Descobrimento Prodigioso e suas Incalculaveis Consequências para o Futuro da Humanidade/Viagem ao redor do mundo

XII
VIAGEM AO REDOR DO MUNDO

Como se vê, era este artigo um amontoado de absurdos, cousas sensatas, logica, paradoxos, erros, verdades e contradicções. Na substancia e sem a ridicula negação de um facto que todo o mundo presenciara, podia passar, como todos os que sabiam da quella penosa e até dar o que reflectir á muita gente, e talvez alguem não lhe achasse tão desarrasoada a these. Mas o facto o desmentia tão brilhantemente que era totalmente absurdo ; e nem o Universel deuse ao trabalho de responder. O governo não se pronunciára nessa discussão, deixando desenvolver-se livremente, convencido de que quanto mais livre fosse, mais lhe approveitaria.

Na realidade estava perplexo.

Tinha por chefe um homem, que não se deslumbrava com a sua posição, porque a não ambicionára, sendo-lhe antes peso que de boa vontade deixaria para voltar á vida particular, que amava.

Mas ainda que liberal de coração considerava a posição de ministro a seu modo ; tinha-a por um deposito em que lhe não era permittido tecer ainda em proveito de idéas com que sympathisasse. Como simples cidadão, achava que podia reclamar com mais ou menos insistencia taes ou taes concessões. Como chefe do estado, suas idéas eram as mesmas e nada via de seductor no exercicio da autoridade. Mas de consciencia julgava que a responsabilidade mandava-lhe não ceder um passo. Imagine-se Washington depositario do poder do Grão-Turco que jurasse transmittir intacto aos seus successores : tal era elle. Liberal de coração e idéas, tratava a liberdade quasi como se fosse inimiga.

Ora, elle não tinha ainda certeza se a nova invenção teria utilidade para o governo.

Era evidente que, si se vulgarisasse antes de se terem tomado algumas precauções, o governo não seria só amesquinhado, senão supprimido.

Impedir o invento de apparecer, nem era cousa em que se pensasse. Primeiro, não tinham seguro o inventor ; tivessem-no embóra, que o não assassinariam para matar com elle o seu segredo. Por sua parte elle devia ter-se prevenido para o não levar com sigo ao tumulo, se porventura a morte viesse inesperada.

Só havia um caminho a seguir : comprar o segredo e monopolisa-lo.

Mas não era cousa facil de executar.

Dado que se viesse com o inventor nas condições da cessão, era myster que entrassem algumas pessoas no conhecimento do segredo. Pelo menos seria preciso ensinar o processo ao individuo que fosse nomeado commandante de cada barca. Embora se escolhessem os homens mais honrados e delles se exigisse o juramento mais solemnes, tamanho numero de confidentes faria divulgar-se em pouco tempo o segredo.


Não seria provavel que um outro inventor achasse por seu turno o que tinha achado este ?

Parecia inevitavel a vulgarisação, salvo abafando o descobrimento, o que era impossivel. Mas ella traria a ruina de qualquer organisação social e suppressão de toda e qualquer governo.

Haveria o recurso de decretar uma serie de leis capazes de impedir as terriveis consequencias que todo mundo tinha apontado? Não era facil. As leis seriam difficeis de applicar-se a homens que possuiam um semelhante meio de fuga.

E como livrar-se das invasões dos estrangeiros,podendo elles chegar inopinadamente dos paizes mais longinquos para conquistar a França ou pelo menos assolal-a e desapparecer ? Ver-se-hião obrigados a crear innumeraveis exercitos aereos para defender-se, ou fazer aos paizes estrangeiros o mesmo mal, que delle se recebia.

Tudo eram impossibilidades. Acabaram por onde deveram talvez começar. Resolveram-se entrar em ajuste com o navegante aereo e indagar das medidas, que provavelmente tinha que propôr para que se não tornasse o seu descobrimento uma calamidade, senão um bem para o mundo e a França em particular.

Só os detinha uma questão de etiqueta e dignidade do governo. Repugnava-lhes dar o primeiro passo e muito mais corresponderem-se com um desconhecido. Escreveram-dhe por via do escriptorio do Universel, que logo que se quizesse dar a conhecer ao governo, o qual aliás lhe promettia segredo, estavam promptos para receber as communicações que desejasse fazer.

Respondeu immediatamente por uma carta respeitosa até o excesso na forma, mas, na substancia e apesar de toda arte epistolar, altiva e quasi impertinente. Dizia que não era ainda chegada a occasião de se dar a conhecer; mas, pois que o governo parecia desejal-o, estava prompto, conservando-se incognito, a entrar em relações com elle ; que podia corresponder-se, ou por via do Universel ou por methodo analogo, pela chaminé do edificio que o governo houvesse por bem determinar; que achava que as autoridades tinham grande interesse em assentar e propôr-lhe as medidas que julgassem convenientes, que por sua parte promettia examinar detidamente, pois tinha o maior desejo de aproveitar ao bem publico o poder incalculavel que tinha nas mãos, e provar ao governo a consideração e respeito que lhe tinha.

Os papeis estavam invertidos : o desconhecido tomava a posição de protector, dando ao governo a de protegido. Não havia duvidar de que pretendia tratar como de senhor a senhor, e de superior a inferior. Felizmente a forma respeitosa, que dera à sua carta, permittia que sem sacrificar apparente de dignidade, se sujeitassem aos seus dictames parecendo o contrario. Resignaram-se ás circumstancias, domando todos os impetos do amor proprio. Escreveram-lhe que haviam por bem dar-lhe a escolha do modo de corresponderem-se que tinha sollicitado, e estavam promptos para examinar o pedido de indemnisação que formulasse para a communicação dos seus processos.

X. Nagaer apressou-se a responder que a questão de indemnisação não era das mais urgentes, pedindo que deixassem para mais tarde o exame della, e limitando-se a dar a esse respeito algumas indicações, a que poderiam tornar quando fosse opportuno ; que o seu invento, si quizesse desfructal-o, podia proporcionar-lhe lucros quasi illimitados ; que podia entreter um immenso e lucrativo commercio com as regiões inexploradas da Africa, o Oriente, as regiões auriferas e outras terras longinquas ; que podia tornar-se contrabandista e transportar viajantes e mercadorias; que os 65 milhões, depositados em poucos dias pelos pretendentes de logares na sua barca por occasião da viagem pela França, eram prova bastante do que podiam render viagens semelhantes ou aos paizes estrangeiros; que podia aproveitando por outra face o seu descobrimento, alugar a industria forças motrizes, estando em suas mãos ganhar milhões ás centenas ; que já tinha recebido, por intermedio da caixa do Universel, offerecimentos consideraveis ; que um forte capitalista lhe pedira que marcasse uma somma, chegando até a declarar-lhe que não promettia aceital-a fosse qual fosse, mas que a não despresaria, antes debateria, embora excedesse a 100 ou 150 milhões, que, se quizesse por si disfructal-o, seu invento representaria 800 ou 900 milhões, e talvez milhares, sendo certo que a Inglaterra, ou os Estados Unidos, o comprariam, quando quizesse, por 500 ou 600 milhões ; que não tinha nenhuma pressa de tirar lucros, que tinha seguros logo que os quizesse liquidar ; que o seu primeiro desejo era ennobrecer a França com o seu descobrimento, e se daria por tão gloriosa quão amplamente indemnisado com uma recompensa de sua patria reduzida ás modestas proporções de 150 ou 200 milhões, si lh'a quizessem conceder : não era pois isso o que o preoccupava, o que se tratava de discutir em primeiro logar eram as medidas para por em pratica o seu descobrimento ; e pedia ao governo que lhe manifestasse o resultado de seus estudos a tal respeito.

As quantias escriptas n'esssa carta causaram sorpresa á primeira vista ; mas a reflexão veio mostrar dentro em pouco que o navegante aereo não errava qualificando-as de modestas. Quanto ao mais, não podia o governo enunciar idéas, que não tinha, com respeito à solução d'esse problema insoluvel. Era-lhe duro confessal-o, e insistir com o inventor para obter inspirações que talvez não tivesse e de que em summa não tomára a iniciativa, como se esperava. Escreveu-se que a questão estava sendo estudada e lhe seria communicado o que se deliberasse. Decidiram-se realmente a debatel-a com esperança de descobrir afinal algum processo praticavel.

X. Nagaer respondeu que, como estivessem as cousas n'esse pé, ia partir para a sua grande viagem, que não duraria muito, e de volta reataria as relações. Indicava um elemento util para o estudo : que era possivel instruir os capitães na manobra da barca aerea, sem lhes revelar o segredo do processo de locomoção ; que era isso o que havia de praticar si o governo lhe não propuzesse medidas convenientes para dar realidade a seu descobrimento, e elle se resolvesse a usufruil-o.

Estava-se em fins de Maio. A partida para a viagem ao redor do mundo estava marcada para o 1º de Junho, anniversario da apresentação do inventor. Prevenidos com bastante antecedencia, apresentaram-se de todos os pontos do universo viajantes. Construiu-se uma barca semelhante á primeira, com armazens, salões, camarotes, commodos de toda a especie, e capacidade para quinhentos passageiros perfeitamente accomodados. Em materia de provisões, armas, instrumentos para as observações scientificas e precauções contra as intemperies, nada faltava. Devia a barca percorrer todas as capitaes da Europa, atravessar o oceano, penetrar em regiões inexploradas, mostrar-se ás tribus selvagens que sem duvida ficariam mais estupefactas ao vêl-a do que o ficaram os indios quando là aportaram os primeiros navios europeus.

Preparou-se um festejo publico para o dia da partida. O pateo de honra do palacio dos Invalidos foi posto á disposição do navegante aereo para o embarque. Ao meio dia subiu a barca empavesada, entre o estrugir da musica, as acclamações dos passageiros respondidas pelo povo, e as salvas da sua artilheria a responder aos canhões dos Invalidos. Atravessou a Esplanada, subiu o curso do Sena até à ponte de Austerterlitz à igual distancia dos dous caes e foi subindo á porporção que tomava para o Oriente, sendo por muito tempo ainda avistado como um ponto negro, até que desappareceu.


...Entre as cartas que o correio põe a um canto por não ter achado os destinarios, encontrou-se um dia uma com endereço ao redactor principal do Universel, folha que não existia. Essa carta, cuja assignatura calamos por discripção, continha o seguinte :

« Só o senhor redactor é capaz de destruir a trama horrivel de que sou victima. A prova de que não estou doudo é que comprehendo perfeitamente que as companhias de estradas de ferro querem me fazer passar por tal. Vejo-me aqui cercado de infelizes que perderia a razão, cujo estado conheço muito bem e causa-me dó.

« Venha ver-me, porem evite o mais possivel encontrar-se com algum empregado das estradas de ferro. Obrigaram-se todos por juramentos terriveis, a não recuar diante de cousa alguma para abafar o meu invento. Para mandar esta carta ao correio foi-me preciso dar muito dinheiro a um homem. Dei-lhe as instrucções necessarias para que não a deixem interceptarem os inimigos conjurados contra mim, e descrevi-lhe os signaes por que deve reconhecer os empregados das estradas de ferro, monstros horriveis que se disfarçam de todas as maneiras para me espiar. Descobri que um medico que me veiu visitar durante alguns dias sob o pretexto de que o medico do estabelecimento estava doente, era um guarda-chave.

« Só posso attribuir a algum narcotico propinado por mãos perfidas o somno irresistivel que me tomou quando estavamos á vista de Vienna. Deve ter sido bem profundo esse somno, pois que me transportaram para a cama, onde ao acordar fiquei espantado de me achar. As companhias de estradas de ferro envolveram de certo os que me cercavam na sua conjuração, e estes se valeram da minha insistencia em perguntar pela minha barca para me trazerem para aqui a pretexto de a encontrar. Dentro em pouco, porem, tiraram a mascara, attrevendo-se a affirmar que os negopos, a barca aerea a sua folha e os prodigios que o mundo contemplou nunca existiram senão na minha imaginação. Mas com o seu auxilio hei de desarmar esta trama ; e, pois que o governo commetteu a abaixeza de entrar nella, não guardarei mais nenhuma attenção para com elle. Ha de saber que o homem que tem em suas mãos futuro do universo, tambem tem o poder de castigar ; e o Sr. redactor tambem ficarà sabendo que elle tem o poder de recompensar, porque, será o primeiro e por muito tempo o unico a quem revelarei o segredo do meu PRODIGIOSO DESCOBRIMENTO.



FIM