O Lulu Venâncio estava na terra, muito em segredo. Guida mandara buscá-lo ao Riacho do Sangue, enquanto o demo esfrega um olho. Chegara de noite ao Poço.
A matrona foi logo dizendo:
— Lulu, mandei-o chamar para um serviço importante.
O rapaz, entressorrindo e meio acanhado:
— Seá Dona, Vosmicê bem sabe que pra Vosmicê eu não me arrecuso pra serviço ninhum. Eu cá estou acostumado a servir aos meus protetores.
Guida havia tocado, anteriormente, para o mesmo mister que queria confiar ao Venâncio, a dois sujeitos avezados ao uso da faca e do clavinote, o João Grosso e o Caetano; mas o primeiro se acurvou com uma dor de uma banda, que sofria há tempos e lhe tirara a destreza, e o segundo foi logo dizendo francamente que o homem não saía da vila, tinha o mundo inteiro a favor, que ela mandatária estava debaixo, que por tudo isto o negócio não era nada seguro, e não era o filho de seu pai que pisasse em ramo verde.
Guida esperava, pois, tudo do Lulu, e empregaria a maior habilidade. Não foi preciso muito. Quando ela trouxe lá de dentro, na bainha escastoada de prata, um rico punhal antigo, que pertencera ao fundador do Poço da Moita, e o depôs nas mãos do criminoso, disse estas palavras:
— Dê cabo de mim ou dele: um de nós deve desaparecer!
O cangaceiro, sorrindo, recebeu a arma, que desembainhou, mirou como quem lê, admirou, e deu palavra:
— Suas ordens serão cumpridas, Seá Dona Guidinha!
Lulu Venâncio era ainda novo, meio branco, bem feito de corpo.
Tinha um olho perdido e era quase imberbe. Botava à banda o chapéu de couro e então parecia bem um galo de briga.
Nessa mesma noite seguiu para a vila montando em bom cavalo, tinindo-lhe no bolso alguns patacões. Arranchou-se secretamente em casa da Aninha Balaio.
A Aninha:
— Que é isso, menino? Andarás agora perseguido da Justiça? Inquanto o cumpade Jom Perera fô delegado, tu não vai preso. Mas o Juiz de Dereito disse, em falando em ti, que era mio tu te apresenta po júri, que tu era absolvido por força...
— Eu não ando perseguido, mas... na verdade venho conversa com Seu Jom Perera pra vê qui conselho ele me dá - inventou o Lulu.
— É mió tu te apresentá...
Passou o dia. À noite saiu ele, dizendo ir ter com João Pereira, mas de fato ia certeiro à morada do Quim.
Tocaiou, cocou, e às 10 horas, bem escuro, se achou a sós com a designada vítima, que atravessava a praça da Matriz, vindo do jogo em casa do Dr. Montezuma.
Lulu desembainhou o punhal, e sem que o Quim o pressentisse, três vezes levantou o braço para avançar e cravar a arma no outro, pelas costas. Um sobrosso possuía-o toda vez que fazia menção de apunhalar, e gelava-se-lhe como que o sangue no pulso... Representava-se-lhe imediatamente a boca da ferida que ia fazer, o romper do ferro pelas carnes dentro, o coração rasgado de um talho... O pobre homem, que não lhe fizera nada, estrebuxando no chão, murmurando em voz sumida que o tinham matado, e ele escorregando pela noite, a fugir como um cabra...
— Que há entre mim e este home? Terá ele consigo alguma reza? - disse, metendo o ferro na bainha.
E retirou-se apreensivo para a casa da Balaio. Chegou inventando que não tinha achado brecha para falar com Seu João Pereira... Caiporismo dos diabos!
Passou a noite virando-se na rede de um lado para o outro. Abodegavam-lhe pelos ouvidos os chocalhos dos cavalos no cercado.
Pela madrugada sempre adormeceu.
Sol alto, acordou pela soada da Aninha com os camboieiros, na bodega. Sentou-se rápido. Procurou reunir os desencontrados pensamentos que lhe haviam roubado o sono... Ele, era exato, desde novinho ganhara fama de valentão... Tinha dado e apanhado muitas vezes. Dera facadas, cacetadas, bofetes... Mas (e descobria isto com alegre surpresa) nunca havia atacado ninguém a sangue-frio! Ferro e sangue, mas ali, em cima das buxas.
Ultimamente mandara a mulher para a melhor, mas como? Que home macho não faria o próprio? Ah, ele não era um assassino, não tinha natureza para isso! Aí está porque havia repugnado liquidar o Major! Seu olhar umedeceu-se. Entretanto, vivia tendo-se como tal, no cangaço, de um mandão dos matos, pagando com suor de escravo o couto que lhe oferecia o tirano. Teve um assomo viril. Diziam todos que seria absolvido no júri, pois seu crime fora pela sua honra. O júri nunca havia condenado em casos desses...
Quando a Aninha entrou, disse-lhe ele:
— Tomo seu conselho, tia Aninha. Vou entregar-me à Justiça...
— Hem? É o que já devia você ter feito, há que tempo! A esta hora já estaria livre...
— Vosmicê, já uviu, tia Aninha? mande entregá o cavalo em que eu vim, cos arreios, à Seá Dona Guidinha, e dizê a ela que fica o dito pelo não dito.
— Dito por não dito de quê?
— Não é nada... É que eu tinha ficado de passá lá... pra levá suas cartas... Ah, sim! Tem também Três patacões que eu devo a ela, estão aqui. Tem mais isto...
— O quê? Que é isto? Para que era este punhal?
— Era para minha defesa... Aquilo é uma santa senhora. Quando portege, portege!
E assim foi que o Lulu deu conta de sua missão. A Guida ficou pelos cabelos:
— Ah! Cabra cobarde, ruim, miserável! Não sei para que aquilo veste ceroula!
O portador foi o Silveira, que viera decretado à vila após o Lulu, para assuntar, mandado pela ama. E, vendo o furor desta contra o outro:
— Cumade, disse, estou cage li dizendo qui discanse seu coração, que seu caba véio dá conta do recado...
A Guida, com um assomo infantil:
— Se você for capaz, cumpadre, escolha uma das fazendas para si, a que quiser.
— Eu mesmo não vou não, cumade, que já tou munto mole pra estas cavalarias, mas porém tenho um discipo...
— Quem será?
— Quem? O Naiú! A Cumade não sabe quem está ali naquele molecão! Aquilo pra um Cabelera só falta principiar...
E ficou combinado.