O teatro representa uma sala, regularmente mobiliada, em casa de Luís de Paiva. É noite.
CENA I
editarLUÍS, só.
LUÍS (Acalentando ao colo uma criança e cantando.)
Menino bonito
Não dorme na cama,
Dorme no regaço
Da Senhora Santa Ana.
Senhora Santa Ana,
Ninai este menino,
Que as noites são grandes
E ele é pequenino.
(Gritando para dentro.) - Felicidade? ó Felisberta? Não há ninguém nesta casa? Felisberta?
CENA II
editarO MESMO e FELISBERTA
FELISBERTA - O que quer, nhonhô?
LUÍS - Onde está a ama?
FELISBERTA - A ama está apertando o colete de sinhá velha.
LUÍS - E a Felicidade?
FELISBERTA - Felicidade saiu: foi comprar uma peça de fita no armarinho.
LUÍS - E o que faz você lá dentro?
FELISBERTA - Estou vestindo sinhazinha.
LUÍS - Pois não há quem venha carregar o menino?
FELISBERTA - Eu não sei. Isto é lá com sinhazinha. Está braba que vosmecê não faz idéia! Já deu dois cachações em tia Maria Porque não pôs goma bastante nas saias e prometeu-me uma grande sova porque fiz a cintura do vestido muito larga; no entretanto, vosmecê não imagina como está o corpinho do tal vestido. Estou há um quarto de hora a querer abotoá-lo: quem diz?! Olhe os meus dedos... (Mostrando os dedos.)
LUÍS - Está bom: tome o menino. (Entrega a criança a Felisberta.) Leve-o para o berço.
CENA III
editarLUÍS, FELISBERTA e INACINHA
INACINHA (De dentro.) - Felisberta?
FELISBERTA - Lá está ela me chamando.
INACINHA (De dentro.) - Ó diabo?
FELISBERTA (Gritando.) - Lá vou, sim, senhora.
INACINHA (Entrando com o corpinho do vestido desabotoado.) - Ó ladra de uma figa; pois tu me deixas com o vestido desabotoado e vens te pôr de palestra aqui na sala?!
LUÍS - Ela estava segurando no menino, senhora; no nosso filho.
INACINHA - E o senhor por que não o carrega?
LUÍS - Parece-me que não faço outra coisa nesta casa, desde que ele nasceu!
INACINHA - Não faz mais que a sua obrigação.
LUÍS - Se a senhora e sua mãe cumprissem com as suas obrigações, não dariam constantemente nesta casa os escândalos de que a vizinhança tem sido testemunha.
INACINHA - Quando falar em minha mãe, limpe a boca, ouviu? O senhor há de nascer e tornar a nascer para chegar-lhe aos calcanhares.
LUÍS (Baixo.) - Repare que estamos adiante de uma escrava.
INACINHA - Diga já quais são os escândalos que praticamos?
LUÍS - Em primeiro lugar saírem as senhoras todos os dias e andarem por toda a parte sem seus maridos.
INACINHA - Antes de nos casarmos, o senhor dizia que isto era moda cá na Corte.
LUÍS - Segundo: deixarem a casa ao Deus dará e fazerem por dá cá aquela palha uma gritaria diabólica que já serviu de tema a uma publicação a pedido nas folhas públicas.
INACINHA - Terceiro: não tenho que lhe dar satisfações dos meus atos; hei de sair quantas vezes quiser e gritar até arrebentar. Fique sabendo, uma vez por todas, que eu aqui sou senhora do meu nariz.
LUÍS (A Felisberta, que passeia durante esta cena ninando o menino.) - Dá cá o menino. É o único consolo que me resta no meio do martírio em que vivo. (Sai.)
CENA IV
editarFELISBERTA e INACINHA
INACINHA - Abotoa isto, anda, diabo. (Felisberta tenta abotoar o vestido e não pode.) Ó desajeitada!
FELISBERTA - Está muito apertado, sinhazinha.
INACINHA - Mulata, não me exasperes; olha que daqui mesmo te desando...
FELISBERTA - Sinhazinha está estufando a barriga...
INACINHA (Frenética; examinando os colchetes.) - Ora dá-se, pois esta ladra não está abotoando os colchetes desencontrados!
FELISBERTA - Não se zangue; já está quase abotoado.
INACINHA - Não me futiques o vestido.
CENA V
editarINACINHA, FELISBERTA e LEONARDA
LEONARDA (Vestida para sair.) - Ainda não estás pronta, menina?
INACINHA - Já vou, mamãe. (A Felisberta que acaba de abotoar o vestido.) Ora, graças a Deus!
LEONARDA - Anda; vai pôr o chapéu, o carro já está aí. Impliquei com este vestido, não sei o que acho nele.
INACINHA - Tem uma cauda muito pequena.
LEONARDA - E eu que tanto recomendei à francesa que o queria bem à moda. Passo-lhe uma descalçadeira a primeira vez que lá for. Não achas este penteado muito baixo?
INACINHA - Não, está bom. (Sai.)
LEONARDA (Para Felisberta.) - Endireita-me as fitas deste chapéu. (Felisberta endireita.) Veja lá se me vai para a janela, assim que eu sair. Diga a seu amo, quando ele vier, que tome conta da casa. (Gritando para dentro.) Ó menina? (Empurrando Felisberta e endireitando as fitas do chapéu.) Sai, sai, vai dizer à sinhazinha que são horas.
FELISBERTA (Á parte.) - Irra! (Benzendo-se.) Padre, Filho e Espírito Santo. (Sai.)
CENA VI
editarMIGUEL e LEONARDA
MIGUEL (Entrando pelo fundo.) - Ainda se lembram do velho amigo?
LEONARDA (Com alegria.) - Ó comendador!! Quando chegou?
MIGUEL - Ontem, no paquete inglês. E a primeira casa que visito, ao chegar aos pátrios lares. Onde está o Senhor Fortunato? E o Luís?
LEONARDA - Meu genro está lá dentro com o menino.
MIGUEL - Olé! Já há um nenê em casa?! Imagino a alegria que por aqui vai.
CENA VII
editarOS MESMOS e INACINHA
INACINHA - Oh! Senhor Comendador, já de volta!
MIGUEL - É verdade, minha senhora. No meio dos ruídos e prazeres do velho mundo ralava-me a saudade da pátria. Depois de alguns meses veio-me a saciedade e sentia-me asfixiado sob aquela atmosfera.
INACINHA - Os que lá vão não dizem isto.
MIGUEL - Os pedantes, minha senhora, aqueles que trazem apenas daquele foco de civilização um bigode torcido, calça colada ao joelho, colarinho de papelão e a gíria que aprenderam nos cafés e restaurantes.
INACINHA - Eu suspiro por ir à Europa.
LEONARDA - Qual é a última moda de vestidos, Senhor Comendador?
MIGUEL - O que a imaginação ostenta de mais extravagante: fofos na cabeça, fofos no corpo, fofos nos pés... tudo fofo, minha senhora. O fofo é o característico da sociedade atual.
CENA VIII
editarFORTUNATO, LEONARDA, INACINHA e MIGUEL
FORTUNATO (Entrando com um embrulho debaixo do braço) - Aqui está, menina. (Entrega-o à Leonarda.)
MIGUEL - Venha lá um abraço.
FORTUNATO - Como está moço e bonito!
LEONARDA (Depois de ter aberto o embrulho.) - O senhor nunca entende o que se lhe diz. Eu pedi-lhe botinas de salto alto e o senhor traz-me isto!
FORTUNATO - Foram as melhores que achei.
LEONARDA - Este homem é capaz de fazer perder a paciência a um santo. E dizem, depois, que eu tenho mau gênio! A minha vontade era... (Atira com as botinas ao chão.)
FORTUNATO (Apanhando-as.) - Está bom, senhora; isto não vai a matar.
INACINHA - Vamos, mamãe.
LEONARDA - O Senhor Comendador há de dar-nos licença.
MIGUEL - Pois não, minha senhora.
LEONARDA - Vamos fazer uma visita de parabéns e já voltamos.
INACINHA - Até já. (Sai juntamente com Leonarda.)
CENA IX
editarMIGUEL e FORTUNATO
FORTUNATO - Ora veja o senhor como elas se armam. Esta mulher encomendou-me umas botinas: eu saio de casa, por sinal que algum tanto incomodado, porque há alguns dias que sinto umas picadas no braço... não sei que diabo seja isto. Está me querendo parecer que é reumatismo. Encontro-me com o Pereira, que é homem que entende de modas porque a mulher traja debaixo de todo o rigor... Também não sei onde é que ele vai buscar dinheiro para sustentar aquele luxo! Eu, que não sou lá dos menos apatacados, não posso fazer destes milagres; mas enfim cada um vive como entende e não tem que dar satisfações a ninguém. O Pereira indica-me a casa de um Guilherme, na rua da Quitanda e que é o sapateiro da gente... Ora espere; deixe-me ver qual foi a palavra que ele empregou.
MIGUEL - Vamos adiante; isto não vem ao caso.
FORTUNATO - Ah!... Da gente chique. Era a mesma casa que minha mulher me havia indicado. Leonarda, depois que se mudou para a corte...
MIGUEL - Ah! o senhor está morando aqui?
FORTUNATO - Moramos todos juntos. Voltando ao que lhe ia dizendo...
CENA X
editarOS MESMOS e LUÍS
MIGUEL (Para Luís.) - Nos meus braços.
LUÍS - Ah! comendador, que alegria! Sabe que estou muito zangado com o senhor?
MIGUEL - Não creio.
LUÍS - Pois é verdade. Durante todo o tempo em que esteve na Europa, esqueceu-se completamente da minha pessoa. Nem uma linha sequer ao pobre diabo que cá ficava.
MIGUEL - Dou-te os meus parabéns; já sei que és pai.
LUÍS - E verdade.
MIGUEL - Aposto que é uma menina viva e travessa, faces rubicundas, duas safiras à flor do rosto, um anjinho das criações desses gênios, cujas telas acabo de admirar nos museus do velho mundo?
LUÍS - É um rapaz.
MIGUEL - Ainda bem; um rapagão! Como és feliz!
LUÍS - Feliz? (Pensativo.)
FORTUNATO - Vou mudar esta roupa, estou alagado em suor. Se soubesse como implico com o calor... O defunto meu pai dizia-me muitas vezes... O senhor conheceu meu pai; era um homem alto, forte, tinha muita força de sangue...
MIGUEL - Vá mudar a roupa; não faça cerimônia comigo.
FORTUNATO - Então... (Sai.)
CENA XI
editarMIGUEL e LUÍS
MIGUEL - Que ar pensativo é este, Luís? O que tens?
LUÍS - Nada.
MIGUEL - Uniste-te a uma menina que era o teu ideal, a tua alma, como me disseste há um ano e tanto; lembras-te?
LUÍS (Suspirando.) - Lembro-me.
MIGUEL - A Providência deu-te um filho, cercam-te todos os gozos, estás ainda moço e tua mulher conta apenas vinte e três primaveras. O que mais desejas? Eu que nasci com a predestinação do celibatário, não duvidaria por tal preço arriscar a minha liberdade.
LUÍS - Comendador, o senhor foi um profeta.
MIGUEL - Deveras?
LUÍS - Não pode imaginar os tormentos por que tenho passado. Inacinha é a fotografia viva de minha sogra e eu tomei-me o daguerreótipo fiel de meu sogro. Nesta casa, eu e ele representamos o papel de zeros, à esquerda da unidade.
MIGUEL - Pobre Luís.
LUÍS - Há uma diferença, porém, entre nós; o Senhor Fortunato entende que isto não vai a matar e eu sinto que se aproximam os limites da paciência, com os dissabores que crescem de dia em dia.
MIGUEL - Pois aquela criatura, que era um anjo...
LUÍS - Não zombe da minha posição, comendador. Inacinha seria ainda hoje talvez um anjo, se minha sogra não tivesse a maldita idéia de vender as suas fazendas logo depois do nosso casamento e mudar-se de uma vez para a Corte. A nossa lua-de-mel durou apenas dois meses. A discórdia entrou-nos em casa com aquela maldita mulher que introduziu aqui a desordem desde a cozinha até a sala de visitas. O vergalho vive lá dentro em contínuo exercício e perdi de todo a moralidade perante os meus escravos, testemunhas quotidianas das cenas vergonhosas de que sou vítima.
MIGUEL - Cenas vergonhosas?! Dar-se-á acaso que... Pontos de honra talvez?!
LUÍS - Oh! não! Por esse lado, em tão boa hora o diga, levei ao altar uma esposa modelo. Inacinha tem em seu seio gérmens de grandes virtudes, mas sobeja-lhe em índole o que falta-lhe em educação. Longe dos exemplos de sua mãe, sua alma ia se amoldando à minha e o futuro parecia sorrir-nos nesses dias felizes que passávamos um ao lado do outro, conchegados no regaço do mais puro amor.
MIGUEL - Esse regaço do puro amor não era mais que o resultado efêmero da lua-de-mel. Quer tua sogra batesse-te às portas, quer não, a mimosa diva de Irajá devia apresentar-se mais tarde tal qual era. As lições e exemplos que bebemos no seio da família jamais se desapegam do nosso espírito e a família, meu caro Luís, resume-se nessa mulher que nos dá o ser, que acalenta-nos em seu seio, que nos ensina a balbuciar as primeiras palavras e que aponta-nos o caminho do céu nas primeiras orações que ouvimos de seus lábios. O que esperavas dos exemplos de tua sogra? Estudaste-a, porventura, antes de dar tão arriscado passo? Deixaste-te fascinar pela beleza, que talvez já não admiras e só agora te lembras da educação, que deveria ser a base da felicidade que procuravas.
LUÍS - Eu a regeneraria com os meus exemplos e este lar seria um paraíso.
MIGUEL - Criança! Não se destrói em tão pouco tempo a obra de anos. Rolarias a pedra, como o Sísifo da fábula, sem nunca atingir a meta de teus esforços.
LUÍS - O que fazer então, comendador? Eu não posso por mais tempo conservar-me nessa posição humilhante. Revejo-me a cada passo no Senhor Fortunato e compreendo o papel ridículo que estou representando. Minha mulher, como geralmente se diz, pôs-me o pé no cachaço. Infelizmente, por amor da sociedade em que vivo, não posso recorrer a meios rigorosos para manter a minha atitude de marido.
MIGUEL - Por amor unicamente da sociedade em que vives?! Não há consideração alguma, qualquer que ela seja, Luís, que obrigue o homem a lançar mão de tais meios para com aquela a quem estendeu a destra. Há muitas maneiras de evitar o mal sem quebra da dignidade própria.
LUÍS - O comendador teoriza; eu quisera vê-lo nas minhas circunstâncias.
MIGUEL - Ora dize cá: tu estás rico...
LUÍS - Infelizmente.
MIGUEL - Infelizmente?! Homem, essa é boa!
LUÍS - A minha riqueza é uma ignomínia. Sabe que quando me casei era pobre e minha mulher leva constantemente a lançar-me em rosto o dinheiro que trouxe.
MIGUEL - Não te incomodes por isso. Olha: arranja um emprego para a província, a mais longínqua possível, e lá, distante de tua sogra, vê se consegues continuar essa obra de regeneração que ela veio interromper. Quanto a mim, duvido, mas enfim é bom tentar.
LUÍS - O senhor não conhece minha mulher e muito menos minha sogra. Convencer Inacinha a abandonar hoje a Corte é um impossível tão grande, como fazer um peixe respirar fora dágua. As modas, os passeios, os teatros têm-lhe transtornado de tal arte a cabeça que ela já se esqueceu até de que é mãe e, enquanto corre atrás de quimeras, como uma verdadeira leoa, fica o inocente fruto de suas entranhas confiado aos caprichos de uma ama mercenária. A Senhora Leonarda começa também agora a pagar este tributo e anima a filha em todos os desvarios, dizendo-lhe constantemente "que a Corte é o paraíso dos que têm dinheiro". Inacinha suspirava pela vida da cidade e o seu casamento comigo não foi mais que um meio para realizar tão almejado fim.
MIGUEL - Então, meu amigo, coração à larga e resignação. Onde está o teu filhinho?
LUÍS (Indicando urna das portas da direita.) - Entre, comendador.
MIGUEL - Imagino que há-de ser um rapagão sacudido e desempenado. (Saem os dois pela direita.)
CENA XII
editarFELISBERTA e depois SANTA RITA
FELISBERTA (Saindo de uma das portas da esquerda e examinando a sala.) - Como está esta sala! Há três dias que não vê vassoura. Também se hão-de tomar conta da casa, andam por aí a correr coxia! Lá se avenham; sua alma, sua palma. (Arruma os trastes.)
SANTA RITA (Aparecendo na porta do fundo.) - Scio? scio?
FELISBERTA (Assustando-se.) - Quem é?
SANTA RITA - Sou eu, o Gostoso, a velha não está aí?
FELISBERTA - Arre lá, que susto que você me fez.
SANTA RITA (Entrando.) - Minha Felisbertazinha!
FELISBERTA - Vá-se embora, sinhá não tarda. Ela já correu com você daqui. Se ela lhe apanha, Santa Rita!
SANTA RITA - Que me importa? Estou disposto a tudo; não duvido até arriscar o lombo, que é o que tenho de mais caro, para estar dois minutos junto de você. O tal seu Luís é uma boa bisca; prometeu-nos arranjar o casamento e no entretanto nem sequer soube dizer à velha, no dia em que ela pôs-me fora de casa: - Deixe este pobre diabo, ele não faz mal a ninguém. Que sarilho feio houve naquele dia, hein, Felisberta?!
FELISBERTA - É porque você não sabe o que tem havido depois. Sinhá tem-se tornado uma jararaca e sinhazinha está pior do que uma víbora. Olha, Santa Rita, quando esta gente menos pensar, fujo de casa.
SANTA RITA - Apoiado; é o que você deve fazer quanto antes. Vamos para a Bahia e lá passaremos felizes o resto da vida, comendo o louro vatapá e a apimentada moqueca debaixo dos dendezeiros. Iremos juntos à festa do Bonfim e então você verá o Santa Rita Gostoso dos Anjos pondo poeira em tudo e metendo inveja a toda aquela gente.
FELISBERTA - É muito bonita a festa do Bonfim?
SANTA RITA - Você não faz idéia do que é aquilo. Olhe: a igreja fica assim num alto, embaixo está Itapagipe, onde nasceu este seu criado, e ao longe vê-se a cidade com aquelas casinhas trepadas umas em cima das outras, que é mesmo um céu aberto! Você entra na sacristia da igreja e vê milagres de alto a baixo! É impossível que aquele santo não seja mesmo da Bahia. A festa dura quinze dias; na minha terra é assim que se festeja. Foguetes ali é mato! Três dias antes vai toda aquela mulataria e crioulada lavar o templo. Ai é que se vê obra! Reúnem-se todas no largo com potes à cabeça, molhos de chaves à cintura, ouro a dar com pau nos braços e no pescoço, torço bordado e o chinelinho só nos calcanhares (Arremedando.) Tac, taraque, tac, taraque, adeus, ioiô. Depois entra tudo para a igreja de vassoura em punho e toca à lavagem. De tarde estende-se a toalha na relva, a viola soluça e em cada casinha daquelas ferve o sapateado.
FELISBERTA - A Bahia é mais bonita que o Rio de Janeiro?
SANTA RITA - Que pergunta! O Rio de Janeiro ainda tem muito que andar para chegar à Bahia. De lá têm saído os primeiros poetas, os oradores e os defensores da pátria. Ali há gente para tudo.
FELISBERTA - E você por que não foi defender a pátria?
SANTA RITA - A prova de que há gente para tudo, é que eu fiquei para dar os vivas e atacar os foguetes quando os patrícios chegarem. (Ouve-se rodar de carro.)
FELISBERTA - E sinhá velha; estamos perdidos!
SANTA RITA - Ó diabo! Adeus. (Vai sair pelo fundo.)
FELISBERTA - Não saia por aí, que vai esbarrar-se com ela. Esconda-se, esconda-se. Meu Deus!
SANTA RITA - Mas, onde?
FELISBERTA - Aqui. (Indica-lhe uma das portas da esquerda, por onde Santa Rita entra.)
CENA XIII
editarINACINHA, LEONARDA e FELISBERTA
LEONARDA - Também não sei onde tens esta cabeça.
INACINHA - A culpa não é minha; eu levei cartões de visita.
LEONARDA (À Felisberta.) - Ah! seu diabo, por que não me deu os cartões quando saí?
FELISBERTA - Eu não posso estar me lembrando de tudo. (Sai.)
CENA XIV
editarINACINHA e LEONARDA
LEONARDA - E eu que desejava mostrar este vestido àquela sirigaita.
INACINHA - Podíamos ter ido dar um passeio à rua do Ouvidor. Não sei para que saímos de casa.
LEONARDA - E sempre assim; quando se está bem Vestida... (Dirige-se ao espelho.) Não achas que estes fofos estão muito pequenos?
CENA XV
editarAS MESMAS, MIGUEL, FORTUNATO e LUÍS
MIGUEL - Pois já voltaram?!
LEONARDA - Não encontramos em casa a pessoa que procurávamos.
FORTUNATO (Para Miguel.) - E uma criança muito engraçadinha. Já diz - vovô! Também não admira. O defunto meu pai contava que quando eu nasci... Foi em mil oitocentos e... Ora, deixe-me fazer o cálculo: eu estou com cinqüenta e tantos anos.
LEONARDA - O senhor já mandou preparar o chá? Era melhor que se ocupasse com a casa, em vez de andar maçando a humanidade com histórias que nunca se acabam.
MIGUEL (Para Inacinha.) - Acabo de ver o seu menino.
INACINHA - Ah!
MIGUEL - Está muito espertinho.
LEONARDA - Não saiu por certo ao pai, e muito menos ao avô, que são os dois maiores pastranas que conheço.
LUÍS - Repare, senhora, que estamos diante de um amigo a quem prezo.
LEONARDA - A minha linguagem foi sempre esta. O senhor sabe perfeitamente que eu nunca tive papas na língua. Além disso estou em minha casa e posso dizer o que bem me parecer.
FORTUNATO (Recordando-se da data.) - Ah! foi em mil e oitocentos e dezesseis.
LEONARDA - Pois o senhor ainda está aí?
FORTUNATO - Ó senhora, isto não vai a matar; já vou. (Sai.)
CENA XVI
editarMIGUEL, LEONARDA, INACINHA e LUÍS
LUÍS (Para Inacinha.) - O nosso filho está chorando desde que saíste.
INACINHA - O senhor tirou-me da casa de meus pais para tornar-me ama de leite?
LUÍS - É que a ama não está em casa.
LEONARDA - Onde se meteu aquele demônio?
LUÍS - Senhora, estas expressões.
INACINHA - Eu não hei de passar a minha mocidade metida em casa, como uma bruxa. Se foi para encerrar-me como uma freira que casou comigo fique sabendo que não me sujeito às suas imposições.
LUÍS - Tenho-lhe eu feito já porventura imposições?
LEONARDA - E nem tem esse direito.
LUÍS - Eu não me dirijo à senhora.
LEONARDA - Faz muito bem; porque levaria imediatamente o troco.
INACINHA - Eu já sei onde isto vai ter. O senhor começa deste modo para cair depois no tema favorito de todos os dias: - o luxo e o dinheiro que gasto em toaletes. Os meus vestidos atacam-lhe os nervos, não é assim? Pois não sabe o prazer que isto me dá. Tem alguma coisa a dizer desta cauda, comendador?
MIGUEL - Está irrepreensível. Se as senhoras pagassem impostos sobre a vaidade, Vossa Excelência já estaria de há muito titular.
INACINHA - Agradeço-lhe a amabilidade.
LUÍS - Não é seu luxo que me ataca os nervos; o que me incomoda é ver a senhora gastar em puerilidades o pecúlio daquele inocente, a quem temos de educar.
INACINHA - O senhor não tem o direito de dizer a mais pequena palavra acerca das minhas despesas.
LUÍS - Basta; já sei.
INACINHA - Não; já que me provocou para este terreno há de ouvir tudo. O senhor trouxe alguma coisa para o prato? Antes de se casar comigo era um pinga e não tinha onde cair morto.
LEONARDA - Veio lambuzar a nossa família.
LUÍS (Com força.) - Senhora, a paciência tem limites.
INACINHA - Gasto do que é meu. Não pense que há de fazer figura depois da minha morte à custa da fortuna que herdar. Não me chame eu Inacinha Arruda se deixar-lhe um só real.
MIGUEL - Ora pois, deixem-se de desavenças.
CENA XVII
editarOS MESMOS e FORTUNATO (Que entra e diz um segredo ao ouvido de Leonarda.)
LEONARDA - Eu vou já ensinar àquela cachorra.
FORTUNATO - Venha cá, senhora.
LEONARDA - Deixe-me. (Sai.)
LUÍS - Está bom, senhora, em nome da resignação com que a aturo vá ver seu filho que está chorando.
INACINHA - Desculpe-me, comendador. (Lança um olhar feroz para Luís e sai.)
CENA XVIII
editarFORTUNATO, LUÍS, MIGUEL e depois FELISBERTA
LUÍS - E então, comendador?
MIGUEL - É horrível, meu amigo, horrível!
FELISBERTA (Chorando dentro.) - Não me dê, que eu grito.
LUÍS - O que é isto?
FELISBERTA (Entra chorando.) - Sinhá velha está hoje com o diabo no corpo e por uma coisa à toa caiu de bordoada em cima da gente.
LUÍS - Passe para dentro.
FELISBERTA (Chorando.) - Que culpa tenho eu que ela não deixasse dinheiro para o chá? Eu já não posso aturar esta casa.
LUÍS - Atrevida!
FELISBERTA - Também vosmecê se revolta contra mim? Não sei de que serve eu ter mamado o mesmo leite que sinhazinha, para ser desfeiteada deste modo.
FORTUNATO - Está bom, filha, isto não vai a matar; passa para dentro.
FELISBERTA - Não vou; eu hei de fazer hoje aqui uma estratralada dos mil diabos.
LUÍS (Baixo a Miguel.) - Vamos para dentro, comendador; ela em parte tem razão e eu não quero desmoralizar-me mais do que estou.
FORTUNATO - Entremos; porque no fim de contas sempre há de se encontrar alguma coisa que se coma. (Saem, menos Felisberta.)
CENA XIX
editarFELISBERTA e SANTA RITA
SANTA RITA (Espiando.) - Já se foram?
FELISBERTA - Santa Rita, você neste momento é a minha providência. Quer fugir comigo?
SANTA RITA - Homem, isto assim às pressas... Você bem vê... quando a gente não está prevenida...
FELISBERTA - Eu já sabia que o seu amor não passava de uma capadoçagem. Mas eu terei coragem bastante para sair sozinha e procurar trabalho em qualquer parte.
SANTA RITA - É que eu ando meio baldo ao naipe, Felisberta. Ficaram de me arranjar um lugar no corpo de urbanos e se você pudesse adiar isto para mais tarde...
FELISBERTA - Estou resolvida a não ficar um só minuto aqui.
SANTA RITA - Pois então, filha, fujamos. Mas para onde?
FELISBERTA - Para qualquer lugar.
SANTA RITA - Vamos raciocinar a sangue frio. Eu moro num cortiço na rua da Relação. E um quarto, onde mal cabe a minha cama, furado no teto e devassado pelos lados por toda a vizinhança.
FELISBERTA - Não há tempo a perder, quer ou não quer?
SANTA RITA - Se você sujeita-se a todas as conseqüências, vamos embora.
FELISBERTA - Vamos. (Vão a sair.) Sinto uns tremores pelas pernas...
SANTA RITA - Partamos. (Saem correndo.)
CENA XX
editarLUÍS e INACINHA
INACINHA - E o senhor a justificou? Sabe porventura os desaforos que ela disse à minha mãe?
LUÍS - Não podiam ser maiores que aqueles que a senhora me atirou há pouco em presença de um amigo a quem trato com todo o respeito.
INACINHA - Ainda foram poucos. Continuo a sustentar que o senhor era um pinga e que não tem o direito... (Gesticulando perto do rosto de Luís.)
LUÍS - Chegue-se para lá, senhora; não me faça perder-lhe o respeito.
INACINHA - O senhor ameaça-me? Quero ver isso, vamos lá.
LUÍS - Não me tentes, Inacinha.
INACINHA - Eu o desprezo, porque o senhor é um covarde.
LUÍS (Avançando.) - Senhora!...
INACINHA (correndo e gritando.) - Ai! ai! ai!
CENA XXI
editarOS MESMOS, FORTUNATO, LEONARDA e MIGUEL
LEONARDA (Gritando.) - O que é isto? Minha filha!
INACINHA (Apontando para Luís.) - Aquele monstro é um miserável. (Cai no sofá.)
MIGUEL (Baixo a Luís.) - O que fizeste, Luís?
LEONARDA - Retire-se de minha casa, senhor. O homem que ousa levantar a mão para sua mulher é um infame. Saia que eu já não o vejo.
LUÍS - Eu juro pela minha honra que não levantei a mão para essa mulher; apelo para a sua consciência.
FORTUNATO - Então fica o dito por não dito. Façam as pazes e isto não vai a matar.
LEONARDA - Isto não vai a matar?! O senhor que deveria ser o primeiro a defender sua filha, não sente neste momento um ímpeto de indignação contra aquele que acaba tão vilmente de injuriá-la! Já que não tem rubor nessas faces é preciso que eu. (Avança para Fortunato, Miguel põe-se de permeio.)
MIGUEL - É demais, minha senhora.
LEONARDA - Vamos embora, minha filha: aquele malvado há de ter do céu o castigo que merece. (Sai juntamente com Inacinha.)
CENA XXII
editarMIGUEL, FORTUNATO e LUÍS
FORTUNATO - Se o senhor não se mete no meio, eu levava um tapa-olho tão certo, como três e dois são cinco.
LUÍS - E duro atribuírem-me agora o papel de algoz, quando não passo de uma vítima resignada e sofredora. A taça transborda e é preciso que findem as torturas em que vivo.
MIGUEL - O que vais fazer?
LUÍS - Fugir para bem longe daqui. Sairei de cabeça erguida com meu filho nos braços e terei a coragem necessária para arrostar os comentários do mundo.
MIGUEL - Loucura, meu caro amigo. (Para Luís e Fortunato.) Querem um remédio pronto e eficaz para sustar os efeitos da febre que por aqui vai?
FORTUNATO - Aceito-o como pão para a boca.
MIGUEL - Pois bem: sente-se ali e escreva.
FORTUNATO (Sentando-se e escrevendo.) - Estou tremendo como varas verdes, ainda não me saiu da cabeça o tapa-olho de que escapei.
MIGUEL - Escreva lá: "Os abaixo assinados, não podendo por mais tempo tolerar o estado degradante em que vivem nesta casa...
FORTUNATO - Ó comendador, isto não é muito forte?
MIGUEL - ... tomaram de comum acordo a resolução de abandoná-la...
FORTUNATO - Nada, isto não faço eu.
MIGUEL - Ouça o resto e faça depois os seus comentários... "e vão atirar-se no seio das orgias...
FORTUNATO - O r, or, j, i... É com j ou g que se escreve isto?
MIGUEL - Escreva como quiser... "já que a posição de homens de bem que têm sabido sustentar até aqui não lhes garante a tranqüilidade e a consideração a que têm direito, como dignos chefes de família". Date e assine.
FORTUNATO - Lá isso de assinar, temos conversado. O que conseguiríamos com mais este escândalo?
MIGUEL - Eu lhe explico: os senhores não se vão atirar no seio das orgias, como reza a carta, longe de mim um tal conselho; fugindo, porém, de casa por algum tempo e fazendo constar às suas mulheres que estão na vida desregrada, ferem-lhes o amor próprio, dão assim uma prova de que sabem reagir com coragem contra o despotismo que os escraviza e obrigam essas criaturas a regenerarem-se, assinando dentro em breve um tratado de paz que será a garantia da felicidade futura.
LUÍS - O náufrago no estado de desespero abraça-se à primeira tábua que encontra. Aceito a sua idéia, comendador.
FORTUNATO - Oxalá que não se volte o feitiço contra o feiticeiro.
MIGUEL - Fique descansado; assinem a carta. (Para Luís e Fortunato.)
FORTUNATO - Eu saio de casa, mas sob condição de ser homem de bem, como tenho sido até aqui.
MIGUEL - É justamente o que eu quero. (Luís e Fortunato assinam a carta e deixam-na em cima da mesa.)
LUÍS (Para Fortunato.) - Saíamos, senhor.
FORTUNATO - Uma vez que é para nosso bem, partamos. (Saem todos pelo fundo.)
CENA XXIII
editarLEONARDA e INACINHA
LEONARDA (Entrando pela direita.) - Felisberta? Felisberta?
INACINHA (Entrando após.) - Na cozinha não está, mamãe.
LEONARDA - A maldita fugiu! Eu já antevia isto. Onde está aquele monstro?
INACINHA (Deparando com a carta em cima da mesa.) - Aqui está uma carta para nós.
LEONARDA - Lê.
INACINHA (Abrindo a carta e lendo.) - Ai! (Cai desmaiada.)
LEONARDA (Tomando a carta.) - O que é isto? (Lê: pequena pausa.) Fugiram com a mulata!
INACINHA (Acordando do desmaio.) - Vingança!
LEONARDA (Abismada.) - Fugiram com a mulata!
(Cai o pano.)