem as cores enganadoras que a imaginação empresta aos objetos desconhecidos e misteriosos. Numa carta apaixonada, numa entrevista alta noite, um desses nossos elegantes do Rio de Janeiro pode parecer-se com um herói de romance aos olhos de uma menina inexperiente; numa sala, conversando, são, quando muito, moços espirituosos ou frívolos. Não há heróis de casaca e luneta, minha mãe; nem cenas de drama sobre o eterno tema do calor que está fazendo.

D. MARIA (rindo) – Pensa bem, Eduardo!

EDUARDO – Continue a educar o espírito da sua filha como tem feito até agora; e fique certa que, se Alfredo tivesse uma alma pequena e um mau caráter, Carlotinha descobriria primeiro, com a segunda vista do amor, do que a senhora com toda a sua solicitude e eu com toda a minha experiência.

D. MARIA – Desculpa, Eduardo. Sou mulher, sou mãe, sei adorar meus filhos, viver para eles, mas não conheço o mundo como tu. Assustei-me vendo que um perigo ameaçava tua irmã; tuas palavras, porém, tranquilizaram-me completamente.

CENA IX editar

Os mesmos, CARLOTINHA, AZEVEDO

AZEVEDO – Pode-se fumar nesta sala?

EDUARDO – Por que não? Vou mandar-lhe dar charutos.

CARLOTINHA (baixo) – Por que nos deixou, mano? Henriqueta está tão triste!

EDUARDO – Tratava da tua felicidade.

D. MARIA – Acha a nossa casa muito insípida, não é verdade, Sr. Azevedo?

AZEVEDO – Ao contrário, minha senhora, muito agradável; aqui pode-se estar perfeitamente à son aise.

EDUARDO (a PEDRO, na porta) – Traz charutos.

CENA X editar

AZEVEDO, EDUARDO

AZEVEDO – Realmente, Henriqueta perde vista em uma sala; não tem aquele espírito que brilha, aquela graça que seduz, aquela altivez misturada de uma certa nonchalance, que distingue a mulher elegante.

EDUARDO (rindo-se) – Como! Já estás arrependido?

AZEVEDO – Não; não digo isto! É apenas uma comparação que acabo de fazer. Tua irmã Carlotinha é o contrário.

EDUARDO – Sabes a razão disto?

AZEVEDO – Não...

EDUARDO – É porque já vês Henriqueta com olhos de marido!

AZEVEDO – Talvez...

CENA XI editar

AZEVEDO, PEDRO

PEDRO – Charutos, Sr. Azevedo; havanas de primeira qualidade, da casa de Wallerstein!

AZEVEDO – Pelo que vejo já os experimentaste!

PEDRO – Pedro não fuma, não senhor; isto é bom para moço rico, que passeia de tarde, vendo as moças.

AZEVEDO – Então é preciso fumar para ver as moças?

PEDRO – Oh! Moça não gosta de rapaz que toma rapé, não, como esse velho Sr. Vasconcelos, que anda sempre pingando. Velho porco mesmo!...

AZEVEDO – Mas tem uma filha bonita!

PEDRO – Sinhá Henriqueta! Noiva de senhor!...

AZEVEDO – Tu já sabes?...

PEDRO – Ora, já está tudo cheio. Na Rua do Ouvidor não se fala de outra coisa.

AZEVEDO – Ah! Quem espalharia? Apenas participei a alguns amigos...

PEDRO – O velho foi logo dizer a todo o mundo. V.M.ce não sabe por quê?

AZEVEDO – Não; por quê?

PEDRO – Porque... Esse velho deve àquela gente toda da Rua do Ouvidor; filha dele gasta muito, credor não quer mais ouvir história e vai embrulhar o homem em papel selado. Então, para acomodar lojista, foi logo contar que estava para casar a filha com sujeito rico, que há de cair com os cobres!

AZEVEDO – Isso é verdade, moleque?

PEDRO – Caixeiro da loja me contou!

AZEVEDO – Mas é infame... Um tal procedimento!... Especular com a minha boa fé!

PEDRO – Sr. Azevedo, não faz ideia. Esse velho, hi!... Tem feito coisas...

AZEVEDO – Vem cá; dize-me o que sabes, e dou-te uma molhadura.

PEDRO – Pedro diz, sim senhor; mesmo que V.M.ce não dê nada. É um homem que ninguém pode aturar... Fala mal de todo o mundo. Caloteiro como ele só. Rapé que toma é de meia cara. Na venda ninguém lhe dá nem um vintém de manteiga. Quando passa na rua, caixeiro, moleque, tudo zomba dele.

AZEVEDO – Um sogro dessa qualidade!... É uma vergonha! Vejo-me obrigado a ir viver na Europa!... PEDRO – Pedro já vem!... (Vai à porta e volta.) Filha dele, sinhá Henriqueta... Mas Sr. Azevedo vai casar com ela!...

AZEVEDO – Que tem isso? Gosto de conhecer as pessoas com quem tenho de viver.

PEDRO – Pois então, Pedro fala; mas não diga a ninguém.

AZEVEDO – Podes ficar descansado!

PEDRO – Sr. Azevedo acha ela bonita?

AZEVEDO – Acho; por isso é que me caso.

PEDRO – Moça muda muito vista na sala!

AZEVEDO – Que queres dizer?

PEDRO – Modista faz milagre!

AZEVEDO – Então ela não é bem feita de corpo?

PEDRO – Corpo?... Não tem! Aquilo tudo que senhor vê é pano só! Vestido vem acolchoado da casa da Bragaldi; algodão aqui, algodão aqui, algodão aqui! Cinturinha faz suar rapariga dela; uma aperta de lá, outra aperta de cá...

AZEVEDO – Não acredito! Estás aí a pregar-me mentiras.

PEDRO – Mentira! Pedro viu com estes olhos. Um dia de baile ela foi tomar respiração, cordão quebrou; e rapariga, bum: lá estirada. Moça ficou desmaiada no sofá; preta deitando água-de-colônia na testa para voltar a si.

AZEVEDO – E tu viste isto?

PEDRO – Vi, sim senhor; Pedro tinha ido levar bouquet que nhanhã Carlotinha mandava. Mas depois viu outra coisa... Um!...

AZEVEDO – Que foi? dize; não me ocultes nada.

PEDRO – Água-de-colônia caiu no rosto e desmanchou reboque branco!...

AZEVEDO – Que diabo de história é esta! Reboque branco?

PEDRO – Ora, senhor não sabe; este pó que mulher deita na cara com pincel. Sinhá Henriqueta tem rosto pintadinho, como ovo de peru; para não aparecer, caia com pó de arroz e essa mistura que cabeleireiro vende.

AZEVEDO – Que mulher, meu Deus! Como um homem vive iludido neste mundo! Aquela candura...

PEDRO – Moça bonita é nhanhã Carlotinha! Essa sim! Não tem cá panos, nem pós! Pezinho de menina; cinturinha bem feitinha; não carece apertar! Sapatinho dela parece brinquedo de boneca. Cabelo muito; não precisa de crescente. Não é como a outra!

AZEVEDO – Então, D. Henriqueta tem o pé grande?

PEDRO (fazendo o gesto) – Isto só! Palmo e meio!. .. Às vezes nhanhã Carlotinha e as amigas zombam deveras! Mas não pergunte a ela, não'? Sinhá velha fica maçada.

AZEVEDO – Não; não me importo com isto; mas vem cá; dize-me, nhanhã Carlotinha não gosta de moço nenhum?

PEDRO – Qual! Zomba deles todos. Esse rapaz, Sr. Alfredo, anda se engraçando, mas perde seu tempo. Homem sério assim, como Sr. Azevedo, é que agrada a ela.

AZEVEDO – Então pensas que...

PEDRO – Pedro não pensa nada! Viu só quando se tomava chá, risozinho faceiro... segredinho baixo...

AZEVEDO (desvanecido) – Não quer dizer nada!... Moças!

CENA XII editar

Os mesmos e ALFREDO

ALFREDO (na porta da sala, a EDUARDO) – Não se incomode. Boa-noite!...

PEDRO (baixo) – Então, Sr. Alfredo!...

ALFREDO – Deixa-me.

PEDRO (baixo) – Está todo emproado!... Como não precisa mais...

AZEVEDO (dando fogo a ALFREDO) – Pedro, amanhã vai à minha casa; tenho uns livros para mandar a Eduardo.

PEDRO – Sim, senhor. A que horas?

AZEVEDO – Depois do almoço.

CENA XIII editar

ALFREDO, AZEVEDO

ALFREDO – É raro encontrá-lo agora, Sr. Azevedo. Já não aparece nos bailes, nos teatros.

AZEVEDO – Estou-me habituando à existência monótona da família.

ALFREDO – Monótona?

AZEVEDO – Sim. Um piano que toca, duas ou três moças que falam de modas; alguns velhos que dissertam sobre a carestia dos gêneros alimentícios e a diminuição do peso do pão, eis um verdadeiro tableau de família no Rio de Janeiro. Se fosse pintor faria um primeiro prix au Conservatoire des Arts.

ALFREDO – E havia de ser um belo quadro, estou certo; mais belo sem dúvida do que uma cena de salão.

AZEVEDO – Ora, meu caro, no salão tudo é vida; enquanto que aqui, se não fosse essa menina que realmente é espirituosa, D. Carlotinha, que faríamos, senão dormir e abrir a boca?

ALFREDO – É verdade; aqui dorme-se, porém sonha-se com a felicidade; no salão vive-se, mas a vida é uma bem triste realidade. Ao invés de um piano há uma rabeca, as moças não falam de modas, mas falam de bailes; os velhos não dissertam sobre a carestia, mas ocupam-se com a política. Que diz deste quadro, Sr. Azevedo, não acha que também vale a pena de ser desenhado por um hábil artista, para a nossa "Academia de Belas-Artes?"

AZEVEDO – A nossa "Academia de Belas-Artes?" Pois temos isto aqui no Rio?

ALFREDO – Ignorava?

AZEVEDO – Uma caricatura, naturalmente... Não há arte em nosso pais.

ALFREDO – A arte existe, Sr. Azevedo, o que não existe é o amor dela.

AZEVEDO – Sim, faltam os artistas.

ALFREDO – Faltam os homens que os compreendam; e sobram aqueles que só acreditam e estimam o que vem do estrangeiro.

AZEVEDO (com desdém) Já foi a Paris, Sr. Alfredo?

ALFREDO – Não, senhor; desejo, e ao mesmo tempo receio ir.

AZEVEDO – Por que razão?

ALFREDO – Porque tenho medo de, na volta, desprezar o meu país, ao invés de amar nele o que há de bom e procurar corrigir o que e mau.

AZEVEDO – Pois aconselho-lhe que vá quanto antes! Vamos ver estas senhoras!

ALFREDO – Passe bem.

CENA XIV editar

Os mesmos, CARLOTINHA, HENRIQUETA

CARLOTINHA (a HENRIQUETA) – Já tão cedo? Que horas são, Sr. Azevedo?

ALFREDO – Nove e meia.

AZEVEDO – Quase dez. Como passa rapidamente o tempo aqui! (Entra na sala.)

CARLOTINHA – Então! Demora-te mais algum tempo. Sim?

HENRIQUETA (baixo) – Para quê?... Ele nem me fala!

ALFREDO – Minhas senhoras! Boa-noite, D. Carlotinha.

CARLOTINHA – Adeus, Sr. Alfredo. Mamãe já lhe disse que a nossa casa está sempre aberta para receber os amigos.

ALFREDO Se eu não temesse abusar...

CARLOTINHA (estendendo-lhe a mão) – Até amanhã!

ALFREDO – Boa-noite! (Sai.)

CENA XV editar

CARLOTINHA, HENRIQUETA

CARLOTINHA – Olha, Henriqueta! Tu não tens razão! Eduardo te ama, ele já me disse. Se hoje não tem falado contigo, é porque teu pai... teu noivo... não sei a razão! Mas deixa-te dessas desconfianças.

HENRIQUETA – Entretanto, depois de dois meses, ele devia achar um momento para ao menos dizer-me uma palavra que me desse esperança; porque, Carlotinha, se esse casamento era uma desgraça para mim, agora, que tu dizes que ele me ama, tornou-se um martírio! Não sei o que faça... Quero confessar a meu pai!... E tenho medo!... Já deu sua palavra!...

CARLOTINHA – A tua felicidade vale mais do que todas as palavras do mundo.

HENRIQUETA – Tu não sabes!...

CARLOTINHA – Ah! Aqui está Eduardo!

CENA XVI editar

As mesmas, EDUARDO.

EDUARDO – Enfim, posso falar-lhe, D. Henriqueta?

CARLOTINHA – Ela já te acusava!

EDUARDO – A mim!

HENRIQUETA – Eu não; disse apenas...

CARLOTINHA – Disse apenas que tu ainda não tinhas achado um momento para dar-lhe uma palavra... de amor!

HENRIQUETA – De amizade! Foi o que eu disse.

EDUARDO – E tem razão; mas quando souber o motivo me desculpará.

HENRIQUETA – Ainda outro motivo!

EDUARDO – Sim; desta vez não é um engano, é um dever.

HENRIQUETA – Ah! uma promessa, talvez...

CARLOTINHA – Que lembrança!...

EDUARDO – Disse um dever; um dever bem grave, mas que tem um rostinho muito risonho; olhe. (Amimando a face de CARLOTINHA.)

HENRIQUETA – Carlotinha?

CARLOTINHA – Ah! Quer-se desculpar comigo! Pois vou-me embora!

HENRIQUETA (sorrindo) – Vem cá!

EDUARDO – Deixe; ficaremos sós.

CENA XVII editar

EDUARDO, HENRIQUETA

EDUARDO – Henriqueta, me perdoa?

HENRIQUETA – Perdoar-lhe!... Eu é que devia ter adivinhado!

EDUARDO – E eu não devia ter compreendido que entre duas almas que se estimam não é preciso um intermediário? O amor que passa pelos estranhos perde a sua pureza... Carlotinha já lhe disse o que aconteceu?...

HENRIQUETA – Sim; ela me contou tudo, mas pareceu-me que me tinha enganado. Duvidei...

EDUARDO – Como?... Duvidou de mim!...

HENRIQUETA – Durante toda esta noite, não é a primeira vez que nos falamos e, entretanto, devíamos ter tanto que dizer-nos... Um tão longo silêncio...

EDUARDO – Não lhe dei já a razão?... Antes do meu amor, a felicidade de minha irmã. É um pequeno segredo que ela lhe contará, se já não lhe contou. Precisava tranquilizar o meu espírito, porque não desejo misturar uma inquietação, um mau pensamento, às primeiras expansões do nosso amor!

HENRIQUETA – Ah! Carlotinha também ama! Ainda não me confiou seu segredo!... Ela ao menos tem um irmão que lê em sua alma; há de ser feliz!...

EDUARDO – E nós, não o seremos?

HENRIQUETA – Quem sabe!

EDUARDO – Este casamento é impossível!

HENRIQUETA – Por quê?

EDUARDO – Porque vou confessar tudo a seu pai, e ele não sacrificará sua filha a uma palavra dada.

HENRIQUETA – E se recusar?

EDUARDO – Então respeitaremos sua vontade.

HENRIQUETA – Sim, ele é pai, mas...

EDUARDO – Mas o amor é soberano; não é isso, Henriqueta?

HENRIQUETA – E não se... vende!

EDUARDO – Que dizes? Compreendo!

HENRIQUETA – Não, Eduardo, não compreenda, não procure compreender! Foi uma ideia louca que me passou pelo espírito; não sei nada!... Uma filha pode acusar seu pai?

EDUARDO – Não; mas pode confiar a um amigo uma queixa de outro amigo.

HENRIQUETA – Pois bem, eu lhe digo. Meu pai deve a esse homem, e julgou que não podia recusar-lhe a minha mão, apesar das minhas instâncias. Lutei um mês inteiro, Eduardo, mas lutei só; e uma mulher é sempre fraca, sobretudo quando se exige dela um sacrifício!

EDUARDO – Tem razão; se lutássemos juntos, talvez...

HENRIQUETA – Oh! Então eu defenderia a nossa felicidade; mas lutar para conservar apenas uma triste esperança!

CENA XVIII editar

Os mesmos, VASCONCELOS, AZEVEDO, D. MARIA

VASCONCELOS – Vamos, menina! É tarde.

HENRIQUETA – Sim, meu pai. (A meia voz.) Adeus, Eduardo! Até!...

EDUARDO – Até sempre, Henriqueta!

HENRIQUETA – Carlotinha, meu chapéu?

CARLOTINHA – Toma! Estás mais contentezinha?

HENRIQUETA – Maliciosa!... (Sobem.)

AZEVEDO – Meu sogro, dispensa-me acompanhá-lo? Um homem não deve andar agarrado à sua fiancée. É mauvais genre.

HENRIQUETA – Não se incomode. D. Maria, boa-noite! Doutor... (Sobem.)

EDUARDO – Uma palavra, Azevedo.

AZEVEDO – Às tuas ordena.

EDUARDO – Quanto te deve o Sr. Vasconcelos?

AZEVEDO – Uma bagatela! Dez contos de réis!

EDUARDO – Ah!

AZEVEDO – Por que perguntas?

EDUARDO – Porque desejava saber quanto custa uma mulher em primeira mão.

AZEVEDO (rindo). – Vraiment!