CAPITULO VIII


A interinidade constitucional


A Carta Constitucional foi solemnemente jurada em Lisboa a 31 de Julho e o tom da proclamação da infanta, datada de 1.º d'Agosto, denuncia claramente as influencias que sobre ella actuavam n'essa occasião. Canning desapprovou muito a forma d'esse documento, achando que n'elle se abandonara a linguagem «contida e medida» (guarded and temperate) que até então assignalara as declarações da regente, para adoptar-se um ar « fanfarrão e declamatorio» (vaunting and exclamatory) exprimindo intimações de vingança — em summa um sabor revolucionario[1].

O estadista inglez pensava que Portugal devia esforçar-se por não provocar a Europa e particularmente a Hespanha. Era mistér usar de moderação, ser differente do que se fôra em 1820-22 — « distanciar o mais possivel a orientação dos novos debates da d'aquellas cortes, em vez de recordar ao mundo o alarme causado pela sua extravagancia »[2]. Entretanto espiritos desannuviados mas equilibrados como o de Almeida Garrett, o mais brilhante representante do romantismo em Portugal, entendem que a revolução de 1820 não ousou emprehender uma reorganização social radical bastante, conforme o exigiam as condições do paiz. Apenas mudaram os homens, isto é, o pessoal governativo: as cousas ficaram mais ou menos no que estavam[3].

Em Londres, em Vienna e em Pariz commentou-se a phrase da infanta sobre o seu direito a conservar a regencia até a maioridade da joven Rainha. «Estamos persuadidos que esta é a interpretação correcta das intenções do Imperador, observava Canning[4], mas é impossivel negar que a clausula da Carta relativa ás regencias se acha concebida em termos ambiguos ». Para que a questão se não agite de uma forma perigosa, torna-se necessario resolvel-a «radicalmente, da maneira mais authentica, com o concurso e sancção da auctoridade mais indiscutivel». O governo britannico queria dizer as Côrtes, ao passo que a infanta quizera resolver a questão por si, sem o apoio declarado de qualquer corporação do Estado. «Este acto de imprevidencia, de precipitação, é no mais alto gráo inhabil — é pura e simplesmente fazer o jogo de Dom Miguel »[5].

Canning tinha perfeita razão. O que a Dona Izabel Maria evidentemente cabia de mais acertado fazer era ir exercendo a sua regencia, que desejava ver prolongada, o mais discretamente, o menos ruidosamente possivel, e entrementes mandar ao Rio de Janeiro ás caladas uma pessoa de confiança afim de obter uma explicação clara, positiva e auctorizada do verdadeiro pensamento — o que Canning chamava the real meaning — de Dom Pedro. Este real meaning não podia ser outro senão a infanta no poder e Dom Miguel á distancia até a maioridade de Dona Maria da Gloria. Razão demais por conseguinte para que a infanta não houvesse desafiado (challenged) a interpretação de uma disposição que não visava de modo algum ameaçal-a nas suas ambições. Foi ella propria quem, procurando melhor assegurar o seu titulo, o poz em duvida pois que, uma vez despertada a logica, formulou a interpretação opposta. Mais habeis tinham sido os negociadores do tratado de 1825 que calaram, por manifestos e indiscutiveis, os direitos do principe real á successão portugueza.

Os encarregados de negocios da Austria, da Prussia e da Russia tinham-se abstido de comparecer na cerimonia da installação da Carta, o que fazia crer que a reprovavam. Canning não quiz porem ver outro motivo alem da falta de instrucções, porquanto a contradicção teria sido então em demasia flagrante com a troca de vistas franca (unreserved) e confidencial que occorrera entre a corte de Saint James e aquellas outras cortes a proposito dos negocios de Portugal. Haveria outros motivos? Provavelmente excesso de zelo, symptoma do morbus diplomaticus denunciado na advertencia classica de Talleyrand, para quem o cynismo era o antidoto : talvez tambem o faro d'aquelles agentes lhes tivesse revelado o verdadeiro sentir intimo das suas chancellarias, que não seria para admirar os deixassem um tanto na duvida do que realmente se passava, não detestando vel-os patinhar quando o mal estava longe de ser sem cura. As chancellarias da Santa Alliança esmeravamse, como toda chancellaria que se respeita, em ardis politicos, apparentando trabalhar de accordo com Canning porque do contrario comprometteriam, n'esse caso porventura irremediavelmente, uma situação que era delicada. Não deixavam por isso de praticar o jogo diplomatico, emquanto diplomacia quizer dizer duplicidade.

Cada uma das referidas potencias possuia seu objectivo e suas razões, mas a Inglaterra era a unica a ter verdadeiro interesse em que o governo de Portugal permanecesse entre mãos femininas — primeiro a infanta, em seguida a Rainha. Dom Miguel governaria certamente de uma maneira energica senão arbitraria, como era mais verosimil : isto poderia convir mais aos adeptos do absolutismo, mas convinha menos á Grã Bretanha. O resultado foi que consciente e voluntariamente como a Inglaterra, mercê de conveniencias politicas como a França e a Russia, pelo respeito á legitimidade combinado com calculo politico como a Austria, pela força das circumstancias como a Hespanha, todas as potencias da Europa que contavam para o assumpto vieram a acatar a ordem puramente natural da successão que ia de Dom João VI a Dona Maria. Umas mais, outras menos, concordavam porem todas em que Dom Miguel não fosse despojado da participação effectiva no governo que lhe competia, mesmo segundo a melhor interpretação dos antigos textos do direito publico portuguez.

É curioso verificar as mudanças operadas n'um curtissimo espaço de tempo no espirito de Dom Pedro com relação á successão portugueza. Sir Charles Stuart obteve no Rio de Janeiro — não diz como — e deliberadamente guardou um memorandum redigido de accordo com as opiniões do gabinete de Lisboa antes do fallecimento de Dom João VI e apresentado pelo marquez de Barbacena ao Imperador, que n'elle escreveu á margem suas reflexões. Taes negociações preliminares tinham sido suspensas no Brazil porque Canning, sempre prevenido contra Sir Charles Stuart, lh'as tomou para confial-as á embaixada em Lisboa, onde aliás seus pareceres chegavam mais rapidamente. Na altura do artigo 1.º d'esse « pacto de familia » , onde se dizia que Dom Pedro seria o legatario universal de Dom João VI, exercendo o direito de dispor d'essa herança em favor da sua próle, não hesitou em escrever : « Sim, mas sómente para poder fixar a escolha do herdeiro de Portugal, dispondo primeiro a seu bel prazer do thesouro ».

O Imperador ainda estava na sua phase lusophoba, quando insultava a terra portugueza para se pôr ao diapasão dos patriotas brazileiros. Entendia só ceder a Portugal seu terceiro filho (quando o tivesse), reservando ao Brazil o primogenito e o segundogenito « para estar mais seguro da manutenção da dynastia na America». Em rigor não podia ceder qualquer dos filhos, porque eram brazileiros e possuiam direitos de successão ao imperio, cuja Constituição prohibia a acceitação de outra corôa mesmo temporariamente, sem previa renuncia ao throno occupado. A ninguem é dado transferir um titulo que lhe não pertence.

Ao artigo propondo que o casamento de uma das suas filhas (não tinha então herdeiro varão) com um principe portuguez não pudesse, segundo as leis do reino, invalidar o direito exclusivo da mesma princeza ou dos seus descendentes á corôa do Brazil, apressou-se o Imperador em responder — « Muito pelo contrario, ella perderá todos os seus direitos e outrotanto acontecerá com os seus successores, pois assim o exigem os nossos principios de separação de Portugal, estabelecidos por occasião da independencia ».

Queria Dom Pedro a esse tempo ter a faculdade de regular a seu talante a successão portugueza. Assim era que se o principe ou princeza que herdasse a corôa do reino viesse a fallecer sem descendencia, o herdeiro immediato não seria automaticamente installado, a saber, não subiria ao throno pela ordem natural das cousas por direito de nascimento. O Imperador interviria para nomear o successor do seu successor, porque, dizia elle, esse direito reverte para mim desde que não foi preenchido o fim de dar a Portugal uma nova dynastia, prolongamento da antiga, da mesma forma que a Carta de 1826 devia apenas ser a continuação, adaptada ás circumstancias, da velha Constituição da monarchia. Dom Affonso Henriques porem dissera ás suas Côrtes — façamos leis, e Dom Pedro IV escrevera com relação á sua Carta — apraz-me decretar[6].

O Imperador ajuntou ao memorandum um artigo que n'elle não figurava e consoante o qual « as duas corôas não poderiam jamais reunir-se sobre a mesma fronte». A esse tempo, em 1825, sua escolha para a presidencia da regencia, no caso de seu pai fallecer, era a mãi ou o irmão. No anno immediato todo o seu desejo se cifrava em conservar por longo tempo Dom Miguel em Vienna e n'este intuito lhe escrevia uma primeira carta que Sir Charles Stuart qualificava de « estranha mistura de lisonja e ameaça»[7]. Quando o enviado britannico lhe fez a observação que, de accordo com a Carta que acabava de receber para levar para Lisboa, a regencia caberia ao infante logo que attingisse os 25 annos, Dom Pedro respondeu-lhe que não, visto que tal disposição constitucional só se devia applicar ao membro da familia real domiciliado em Portugal[8].

Era um miseravel sophisma, graças ao qual Dona Izabel Maria continuaria no exercicio das suas funcções e Dom Miguel não poderia voltar para a terra natal antes de sete annos, quando a Rainha chegasse á nubilidade, isto é, completasse 14 annos. Ella não assumiria em todo caso o poder antes dos 18 annos, e mesmo uma vez alcançada a maioridade e consummado o matrimonio, o infante não ficaria aos olhos do irmão collocado n'uma situação mais em evidencia que seu avô Dom Pedro III, esposo de Dona Maria I, porque em Portugal «o consorte da Rainha era considerado como uma femea (sic) e não tinha sequer jús a um logar no conselho do governo». Sua descendencia herdaria os direitos da mãi[9].

Dom Pedro pretendia de resto que a irmã, como regente, d'elle dependesse inteiramente e que em tudo e por tudo servisse seus interesses. O seu amigo Arcos, que em Lisboa continuava no papel de seu confidente, fizera por isto opposição á regente quando pertencia á junta, aspirando a ser a primeira personagem a fiscalizar a execução das vontades imperiaes. Sir Charles Stuart narra na sua correspondencia official, que nas Caldas da Rainha, onde se achava a banhos, Dona Izabel Maria queixou-se amargamente, chorando a bom chorar quando elle alli lhe foi entregar os documentos que trouxera comsigo. Acabando comtudo por dominar essa crise passageira de nervos, a infanta declarou que, mau grado sua fraqueza feminina, havia de mostrar mais energia que o pessoal que a cercava e que contrariava suas vistas. E o facto é que Arcos acabou por lhe dar seu apoio.

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. «Como a primeira entre as subditas de S. M. I. e R. é meu primeiro dever pôr em immediata e rigorosa execução a Sabia Carta Constitucional que do alto do seu throno deu aos seus subditos portuguezes Meu Augusto Irmão e nosso Legitimo Soberano Dom Pedro IV, cujo nome glorioso é repetido com admiração, respeito e estupefacção na America, na Europa e no mundo inteiro. Executarei pois e farei executar esse immortal Codigo Constitucional, unica taboa da nossa salvação politica. Ai d'aquelle que fizer opposição. A Lei o punirá sem piedade e eu serei tão inexoravel quanto a Lei».
  2. Despacho de 19 de Agosto de 1826, B. R. O., F. O.
  3. Portugal na balança da Europa.
  4. Despacho citado de 19 de Agosto de 1826.
  5. Despacho citado de 19 de Agosto de 1826.
  6. « Nem Clodoveu, vencedor dos Romanos e dos Gaulezes, ao estabelecer a lei salica ; nem Guilherme o conquistador, quando fez pesar o jugo das suas leis normandas sobre a Inglaterra escravisada, fallaram com mais arrogancia, ... (Ezamen de la Constitución de Don Pedro, y de los derechos del Infante Don Miguel, Paris, 1827). Escripto do ponto de vista apostolico e anti-regalista, reprovando que « os actos da religião, emanados da auctoridade suprema universalmente reconhecida, taes como bullas pontificaes e decretos dos concilios, fossem submettidos á auctoridade privada de um principe secular ». O auctor via na Carta o fundamento de uma Egreja nacional portugueza, a reviviscencia do gallicanismo.
  7. Despacho a Canning datado do Rio de Janeiro em 2 de Maio de 1826. B. R. O., F. O.
  8. Despacho de Sir Charles Stuart de 10 de Maio de 1826.
  9. Conversa do Imperador com Sir Charles Stuart, relatada no despacho citado a Canning de 10 de Maio de 1826, B. R. O., F. O.