IRACEMA (romance de José de Alencar: o mito indígena da virgem dos lábios de mel) → Romantismo
Iracema é a personagem-título do romance mais famoso de José Alencar, em que encontramos a confluência de dois gêneros literários: o lírico e o épico, além do regionalista e indianista. O estilo lírico é evidenciado pela "prosa poética", repleta de elementos sonoros, provenientes da segmentação das frases e da repetição de sintagmas, de imagens sugestivas, de metáforas delicadas, de comparações entre elementos do mundo vegetal, animal e humano, e de outros recursos retóricos próprios da poesia lírica. Além do aspecto formal, o lírico se depreende da exaltação da flora e da fauna da terra brasileira e do idealismo sentimental com que são retratadas as personagens principais, especialmente a indígena Iracema. O aspecto épico do romance se relaciona com o assunto: o narrador anuncia que está relatando "uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci". Esta história é a lenda de Iracema, "a virgem dos lábios de mel". Tal lenda se formou no seio do povo nordestino, a partir de um fato histórico: a luta pela colonização do Ceará e de outras regiões do nordeste brasileiro, no início do século XVII. O jovem português Martim Soares Moreno participou da expedição do nobre paraibano Pero Coelho, que visava colonizar a região à foz do rio Jaguaribe, primeiro núcleo do futuro Ceará ("canto da jandaia"). Os indígenas Potiguaras ("comedores de camarão"), que habitavam o litoral nordestino, estabeleceram relações de amizade com os portugueses para defender-se de inimigos comuns, quer de raça indígena, os Tabajaras ("senhores das aldeias") que habitavam no interior do Ceará e os Tupinambás ("parentes dos Tupis") que, após uma luta inglória contra os portugueses da Bahia, se aliaram aos franceses do Maranhão; quer de raça branca: os invasores franceses e holandeses. Nesta luta pela colonização do nordeste brasileiro, a história registra o valor guerreiro de Martim Soares Moreno, mestre-de-campo do exército português, e do índio Poti, batizado com o nome de Antônio Felipe "Camarão", irmão do chefe potiguara Jacaúna, que ajudou os portugueses a expulsar os holandeses. Ao redor deste núcleo histórico, o povo nordestino criou a lenda do português Martim, que se apaixona pela índia Iracema e cultiva um forte sentimento de amizade pelo indígena Poti. Com um distanciamento de dois séculos e meio (1615, época aproximada do episódio histórico, e 1865, data da primeira publicação de Iracema), José de Alencar explora artisticamente os fatos histórico-lendários e cria um romance curto, meio poema épico e meio poema lírico. A fábula romanesca inicia quando a bela tabajara Iracema, filha de Araquém, o grande chefe da tribo, encontra na floresta cearense Martim, moço de raça branca que perdera de vista o companheiro Poti, índio potiguara, durante uma caçada. Ela o leva até a cabana do Pajé, seu pai, conhecedor dos segredos do deus Tupã. Bem recebido, Martim se apaixona pela linda Iracema, mas ela lhe revela que não poderá amá-lo, porque consagrou sua virgindade ao deus, sendo guardiã do segredo da jurema e do mistério do sono. A "jurema" era um licor preparado com o suco da fruta da árvore homônima, que tinha um poder narcótico, pois excitava a fantasia e proporcionava alucinações agradáveis, vivificando os sonhos e tornando realidade os desejos. Considerada uma bebida divina, a par do néctar dos deuses da mitologia grega, sua fabricação era um segredo só conhecido pelo Pajé e por sua filha devotada ao culto de Tupã. Irapuã ("Mel-Redondo"), o maior guerreiro tabajara, exorta os de sua tribo a lutarem contra os índios potiguaras, que habitam o litoral cearense e travam amizade com os "guerreiros do fogo", os estrangeiros de outra raça e de outra religião. A vida de Martim, que é de raça branca e amigo da tribo rival, está em perigo. Iracema sugere que Martim espere seu irmão Caubi chegar da caça para que seja acompanhado em sua viagem de volta à tribo dos potiguaras. Leva-o até o bosque sagrado de Tupã e lhe dá de beber a jurema, beberagem que lhe faz rever em sonho sua pátria natal, seus familiares e sua namorada de infância. O guerreiro índio Irapuã, percebendo o amor que está crescendo entre Iracema e Martim, tomado pelo ciúme e pelo ódio, ameaça chupar o sangue do jovem branco. Iracema e seu irmão Caubi acompanham Martim em sua viagem de volta. Durante o caminho, Irapuã e mais de cem índios os atacam e exigem a entrega do moço branco. O casal de indígenas defende Martim e o leva de volta à cabana do Pajé. Entretanto, o índio potiguara Poti vem ao encontro de seu amigo branco, perdido na floresta dos Tabajaras, mas não ousa aproximar-se da cabana de Araquém. De noite, Iracema embebeda o jovem branco com o vinho de Tupã, a jurema, e com ele tem relação sexual, sem que Martim o perceba. Durante uma festa em honra de Tupã, Iracema prepara muito licor de jurema para os guerreiros tabajaras. Aproveitando do sono profundo destes, ela leva Martim até o lugar onde se esconde o amigo Poti. Aí revela a Martim que é sua esposa e que não pode mais abandoná-lo, tendo traído o voto de virgindade feito a Tupã. Dias felizes de amor, durante a viagem rumo à praia cearense. Na cabana à beira-mar, na terra dos potiguaras, Martim sonha com a chegada de um barco que o possa levar de volta ao seu país natal, Portugal. Iracema, grávida, se aflige com a tristeza de Martim, que, apesar de ter assimilado língua e costumes indígenas, assumindo até o nome de Coiatabo ("guerreiro pintado"), ainda sente saudade de sua terra e de seus familiares. O herói lusitano, preferindo a companhia de Poti para a guerra e para a caça, afasta-se cada vez mais de sua cabana. Iracema, apenas na companhia de um cão fiel, dá à luz Moacir ("o nascido do sofrimento"). Acabando o leite, ela oferece o seio a cachorrinhos para estimular sua produção e alimentar Moacir. Cada vez mais fraca, está em ponto de morte, quando chegam Martim e Poti. O jovem português sente a alegria da paternidade misturada à dor da viuvez. Enterrada a jovem esposa à sombra de um coqueiro, Martim leva num frágil barco o filho e o cão fiel.
O romance Iracema é o mais acabado exemplo de literatura "indianista", escrito nos alvores do movimento nacionalista. A idealização do elemento indígena é, sem dúvida, o marco mais peculiar do romantismo brasileiro. O índio como tema literário já fora explorado na época do Arcadismo. Mas, enquanto a poesia épica de Santa Rita Durão (Caramuru) e de Basílio da Gama (Uraguai) considerou o indígena ou como ser de raça inferior, antropófago ou como simples elemento da natureza, inculto, a literatura romântica promove a exaltação do aborígine brasileiro, em contraste com o egoísmo estrangeirista dos portugueses, insinuando que a raça indígena é cultural e humanamente superior à raça branca dominadora. Com efeito, no romance Iracema (como também nas duas outras ficções indianistas de Alencar, O Guarani e Ubirajara), o personagem-título possui uma personalidade bem mais marcante do que a do protagonista branco. É Iracema que seduz Martim, mesmo sabendo que o amor lhe causará a morte. A paixão amorosa da jovem índia, bem ao estilo romântico, é mais forte do que seu voto religioso e seu afeto à família e à tribo. Ela nunca se arrepende da escolha feita e seu amor em momento algum vacila, enquanto o fraco Martim se deixa levar pela nostalgia da terra distante. É Martim que se acultura, aprendendo a língua e os costumes indígenas, e não vice-versa, como acontece no Caramuru, onde a índia Paraguaçu adota o nome cristão de Catarina e vai casar-se "legalmente" com Diogo na corte do rei da França. Enfim, no romance de Alencar, é a cultura primitiva dos aborígines que predomina sobre a civilização européia. Não é sem motivo, portanto, que a elaboração artística e idealizada da lenda de Iracema se tornou a melhor expressão literária do indianismo brasileiro e um marco importante do nosso nacionalismo poético. Iracema pode ser considerada a personagem símbolo da terra mãe que, pelos seus encantos, seduz o estrangeiro que vem ao Brasil e o induz a aqui ficar. Neste sentido, o capítulo final do romance é bem expressivo: Martim, que, tomado pela saudade de sua terra de origem, voltara para Portugal, não resiste ao chamamento da terra de Iracema e, após quatro anos de ausência, retorna definitivamente ao Ceará e, ao redor do túmulo da índia, dá início à civilização brasileira, fruto do acasalamento da raça portuguesa com a raça indígena evangelizada.