Era o mês de março, passado um ano. Por sobre a casimira verde das beldroegas polvilhavam-se constelações deslumbrantes de mica, ao sol nascente. No pé do alto, a erva afogava o velame ressequido pelo tremendo verão de dois anos, em acolchoamentos de lã; o sol, a sair por detrás das colinas, produzia sombras no íntimo da infinita camada de frondes vivíssimas, que encobria a terra, com uma soberbia e uma vitória. Os picos amanheciam logo enfronhados em um colarinho de névoas. A pastagem era uma imensa pelúcia. Formigas de asa, com cambiações de madrepérola, à luz baça dos alvos dias de neblina, salpicavam a mancha fulva e remexida dos formigueiros revolucionados pelas águas novas. E o gaitar dos novilhos como que a imprimir por tudo um impulso másculo. A rês não andava agora de ponta caída, mas com um balanceado de cabeça, um donaire de mulher núbil. Aos currais, onde desde o último dia de junho a bem dizer não corriam os paus de porteira pelos buracos dos moirões, recolhiam todas as tardes as vacas a impar de abastança.

No dia 26 de março pôs-se à mesa o primeiro queijo. Em janeiro, havia dado uma chuvinhas, fugaz esperança, que não deram para segurar o pasto. E a babuge - foi arrebentar e logo sumir-se outra vez na casca estorricada dos galhos nus. Acordara, e de novo adormecera a natureza. Agora, porém, era mesmo um despertar buliçoso de criança com saúde.

Era domingo aquele dia 26. Quinquim, ao quebrar das barras, montara a cavalo para ir à vila, ouvir a sua missa. Levava um crioulo com umas cargas de malas, para fazer a feira: precisava de alguns gêneros mais vasqueiros para sortir a despensa. Nos outros anos quase não era necessário ir-se comprá-los ao povoado, porque pela estrada passava de um tudo; mas naquele, o trânsito havia já diminuído por causa da falta de pasto e de cavalgaduras, e pelo pouco que aparecia, que ressurgia, pediam um preço de esfolar, embora o matuto fosse vender o mesmo gênero mais barato na primeira feira onde arriasse o comboio.

Margarida erguera-se também cedo para tornar o dia longo, no gozo do inverno, como se o berrar das vacas no curral fosse para ela uma novidade, como se o perfume do mato verde pela primeira vez lhe acordasse os desejos. Tocou ainda com escuro ao banho no rio, que já estava baixando. Ao voltar tomou o café, e seguiu para ver tirar-se o leite.

Não parecia contar já os seus trinta e cinco anos de idade. Os cabelos, tinha-os de um castanho encrespado, e a pele lisa, e uma destra facilidade de movimentos, com umas risadas que pareciam ecoar pelos serrotes peludos de frondagem. Segundo o uso do tempo, ia de saia e cabeção; o ar morno da manhã de inverno circundava-lhe o colo e braços nus; e trazia ao pescoço enfiado um rosário de ouro. Sem meias, calçava em casa os seus chinelos de bezerro nonato, com debruns vermelhos; mas para o campo usava tamancos com rosto de pano grosso.

Subiu pelos paus da porteira, endiabrada que sempre foi, como por escada de pedreiro, e foi sentar-se em cima, no grosso pranchão que liga os moirões à guisa de padieira de porta. Belo panorama! O lado para onde ficava o rio distinguia-se por uma faixa verde-negra, que principiava e acabava com o horizonte. Daí, via-se de quando em quando passar um branco vôo de garças. O mato encobria tudo, a vedar como que os pudores da terra fecundada. Lá, em um ponto, um rochedo alvejado pela umidade, ao sol, abria uma clareira. Acolá ficava tal serra, ali tais campos. Em tal parte estava chovendo...

Onde estava o novilho rajado, o Muniz? A vaca Peito Duro não veio ao curral?

— Inhora, não. Mó de que esta noite uvi o novio gaitá pra Lagoa? Respondia o vaqueiro, falando muito alto, como eles costumam.

Uma crioula adiantava-se agora do meio das vacas, e apresentava à senhora uma cuia de leite espumoso.

— Eu quero é capucho, Luísa.

E gritou:

— Compadre, despeje esta cuia no pote, e me mande um capucho!

Dizendo isto, foi voltando novamente o olhar para o pátio. Dando com um cavaleiro, que se aproximava, acrescentou à surdina:

— Ó compadre, quem é aquele que vem ali?

O vaqueiro pôs-se nas pontas dos pés:

— Não sei, Inhora, não... Mas mode coisa que é gente de Pernambuco?

Margarida, que a princípio julgava ser algum conhecido, ficou contrariada.

Era tarde para descer da porteira, porque o homem, tendo vindo pelo canto do cercado, aparecera de supetão.

Diante dos vaqueiros e dos escravos, Guida não fazia cerimônias; mas, vendo encaminhar-se um cavaleiro de certa ordem, ficou sobremodo acanhada. E não podendo descer, que ele já estava, a bem dizer, a dois passos, nem ficar, que era impróprio, teve logo um sentimento de revolta contra quem quer que fosse o homem que assim a colocava em situação difícil.

— Deus dê bom-dia... balbuciou o desconhecido.

— Bom-dia, murmurou ela com uma cara não sei de quê, passando ao mesmo tempo um rápido olhar analisador no tipo, no seu arrieiro e nas três cargas que o acompanhavam. Havia de ser pessoa de categoria... Algum moço que ia tomar ares... Mas a sua aparência... e com três cargas de baús...

— A Senhora tenha a bondade de desculpar-me... Titubeou o mancebo, reparando no rosário de ouro. - Com certeza não era senão alguma rica e extravagante fazendeira, pensava, das não muito raras no Ceará, alguma Feitosa... Ai não embirrasse com ele! E o marido mandaria ali mesmo tirar-lhe o couro!

— Esta fazenda, minha Senhora, pertencerá por acaso...

— Vosmicê faça o favor de seguir ali até a casa, que lá lhe responderão tudo, atalhou a Senhora, achando felizmente um meio polido de afastar aquela presença importuna. - Luísa, acompanhe este moço.

O viajante fez uma reverência, tirando o chapéu e tocou para lá.

— Compadre - virou-se ela para o vaqueiro, quando o moço se afastou, - vá lá, e veja o que ele quer: mande apear, sirva do que for preciso, que parece até ser pessoa de civilidade...

Aproveitando o ensejo de dar-lhe as costas o cavaleiro, ela desceu apressadamente, fez uma grande volta, por um velho chiqueiro de criação, a fim de recolher-se pela cozinha. E não tomou a cuia de espuma de leite.