CAPITULO III
A attitude das potencias estrangeiras

Duas nações se achavam de antemão preparadas, cada uma com sua solução differente e mesmo opposta, para resolver o delicado assumpto da successão portugueza, aberta pela separação e independencia do Brazil. Essas duas nações eram a Inglaterra e a Hespanha, disposta a primeira a reconhecer como legitimo soberano de Portugal o Imperador Dom Pedro, com tanto que elle abdicasse a corôa européa em favor da filha Dona Maria da Gloria; decidida a segunda, a qual até então não reconhecera sequer o novo imperio americano, a não consentir que subisse ao throno visinho outrem que não o infante Dom Miguel, banido para Pariz por causa das suas travessuras politicas contrarias ao systema liberal, e que d'alli alcançara Vienna um tanto contra o desejo de uns e de outros.

O pensamento e o sentimento do Rei defuncto encontravam-se fielmente retratados no decreto que precedera e annunciava a solução patrocinada pela Inglaterra. No espirito de Dom João VI esta solução era porem independente da condição que lhe punha o governo britannico. Quando mal ainda podia prever tão proxima a morte, pedira elle á Inglaterra que garantisse a successão do reino na pessoa do primogenito[1], o que era uma maneira sua de preparar suavemente a reunião debaixo do mesmo sceptro, se bem que com vida autonoma, das duas nacionalidades que durante seu reinado se tinham divorciado. Nem fôra por uma vaidade imbecil, e sim por um fino designio politico, que El-Rei quizera assumir o titulo de soberano do Brazil, que Canning qualificava de esteril (barren). O que Dom João VI pretendia, elle que ao Brazil déra todas as regalias e o elevara á cathegoria de nação, era que Dom Pedro fosse depois d'elle rei de Portugal e dos Algarves e imperador do Brazil, a saber exactamente o que elle era.

A Inglaterra, melhor dito Canning, suggerira ao monarcha que de preferencia conservasse o seu antigo titulo de Rei do Brazil, que correspondera a uma realidade. Rei, porem, tinha precisamente um sabor de passado no paladar real; significava a tradição interrompida; envolvia o afastamento moral. Não era sem razão que Dom João VI dizia que, a ouvir a Inglaterra, renunciava de todo o diadema brazileiro com o qual pelo menos se poderia enfeitar. Imperador sim, isso representava o futuro; era o retorno por uma das innovações do seculo a uma dignidade romana de acclamação popular, que a velha realeza assim chamava a si; era sobretudo o restabelecimento moral, quem sabe se concreto, em todo o caso politico, da antiga união. Os que agora, fóra de tempo, preconizam a confederação das duas republicas, deparam n'esse rei com um avô.

O Foreign Office considerava o negocio da successão em extremo difficil. Á mingoa de declarações precisas, impossiveis de occorrerem na phase de afastamento violento de Portugal e Brazil, não era dado conjecturar ao certo as disposições de Dom Pedro com relação á acceitação ou recusa da corôa dos seus maiores, a qual elle de resto solemnemente repudiara pelas suas palavras e pelo seu acto de franca rebellião. Se incerteza n'isto havia, maior havia ainda quanto ao effeito que sobre os subditos americanos do Imperador produziria eventualmente a acceitação do throno europeu.

O historiador brazileiro Solano Constancio, contemporaneo d'estes acontecimentos, escreve</ref>Historia do Brazil, Pariz, 1839, vol. 11.</ref> que Dom Pedro bem quereria conservar Portugal e seus dominios coloniaes, annexando-os ao Brazil como ao elemento preponderante do imperio, mas que não ousava ir de encontro á Inglaterra, nem sequer á opinião predominante no Brazil. Este era infenso á reunião, porque receava que uma vez rei, Dom Pedro utilizasse seus subditos europeus em opprimir os brazileiros, mui inclinados ás idéas republicanas. Portugal possuia soldados aguerridos, que desprezavam e detestavam os irmãos coloniaes.

Eis porque em Londres nada se queria garantir, considerando o assumpto inteiramente como de ordem interna, devendo ser resolvido pela auctoridade competente. Canning escrevia a Sir William A' Court que as garantias de successão tinham sido dadas apenas contra uma força externa e dynastias rivaes, ajuntando com o seu tino habitual a que nunca escapavam as analogias: «Qual seria agora nossa situação se tivessemos garantido o throno da Russia ao grão-duque Constantino? Entretanto sua renuncia não era absolutamente um acontecimento provavel como é agora a de Dom Pedro »[2].

Em Lisboa parecia reinar duvida sobre a auctoridade a que devia caber a solução da successão: se ao soberano, se á representação nacional,. pois que as antigas côrtes não se achavam por forma alguma abolidas ; sómente havia muito não as convocavam os monarchas. O gabinete britannico patrocinava o appello a essa instituição secular deixada cahir em lethargia. No seu parecer a ella competia confirmar a ordem legitima da successão e approvar a forma da regencia que fosse de antemão estipulada entre o Rei e o herdeiro, afastando todo o perigo de uma guerra civil. A abdicação de Dom Pedro era considerada inevitavel.

O Secretario d'Estado britannico communicava ao embaixador em Lisboa que «qualquer garantia estrangeira, se caso houvesse para isso (if fit to be given at all), devia seguir' e não preceder um solido (sound) arranjo domestico». Logo apoz o fallecimento d'El-Rei voltava Canning á carga, suggerindo o processo constitucional a ser adoptado. «Todo arranjo, escrevia elle[3], concluido em vista do futuro governo do paiz e da regulação da successão ao throno, ficará incompleto se não receber, de qualquer modo e por não importa que orgão prescripto pelos antigos usos do reino, a sancção da nação portugueza». Aos olhos da Inglaterra o herdeiro legitimo era Dom Pedro, ou antes a princeza Dona Maria da Gloria, a qual deveria por sua vez renunciar a todo direito á corôa imperial do Brazil. Sem esta precaução, caso viesse a fallecer o principe imperial nascido poucos mezes antes[4], as mesmas difficuldades que tinham apparecido em Portugal surgiriam no Brazil.

A Inglaterra nunca experimentou benevolencia para com os grandes Estados. Sua politica, haurida n'um modelo classico, é dividir para dominar. Em Portugal e Brazil, reunidos, ella não imperaria talvez tão facilmente como nos dous separados, no sentido de fomentar seus interesses mercantis. Não era aliás sem bastante razão que ella pretendia ter voz no capitulo de preferencia ás nações que não tinham um navio a velejar no Atlantico do Sul, nem um fardo de mercadoria a despachar nos armazens de Portugal e Brazil. A intervenção da Santa Alliança parecia-lhe portanto obnoxia tanto por conveniencia economica quanto por conveniencia politica. Ainda que na Grã Bretanha não faltassem ultra tories, a começar pelo Rei Jorge IV e por Wellington, o espirito publico era no emtanto mais progressivo do que o das grandes potencias continentaes, sob cuja influencia Dom Miguel cahiria mais facilmente do que Dom Pedro, que presumia de constitucional militante e, vociferava declarações liberaes. Não fôra sem algum esforço que Canning se vira livre do pesadelo francez em Lisboa. Restavam a Hespanha e a Austria.



A Hespanha é naturalmente levada pelo seu temperamento a obedecer a impulsos cavalheirescos: é a patria de Don Quixote e não de Bentham. A escola do idealismo pode ser para ella a antithese da escola do interesse proprio, o qual, politica, economica e philosophicamente, deve ser, segundo a opinião de um homem d'Estado inglez dos nossos dias, lord Birkenhead, a mola principal das acções humanas. Por occasião da primeira discussão diplomatica ácerca da regencia cuja composição annunciava assaz o regimen que ia ser adoptado, o partido apostolico hespanhol levou sua ousadia ao ponto de propor uma intervenção violenta no intuito de restaurar por completo no reino visinho os sãos principios do absolutismo. Estes sacrosantos principios perigavam nas mãos de um principe que se ufanava de ser campeão de Constituições e cujo temperamento combativo o arrastaria a perturbar a paz externa, uma vez que alem da fronteira se lhe deparava um governo de ideal opposto.

Uma conferencia de embaixadores convocada em Pariz pelo ministro dos negocios estrangeiros da França, barão de Damas, e para a qual não foi convidado o embaixador britannico, a quem no emtanto tocava mais de perto do que a qualquer outro o assumpto sujeito a debate, não chegou a conclusão alguma definida. O gabinete francez hesitou em reconhecer o candidato da corte de Madrid e acabou por apoiar Dom Pedro, ao passo que a Russia, representada por Pozzo di Borgo, procedia no sentido inverso[5] e, no espaço de trez dias, mudava radicalmente de opinião, manifestando-se primeiro em favor do mais velho dos dous principes e em seguida em favor do mais novo.
D. Pedro I

A Austria, tão certa quanto a Inglaterra da impossibilidade de qualquer tentativa por parte de Dom Pedro de reunir as corôas de Portugal e Brazil ou de delegar uma d'estas duas soberanias, pretendia de accordo com a sua politica proverbial, arranjar as cousas por meio de um casamento. O consorcio de Dona Maria da Gloria com seu tio Dom Miguel fôra primeiro lembrado no Rio de Janeiro e em Lisboa, mas Metternich, que conhecia bem os seus semelhantes, percebeu, talvez melhor do que ninguem, que seria esse o meio de estabelecer suavemente a realeza do infante.

O mesmo espirito arguto que soube medir a basofia de adventicio de Napoleão e converteu o senhor do mundo no servo de uma archiduqueza, previa que n'aquelle matrimonio na Casa de Bragança, o esposo seria o amo. A personalidade do infante tinha-se-lhe tornado familiar. Seu caracter, mais fogoso do que auctoritario, difficilmente admittiria no regimen conjugal uma partilha do poder soberano. Dona Maria tambem manifestaria no futuro — tinha então apenas 7 annos — ser rainha orgulhosa e voluntaria, como o era o pai na sua exhuberancia masculina, mas havia tambem na sua natureza traços essencialmente femininos, entre elles o da condescendencia para com o esposo a quem fosse devedora das suas successivas maternidades. Não raro a Rainha se havia de eclipsar na penumbra da mãi amantissima[6].

O infante permanecia em Vienna e a Hespanha começou a insinuar-lhe que regressasse para Portugal e encabeçasse uma situação que de direito lhe pertencia e tambem de facto no dia em que quizesse, tal era o enthusiasmo que por elle sentia a grande maioria do paiz. Não havia o finado Rei dado a seu filho primogenito e dilecto o conselho de apoderar-se da corôa do Brazil se, como sagazmente o conjecturava, occorresse o rompimento imminente e o vasto dominio americano ficasse á mercê de um aventureiro?[7] Como é que Dom Pedro poderia pensar em renunciar a sua renuncia virtual e retomar o sceptro de um Reino Unido, o qual deixara de existir precisamente pela sua iniciativa? A melhor prova da illegitimidade da sua auctori- dade como soberano de Portugal, bem patente aos olhos dos seus adversarios, consistia em que, segundo o parecer d'estes, era elle o unico a estar persuadido que poderia em qualquer tempo subir ao throno de Lisboa como se não houvesse dilacerado a monarchia.

Não era exactamente assim. A Hespanha exagerava. Dom Pedro tinha um certo numero, pode mesmo dizer-se um numero consideravel de partidarios portuguezes, adeptos das doutrinas constitucionaes que a Inglaterra patrocinava porque em summa eram as suas, com a condição entretanto que essa constitucionalidade não fosse homogenea e indivisa. O marquez de Rezende, que era entendido em cousas diplomaticas, explica muito bem a este proposito que a Inglaterra invariavelmente cuida de pôr seu poderio politico ao serviço da sua expansão commercial afim de augmentar aquelle por meio d'esta. O seu elemento mercantil desejara vivamente e favorecera a separação formal occorrida em 1822 entre Portugal e Brazil á vista dos bons resultados que lhe trouxera a independencia das colonias inglezas da America do Norte. Era natural que a independencia das opulentas colonias ibericas da America do Sul determinasse um augmento immenso dos lucros da industria britannica, abrindo vastos mercados aos seus productos manufacturados.

A Austria conveio com a Inglaterra, pela voz de Metternich, que Portugal «não era o imperio dos Incas, onde os irmãos mais moços succediam aos mais velhos em detrimento dos filhos d'estes». A Austria queria fazer prevalecer os direitos da princezinha, neta, pela mãi, do Imperador Francisco I, e Canning declarava estar absolutamente satisfeito com a attitude de Metternich o qual, no seu cynico realismo, tanto se importava com que o Brazil fosse governado do Rio ou de Lisboa, comtanto que fossem preservadas as formas monarchicas. Agradara-lhe a fundação de um imperio na America, preferindo o governo de um soberano ao de uma assembléa demagogica, como no seu conceito tinham sido as Côrtes e a Constituinte.

As duas chancellarias, a de Londres e a de Vienna, tinham encarado o problema da successão portugueza de forma identica, se bem que sem accordo previo, pois que fôra tão inopinado o fallecimento de Dom João VI. «É optimo que o principe de Metternich haja comprehendido tão integralmente a importancia de convencer o infante Dom Miguel a prolongar sua estada em Vienna», escrevia Canning a Sir William A' Court a 27 de Maio de 1826[8]. A circular da chancellaria austriaca aos seus representantes no estrangeiro, reconhecendo os direitos de Dom Pedro ao throno de Portugal, fôra, na expressão de Canning, que não era levado a exagerar quando se tratava de outrem, «o facho que illuminou e guiou os passos de todos os gabinetes n'este negocio, detendo as desordens que uma indecisão por parte das potencias poderia ter provocado em Portugal »[9]. A Russia mesma não deixaria de pôr-se em igual diapasão desde que o accordo do Tzar Nicoláo e seu ministro Nesselrode com as grandes potencias se esboçava com relação ás questões do Oriente. De minimis non curat prætor... Constantinopla e não a legitimidade portugueza constituia a grande preoccupação do governo de São Petersburgo.

O principe de Metternich não procedia muito provavelmente com a duplicidade que se lhe quiz attribuir: se quizesse ser tão velhaco como se pensa, teria agido de modo menos complicado e tambem menos arriscado. É verdade que recusara acceder ao marquez de Rezende quando este lhe propuzera acceitar uma nota com o pedido de formal reconhecimento dos direitos do seu soberano, o Imperador do Brazil, á corôa dos seus maiores. Dado o alcance de semelhantes titulos, o paladino por excellencia do principio da legitimidade considerava uma tal declaração acto novo em diplomacia, podendo até fazer crer na existencia de duvidas ácerca de uma successão como aquella, de direito e de facto. Ao mesmo tempo, porem, não trepidara o chanceller em reprehender asperamente o enviado hespanhol que o increpava com insolencia por conservar Dom Miguel prisioneiro. A aspereza em Metternich nunca excluia o bom tom. Foi com as seguintes palavras e um sorriso malicioso que replicou ao altivo Acosta, o qual emmudeceu: «Se a vossa incompetencia em julgar com justeza dos cambiantes da lingua franceza não fosse aqui tão notoria, sei bem a resposta que vos deveria dar; mas fiquemos por aqui, pois que deixariamos de comprehender-nos».[10]

Queria Metternich preparar a volta de Dom Miguel, prevendo-lhe as consequencias, mas parecendo que as não calculava nem suscitava afim de não trahir o seu pensamento recondito, tanto mais quanto não podia deixar de perceber que o interesse da Inglaterra estava sempre em que em Lisboa houvesse um governo fraco e condescendente, não um governo forte e obstinado? Ou, conhecendo o papel turbulento desempenhado pelo hospede da sua corte e pela Rainha nos acontecimentos de Portugal de 1823 e 1824, enganava-se elle acreditando que a nação na sua quasi totalidade preferiria aos actores da tragedia falhada uma joven ingenua, innocente de todo peccado politico? Metternich nunca o confessou e, ao almejar o exito da solução austriaca da questão, devia ser sincero, o que afinal de contas é a diplomacia de melhor quilate, porque é a que mais illude.

Por seu lado não cessava o infante de protestar fidelidade ao irmão mais velho e respeito á derradeira vontade do seu « pae bem amado ». Nas suas cartas á regencia, como anteriormente nas cártas a El-Rei, qualificava a agitação dos seus partidarios de vistas sinistras e reprehensiveis e perniciosos projectos ; como podia porem ser sincero n'isto que escrevia ou mandava escrever? O irmão aliás fornecera-lhe o exemplo da falsidade epistolar quando, de accordo com o pai, jurava ás Côrtes pela sua honra ser o inimigo dos que trabalhavam para tornar o Brazil independente, ao mesmo tempo que lhes esposava a causa.

Tem-se frequentemente attribuido a Metternich o papel de inspirador de Dom Miguel e era elle por certo o oraculo a ser consultado n'aquelle tempo — oraculo solemne nas palavras e ladino nos intentos. Desde as primeiras noticias que se o vê, no dedalo da papelada diplomatica, inclinado a fechar os olhos ao que, na sua expressão, era «o funesto e fatal presente» de Dom Pedro, a saber, a Carta Constitucional. Apenas quizera, antes de desfraldar a vela, verificar d'onde soprava o vento, isto é, como procederiam a Inglaterra, a França e a Russia, esta ultima em galanteio com Canning. Sua primeira circular, de 4 de Julho de 1826 não foi sequer remettida á chancellaria ingleza por suspeital-a com justo motivo de pensar quanto ao assumpto diversamente da austriaca. Para obedecer aos seus principios, Metternich clamava contra a destruição da ordem social emprehendida pelo Imperador do Brazil, desencadeando a revolução e provocando a reacção correspondente por meio da sua dadiva constitucional. Ia mesmo alem: promettia o chanceller, em nome do seu soberano, encarar com benevolencia e até sustentar toda proposta hespanhola contra o visinho Portugal que a segurança do reino dictasse no governo de Madrid. Rindo comtudo á socapa, declarava Metternich quanto lhe parecia ocioso e perigoso debater questões d'essa natureza, concernentes aos direitos magestaticos, no seio de conferencias diplomaticas.

Por sua vez Canning tocava no mesmo teclado — as prerogativas dos monarchas, as quaes elle affectava zelar. Na verdade, segundo Esterhazy, o embaixador austriaco em Londres, mofava d'ellas e soube tirar toda a vantagem possivel da Carta outorgada por Dom Pedro para cortar pela raiz as criticas officiaes. A conferencia dos embaixadores, que pensara avocar o negocio, falliu perante a attitude do estadista britannico que, no dizer de Temperley[11], combinou a força com a logica, esta quanto á legitimidade das Constituições outorgadas, aquella quanto á applicação da doutrina de não intervenção.

A conferencia contentou-se com admoestar o regimen constitucional portuguez sobre o risco de propagar na Hespanha as suas maximas revolucionarias. Villèle, o primeiro ministro da França, e Pozzo di Borgo, o embaixador do Tzar, julgavam que Portugal isolado entregue a si, se ralaria e se dividiria, perecendo a Carta de inanição. N'um certo sentido foi o que veio a acontecer, apezar de Dom Pedro conservar ás mãos os seus dous timbales, como elle dizia pouco tempo antes, ao tratar-se do reconhecimento da independencia em que a França queria preceder a Inglaterra, barganhando o favor politico em troca de privilegios commerciaes.

A conferencia tambem se mallogrou porque a Russia, no intuito de agradar a Inglaterra, recusou tomar parte n'ella, não obstante Metternich assegurar que se tratava de um concerto. A idéa de um congresso como os de Aquisgrão, Laybach e Verona, teve que ser posta de lado, taes congressos começando de resto a passar de moda. A Santa Alliança apoiou entretanto a Hespanha na protecção concedida aos refugiados portuguezes do partido absolutista.

Canning achou todavia que seria util a sua ida a Pariz com o fim de promover sua politica, o que conseguio por meio de appellos e de ameaças, sabendo perfeitamente servir-se de ambos os instrumentos. Alistou tanto a França como a Russia na causa da integridade portugueza que fizera sua, e Temperley pensa que elle conseguio mesmo fazer prevalecer seu desejo sobre a repugnancia de Metternich com relação ao juramento do infante. De facto obteve que fosse publico e notorio, comquanto acompanhado de certas restricções que diziam respeito aos títulos pessoaes de Dom Miguel, mas não significavam que o chanceller austriaco armasse intrigas para fazer naufragar a Constituição portugueza, de cujo exito assaz duvidava. O historiador inglez igualmente opina que a França interviria no caso de Portugal atacar a Hespanha, o que estava entretanto fóra de questão, dada a fraqueza dos seus recursos militares e dada tambem a protecção dispensada pela Inglaterra, a qual tornava dispensavel o ataque uma vez garantida a defeza. O que é absolutamente exacto é que Canning robusteceu a influencia ingleza em Portugal, cobrindo-o de um gesto theatral com o escudo britannico.







Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. « Fico sabendo pelo que V.ª Ex.ª me diz, escrevía Canning a A'Court a 18 de Janeiro de 1826, que a garantia da successão é a que S. M. F. mais tem a peito». (B. R. O., F. O.).
  2. O grão-duque Constantino tinha sido forçado pelo pai, o Tzar Alexandre I, a abdicar a coroa em favor do irmão Niculáo, o qual subiu ao throno em 1825.
  3. Despacho de 5 d'Abril de 1826, B. R. O.. F. O.
  4. A 2 de Dezembro de 1825.
  5. Apontamentos para a historia diplomatica de Portugal desde 1896 até 1834, pelo conselheiro Felix Pereira de Magalhães, Lisboa, 1872.
  6. Foi o que occorreu quando desposon em segundas nupcias Fernando de Saxe Coburgo Gotha, primo do principe consorte Alberto e do duque reinante Ernesto, o qual nas suas reminiscencias se occupa do casal e relata n'uma carta ao irmão, escripta de Lisboa, que « a Rainha, dando boa mostra da sua prudencia, confiara a Rei a tarefa de governar, que elle desempenhava com muito zelo e circumspecção». Na pagina seguinte ajunta: « A Rainha a ninguem recebe só; todos se entendem com Fernando que os escuta e decide seus negocios, levando-os depois a beijarem a mão da Rainha ». (Memoirs of Ernest II, Duke of Sure-Coburg-Gotha, Londres 1886, vol. I).
    O primeiro marido de Dona Maria II foi o duque Augusto de Leuchtenberg, filho do principe Eugenio de Beauharnais e irmão da segunda mulher de Dom Pedro, a imperatriz Amelia. Foram apenas casados dous mezes e por occasião do seu fallecimento, aos 25 annos, tambem se fallou de envenenamento.
  7. Esse conselho foi reilerado em carta de 12 de Maio de 1822, confiada ao Marquez de Rezende e mais tarde exhibida an Imperador d'Austria. (Marquis de Rezende. Eclaircissements historiques sur mes négotiations relatives and affaires de Portugal... Pariz, 2. ed., 1832):
  8. B. R. O., F. O.
  9. Marquez de Rezende, ob. cit.
  10. Marquez de Rezende, ob, cit.
  11. O Sr. Harold Temperley, professor da Universidade de Camabridge e auctor de uma biographia de Canning, prepara sobre este e sua acção sobre os acontecimentos de Portugal e Brazil um novo livro inteiramente baseado sobre os documentos diplomaticos da epocha, do qual fez o favor de deixar-me ler antecipadamente alguns capitulos.