III

O imperador Guilherme

 

«Lui, toujours lui!... — Elle, sempre elle!...» — Assim, no tempo das Vozes interiores, clamava Victor Hugo, cançado, quasi estafado de que ao seu espirito de poeta, que tantos problemas divinos e humanos solicitavam, se impuzesse ainda com imperiosa insistencia, monopolisando os pensamentos melhores e os melhores alexandrinos, a imagem atravancadora de Napoleão, o Grande. Nós hoje tambem podemos murmurar com impaciencia: «Lui, toujours lui!... Elle, sempre elle!» — perante esse outro imperador que ainda não venceu a batalha de Marengo, nem a de Austerlitz, e que todavia, em meio de todos os problemas sociaes, moraes, religiosos, politicos e economicos que nos devoram, tão estranha e ruidosa expansão dá á sua individualidade e tão confiadamente a arremessa atravez dos nossos destinos, que elle proprio se tornou um Problema Europeu — e occupa tanto o nosso pensamento como o socialismo, a evolução religiosa ou a crise capitalista! Talvez mais — porque até o proprio snr. Renan, cuja alma, pelo exercicio constante do scepticismo, ganhou a impermeabilidade e a dôce indifferença de uma cortiça, para quem toda a vaga é embaladora e bôa, declara, na sua derradeira epistola aos incredulos, que só lhe pesa morrer (e pelas suas confissões bem sabemos quanto a vida lhe corre deliciosa e perfeita!) por não poder assistir ao desenvolvimento final da personalidade do imperador da Allemanha!

Com effeito, desde que subiu ao throno, Guilherme II, imperador e rei, ainda não deixou de attrahir e reter sobre si a curiosidade do mundo, uma curiosidade divertida e arregalada de publico que espera surpresas e lances — como se esse throno da Allemanha fôsse na realidade um palco vistosamente ornado, no centro da Europa. E esta é até agora a obra pittoresca de Guilherme II — o ter convertido — o throno dos Hohenzollerns n’um palco onde elle constantemente e soberbamente se exhibe, com caracterisações inesperadas. Bem póde, pois, o sentimental heresiarcha da Vida de Jesus lamentar que a morte lhe não consinta assistir, no quinto acto, á solução d’este imperador problematico! Pois que, por ora, n’este primeiro acto de tres annos, desde que elle trilha o seu palco imperial, Guilherme II, pela diversidade e multiplicidade das suas manifestações, só tem revelado que existem n’elle, como outr’ora em Hamlet, os germens de homens varios, sem que possamos preconceber qual d’elles prevalecerá, e se esse, quando definitivamente desabrochado, nos espantará pela sua grandeza ou pela sua vulgaridade. Realmente, n’este rei, quantas encarnações da realeza!

Um dia é o Rei-Militar, rigidamente hirto sob o casco e a couraça, occupado sómente de revistas e manobras, collocando um render-da-guarda acima de todos os negocios de estado, considerando o sargento-instructor como a unidade fundamental da nação, antepondo a disciplina do quartel a toda a lei Moral ou da Natureza, e concentrando a gloria da Allemanha na mechanica precisão com que marcham os seus galuchos. E subitamente despe a farda, enverga a blusa, e é o Rei-Reformador, só attento ás questões do capital e do salario, convocando com fervor congressos sociaes, reclamando a direcção de todos os melhoramentos humanos, e decidindo penetrar na historia abraçado a um operario como a um irmão que libertou. E logo a seguir, bruscamente, é o Rei-de-Direito-Divino, á Carlos V ou á Phillippe-Augusto, apoiando altivamente o seu sceptro gothico sobre o dorso do seu povo, estabelecendo como norma de todo o governo o sic volo, sic jubeo, reduzindo a Summa Lei á vontade do Rei e, certo da sua infallibilidade, sacudindo desdenhosamente para além das fronteiras todos os que n’ella não creem com devoção. O mundo pasma, — e, de repente, elle é o Rei de Côrte, mundano e faustoso, attento meramente ao brilho e ordem sumptuosa da Etiqueta, regulando as galas e as mascaradas, decretando a fórma do penteado das damas, condecorando com a Ordem da Corôa os officiaes que melhor valsam nos cotillons, e querendo volver Berlim n’um Versailles d’onde emane o preceito supremo do cerimonial e do gosto. O mundo sorri — e repentinamente é o Rei-Moderno, o Rei-Seculo-Dezenove, tratando de caturra o Passado, expulsando da educação as humanidades e as lettras classicas, determinando crear pelo parlamentarismo a maior somma de civilisação material e industrial, considerando a fabrica como o mais alto dos templos, e sonhando uma Allemanha movida toda pela electricidade...

Depois, por vezes, desce do seu palco — quero dizer, do seu throno — e viaja, dá representações atravez das cortes estrangeiras. E ahi, desembaraçado da magestade imperial, que em Berlim imprime a todas as suas figurações um caracter imperial, apparece livremente sob as fórmas mais interessantes que póde revestir nas sociedades o homem de imaginação. A caminho de Constantinopla, singrando os Dardanellos, na sua frota, é o artista que em telegramma ao chancelier do império (em que assigna Imperator Rex) pinta, n’uma fórma carregada de romantismo e côr, o azul dos céus orientaes, a doçura languida das costas da Asia. No Norte, nos mares scandinavos, entre os austeros fjords da Noruega, ao rumor das aguas degeladas que rolam por entre a penumbra dos abetos, é o Mystico, e prega sermões sobre o seu tombadilho, provando a inanidade das cousas humanas, aconselhando ás almas, como unica realidade fecunda, a communhão com o Eterno! Voltando da Russia é o alegre Estudante, como nos bons tempos de Bonn, e da fronteira escreve para S. Petersburgo ao marechal do Palacio uma carta em verso, fantasistamente rimada, a agradecer o kaviar e os sandwichs de foie-gras, collocados no seu wagon como provido farnel de jornada. Em Inglaterra está em um luxuoso centro de sociabilidade, e é o Dandy, com os dedos faiscantes de anneis, um cravo enorme na sobrecasaca clara, borboleteando e flirtando com a veia soberba de um D’Orsay!... — E subitamente, em Berlim, por alta noite, as cornetas soltam asperos toques de alarme, todos os fios da Agencia Havas estremecem, a Europa assustada corre ás gazetas, e um rumor passa, temeroso, de que «haverá guerra na primavra»! Que foi? No es nada, como se canta, no Pan e Toros. É apenas Guilherme II que resubiu ao seu palco — quero dizer, ao seu throno.

O mundo perplexo murmura: — «Quem é este homem tão vario e multiplo? O que haverá, o que germinará dentro d’aquella cabeça regulamentar de official bem penteado?» E o snr. Renan geme por morrer talvez antes de assistir, como philosopho, ao desenvolvimento completo d’esta ondeante personalidade! Assim Guilherme II se tomou um problema contemporaneo, — e ha sobre elle theorias, como sobre o magnetismo, a influenza ou o planeta Marte. Uns dizem que elle é simplesmente um moço desesperadamente sedento da fama que dão as gazetas (como Alexandre o Grande que, em risco de se afogar, já suffocado, pensava no que diriam os Athenienses) e que, mirando á publicidade, prepara as suas originalidades com o methodo, a paciencia e a arte espectacular com que Sarah Bernhardt compõe as suas toilettes. Outros sustentam que ha n’elle apenas um fantasista em desequilibrio, arrebatado estonteadamente por todos os impulsos de uma imaginação morbida, e que, por isso mesmo que é imperador quasi omnipotente, exhibe soltamente, sem que uma resistencia vigilante lh’os cohiba e lh’os limite, todos os desregramentos da fantasia. Outros, por fim, pretendem que elle é apenas um Hohenzollern em que se sommaram e conjunctamente affloraram com immenso apparato todas as qualidades de cesarismo, mysticismo, sargentismo, bureaucratismo e voluntarismo, que alternadamente caracterisavam os reis successivos d’esta felicissima raça de fidalgotes do Brandeburgo...

Talvez cada uma d’estas theorias, como succede felizmente com todas as theorias, contenha uma parcella de verdade. Mas eu antes penso que o imperador Guilherme é simplesmente um dilettante da acção — quero dizer, um homem que ama fortemente a acção, comprehende e sente com superior intensidade os prazeres infinitos que ella offerece, e a deseja portanto experimentar e gosar em todas as fórmas permissiveis da nossa civilisação. Os dillettante são-n’o geralmente de idéas ou de emoções — porque para comprehender todas as ideias ou sentir todas as emoções basta exercer o pensamento ou exercer o sentimento, e todos nós, mortaes, podemos, sem que nenhum obstaculo nos coarcte, mover-nos liberrimamente nos illimitados campos do raciocinio ou da sensibilidade. Eu posso ser um perfeito dillettante de ideias, modestamente fechado, com os meus livros, na minha bibliotheca: — mas se tentasse ser um dillettante da Acção, nas suas expressões mais altas, commandar um exercito, reformar uma sociedade, edificar cidades, teria de possuir, não uma livraria, mas um imperio submisso. Guilherme II possue esse imperio; e hoje que se libertou da dura superintendencia do velho Bismarck, póde abandonar-se ao seu insaciavel dilettantismo da Acção, com a licença «com que o corsel novo (como diz a Biblia), galopa no deserto mudo». Quer elle o goso de commandar vastas massas de soldados, ou de sulcar os mares n’uma frota de ferro? Tem só de lançar um telegramma, fazer resoar um clarim. Quer elle a delicia de transformar, nas suas mãos potentes, todo um organismo social? Tem só de annunciar: «Esta é a minha idéa» — e lentamente a seus pés começará a surgir um mundo novo.

Tudo póde, porque governa dous milhões de soldados, e um povo que só zela a sua liberdade nos dominios da philosophia, da éthica ou da exegese, e que quando o seu imperador lhe ordena que marche — emmudece e marcha.

E tudo póde ainda porque inabalavelmente acredita que Deus está com elle, o inspira e sancciona o seu poder.


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E é isto o que torna, para nós, prodigiosamente interessante o imperador da Allemanha: — é que, com elle, nós temos hoje n’este philosophico seculo, entre nós, um homem, um mortal, que mais que nenhum outro iniciado, ou propheta, ou santo, se diz, e parece ser, o intimo e o alliado de Deus! O mundo não tornára a presencear, desde Moysés no Sinai, uma tal intimidade e uma tal alliança entre a Creatura e o Creador. Todo o reinado de Guilherme II nos apparece, assim, como uma resurreição inesperada do mosaïsmo do Pentatheuco. Elle é o dilecto de Deus, o eleito que conferencia com Deus na sarça ardente do Schloss de Berlim, e que por instigação de Deus vae conduzindo o seu povo ás felicidades de Canaan. É verdadeiramente Moysés II! Como Moysés, de resto, elle não se cança de affirmar estridentemente, e cada dia, para que ninguem a ignore, e por ignorancia a contrarie, esta sua ligação espiritual e temporal com Deus, que o torna infallivel, e portanto irresistivel. Em cada assembleia, em cada banquete em que discursa (e Guilherme é de todos os reis contemporaneos o mais verboso) lá vem logo, á maneira de um mandamento, esta affirmação pontificial de que Deus está junto d’elle, quasi visivel na sua longa tunica azul dos tempos de Abrahão, para em tudo o ajudar e o servir com a força d’esse tremendo braço que póde sacudir, atravez dos espaços, os astros e os sóes, como um pó importuno. E a certeza, o habito d’esta sobrenatural alliança vae n’elle crescendo tanto que de cada vez allude a Deus em termos de maior igualdade — como alludiria a Francisco d’Austria, ou a Humberto, rei de Italia. Outr’ora ainda o denominava, com reverencia, o Amo que está nos céus, o Muito alto que tudo manda. Ultimamente porém, arengando com champagne aos seus vassalos da Marca Brandeburgo, já chama familiarmente a Deus — o meu velho alliado! E aqui temos Guilherme e Deus, como uma nova firma social, para administrar o Universo. Pouco a pouco mesmo, talvez Deus desappareça da firma e da taboleta, como socio subalterno que entrou apenas com o capital da luz, da terra e dos homens, e que não trabalha, ocioso no seu infinito, deixando a Guilherme a gerencia do vasto negocio terrestre: — e teremos então apenas Guilherme e Cia. Guilherme, com supremos poderes, fará todas as operações humanas. E «companhia» será a fórmula condescendente e vaga com que a Alemanha de Guilherme II designará Aquelle para quem todavia, segundo crêmos, — Guilherme II e a Allemanha toda são tanto, ou tão pouco, como o pardal que n’este instante chalra no meu telhado!

Um magnifico e insaciavel desejo de gosar e experimentar todas as fórmas da Acção, com a soberana segurança que Deus lhe garante e promove o exito triumphal de cada emprehendimento — eis o que me parece explicar a conducta d’este imperador mysterioso. Ora, se elle dirigisse um imperio situado nos confins da Asia, ou se não possuisse na Torre Julia um thesouro de guerra para manter e armar dous milhões de soldados, ou se estivesse cercado por uma opinião publica tão activa e coercitiva como a da Inglaterra, Guilherme II seria apenas um imperador, como tantos, na historia, curioso pela mobilidade da sua fantasia, e pela illusão do seu messianismo. Mas, infelizmente, plantado no centro da Europa trabalhadora, com centenares de legiões disciplinadas, um povo de cidadãos disciplinados tambem e submissos como soldados — Guilherme II é o mais perigoso dos reis, porque falta ainda ao seu dilettantismo experimentar a fórma da Acção mais seductora para um rei — a guerra e as suas glorias. E bem póde succeder que a Europa um dia acorde ao fragor de exercitos que se entrechocam — só porque na alma do grande dilettante o fogoso appetite de «conhecer a guerra», de gosar a guerra sobrepujou a razão, os conselhos e a piedade da patria. Ainda ha pouco, de resto, elle assim o promettia aos seus fieis solarengos do Brandeburgo: — «Levar-vos-hei a bellos e gloriosos destinos». Quaes? A varias batalhas de certo, onde triumpharão as Aguias germanicas... Guilherme II não o duvida — pois que tem por alliado, além de alguns reis menores, o Rei Supremo do Céu e da Terra, combatendo entre a Landwehr allemã, como outr’ora Minerva Athenea, armada da sua lança, combatia contra os barbaros em meio da phalange grega.

Esta certeza da alliança divina!... Nada póde dar mais força a um homem, na verdade, que uma tal certeza, que quasi o divinisa. Mas, tambem, a que riscos ella arrasta! Porque nada póde fazer tombar mais fundamente um homem do que a evidencia, perante a crua contradição dos factos, de que essa certeza era apenas a chimera d’uma desordenada fatuidade. Então verdadeiramente se realisa a quéda biblica do alto dos céus. Houve um povo que se proclamava ortr’ora o Eleito de Deus — mas apenas se provou que Deus não o elegera, nem o preferia a outro, por isso que o abandonava desdenhosamente — foi desmantelado com incomparavel furor, disperso e apedrejado por todos os caminhos do mundo, e encurralado em Ghettos, onde os reis lhe estampavam sobre a casa e sobre a campa uma marca como a que se estampa sobre a moeda falsa.

Guilherme II corre este lugubre perigo de cahir nas Gemonias. Elle assume hoje, temerariamente, responsabilidades que, em todas as nações, estão repartidas pelos corpos de Estado — e só elle julga, só elle executa porque é a elle, e não ao seu ministerio, ao seu conselho, ao seu parlamento, que Deus, o Deus de Hohenzollern, communica a inspiração transcendente.

Tem, portanto, de ser infallivel e de ser invencivel. No primeiro desastre, ou lhe seja infligido pela sua burguezia ou pela sua plebe nas ruas de Berlim, ou lhe seja trazido por exercitos alheios n’uma planicie da Europa, a Allemanha immediatamente concluirá que a sua tão annunciada alliança com Deus era uma impostura de despota manhoso.

E não haverá, então, da Lorena á Pomerania, pedras bastantes para lapidar o Moysés fraudulento! Guilherme II está na verdade jogando contra o destino esses terriveis dados de ferro, a que alludia outr’ora o esquecido Bismarck. Se ganha dentro e fóra da fronteira, poderá ter altares como teve Augusto (e de facto tambem Tiberio). Se perde, é o exilio, o tradicional exilio em Inglaterra, o cabisbaixo exilio, esse exilio que elle hoje tão duramente intima áquelles que discrepam da sua infallibilidade.

E não se mostraram já os prenuncios vagos do desastre? O grande imperador, ha dias, recebeu apupos nas ruas de Berlim. As plebes desconfiam de Guilherme e do seu Deus. E (signal temeroso) os pensadores e os philosophos que foram sempre, na muito intellectual Allemanha, os formidaveis esteios do despotismo militar dos Hohenzollerns, começam a amuar com o throno, e a retroceder, pelos caminhos vagarosos do liberalismo, para o povo e para a justiça social de que elle tem a consciencia ainda tumultuosa, mas exacta. Onde estão os tempos em que Hegel considerava a autocracia prussiana quasi como uma parte integrante da sua philosophia e da ordem do Universo? Onde estão as admirações de Herbat pelo «Estado concentrado no Soberano?» Onde estão esses altos entendimentos ensinando nas universidades que a summa da sapiencia politica na Prussia era — Deus salve o Rei? Onde estão esses louvores ao direito divino dos Hohenzollerns, cantados por Strauss, por Mommsen, por Von Sypel? Tudo passou! A metaphysica rosna descontente. Das duas grossas pedras angulares da monarchia prussiana, o philosopho e o soldado, Guilherme II hoje só tem o soldado: — e o throno, sobrecarregado com o imperador e o seu Deus, pende todo para um lado, que é talvez o do abysmo...

Conseguirá o philosopho persuadir o soldado a sacudir, por seu turno, o peso sob que geme, é mesmo sob que sangra, se são veridicas as accusações do principe Jorge de Saxe? O soldado sáe do povo, e sabe lêr. E se, como a Allemanha toda affirmou, foi o mestre-escola quem venceu em Sadowa e em Sedan — é talvez elle ainda, com o seu novo livro e a sua nova ferula, que vencerá em Berlim.

O snr. Renan tem, pois, razão, grandemente: e, nada mais attractivo, n’este momento do seculo, do que assistir á solução final de Guilherme II. Dentro em annos, com effeito (que Deus faça bem lentos e bem longos) este moço ardente, imaginativo, sympathico, de coração sincero, e talvez heroico, póde bem estar, com tranquilla magestade, no seu Schloss de Berlim gerindo os destinos da Europa, ou póde estar, melancolicamente, no Hotel Metropole em Londres, desempacotando da maleta do exilio a dupla corôa amolgada da Allemanha e da Prussia.