IV
O Grand-Prix — A estatuomania — Os cocheiros —Victor Hugo — O campo em Pariz
Na semana passada o Grand Prix — que é a solemnidade official do sport, do jogo e das toilettes. Todos estes elementos estiveram magnificamente representados na planicie de Longchamps, sob um sol mais severo que o de Java. Os cavallos eram tão bons que o vencedor, um cavallo francez com o nome de um heroe hungaro, venceu apenas por uma quarta parte do focinho. As apostas elevaram-se a mais de seis milhões. E havia toilettes portentosas, entre as quaes unn vestido negro, todo ornado de crysanthemos brancos.
A tribuna republicana do presidente estava salpicada de sangue real: a rainha-mãe de Portugal, D. Maria Pia; a duqueza d’Aosta, cunhada do rei de Italia, uma mulher esplendida, que parece uma Venus de Millo mettida dentro de um vestido da Laferriere, e que seria realmente digna da Grecia se não fosse um não sei que de japonez nos olhos obliquos; e depois um principe indio, o Mararajah de Lhaore, infelizmente de sobrecasaca preta e sem diamantes. (Que diriam a esta sobria sobrecasaca os seus rutilantes avós, que já reinavam muitos seculos antes de Christo?)
O calor era horrifico. Á noite, no Jardim de Paris, houve, sob as arvores e os bicos de gaz, a orgia tradicional. Toda a mocidade estava brilhantemente borracha, sicut licet. A unica innovação foi a troca geral de chapéos: os homens tinham coroada as cabeças, frisadas ou calvas, com os floridos e emplumados chapéos das mulheres; e ellas, as dôces creaturas, arvoraram todas chapéos altos. Este modesto delirio não deve fazer suppôr que Pariz perdesse a seriedade.
Nunca existiu cidade mais grave do que Roma (a verdadeira, a romana). Pois no dia das Saturnaes, que era uma especie de Grand Prix, os cidadãos mais circumspectos, mesmo magistrados, bailavam nas praças, de toga arregaçada: — e o austero Catão apparecia no senado com um grande nariz postiço.
N’esta semana festiva não ha politica. Os ministros andam todos pelas provindas, fazendo inaugurações e discursos. Um americano, muito engenhoso, já affirmou que o que caracterisava a civilisação franceza era ser uma civilisação completa, acabada, com todos os pontos sobre todos os ii. O conceito é agudo e brilhante. Mas não parece verdadeiro; porque cada semana, atravez da França, se inaugura alguma cousa que faltava — uma estrada, um aqueducto, um porto, um pharol. Sobretudo, estatuas de grandes homens. A França não acaba realmente de fundir em bronze todos os seus benemeritos.
Desde 1875, o anno em que começou a estabilidade republicana, cada mez, — que digo eu? cada semana! — se desvenda algures uma estatua d’alguem, entre discursos, tambores e champagne. Já lá vão quasi vinte annos d’este fervente trabalho, e ainda ha todavia genios que não têm estatua. Em compensação, ha outros que têm duas, como um certo Guerin de quem fallava recentemente Julio Simon. Digo um certo Guerin, porque eu não lhe conhecia a existencia antes d’essa allusão de Julio Simon, que foi o inaugurador dos dois monumentos, um em Pontivy, outro em Nantes. De resto, talvez Guerin seja amplamente merecedor de campear assim em duas praças, sobre dois pedestaes de granito. Ha ahi alguem que saiba quem é Guerin? Em França, para que um grande homem consiga estatua é essencial, sobretudo, que tivesse deixado um filho com influencia na politica ou na sociedade. Dumas, pae, arranjou o seu monumento da praça Malesherbes, menos por causa de D’Artagnan que por causa de Dumas, filho. E Balzac, como não deixou filho, ainda não tem estatua. Nem Chateaubriand. Nem Victor Hugo. Quem tem já duas é Guerin.
Não sei se fallei já do calor. Está asphyxiante. E o que o torna mais duro de atravessar é a grève dos cocheiros. Pariz está sem tipoias — o que é, sobretudo n’este momento, como o deserto sem camelos. Se n’esta super-civilisada cidade o serviço dos omnibus ou dos bonds fôsse facil, exacto e rapido, a falta de carruagens não causaria desgostos — e seria mesmo uma salutar instigação á economia. Mas o omnibus e o bond, em Pariz, são instituições rudimentares. É mais facil para um pariziense entrar no céu do que n’um omnibus. Para obter o logar na bemaventurança basta, segundo affirmam todos os santos padres, ter caridade e humildade. Para obter o logar do omnibus estas duas grandes virtudes são inuteis e, mesmo, contraproducentes. Antes o egoismo e a violencia. Depois de conquistar o logar, a outra difficuldade insuperavel é sahir d’elle — por aquelle meio natural e logico que consiste em chegar e apear. Nunca se chega — senão quando já é desnecessario. Eu e um amigo partimos um dia da gare d’Orleans, á mesma hora; eu no comboio para Portugal, elle no omnibus para o Arc de L’Étoile. Quando eu cheguei a Madrid soube, por um telegramma, que o meu amigo ia ainda na Praça da Concordia. Mas ia bem. O omnibus em Pariz é o grande refugio e o local do namoro. Quanto mais comprida a jornada, mais demorado portanto o encanto. O meu amigo encontrára no seu omnibus a creatura dos seus sonhos. Era uma loura com sardas promettedoras. Quando, emfim, chegaram ao Arco da Estrella estavam noivos — ou peior. São estas pequenas commodidades da vida sentimental que conservam a freguesia aos omnibus.
Uma das causas, ou antes a causa da grève é que os cocheiros querem ser funccionarios publicos. Nem mais, nem menos. A sua pretenção é que a municipalidade de Pariz se torne proprietaria das tipoias de praça e que elles passem, portanto, a ser empregados municipaes, com ordenado e aposentação. Cada carruagem constituirá assim uma verdadeira repartição de que o cocheiro será, a todos os respeitos, o director geral. Não sei o que o publico lucraria em se ligarem todos os carros ao carro central do Estado. O funccionario francez é um sujeito tremendamente impertigado. O cocheiro de Pariz já é horrivelmente impertinente. O que será quando fizer parte da administração? Accresce que a famosa administração franceza envolve e embaraça todos os actos da vida do cidadão com formalidades innumeraveis. É peior que a administração chineza — e menos pittoresca. Basta lembrar que quem queira canalisar gaz para sua casa tem de implorar licenças successivas a vinte auctoridades successivas — entre as quaes o ministro do interior! É pois quasi certo que, quando os serviços dos trens de praça passarem para o Estado, o cidadão que aspire a occupar um d’esses trens publicos terá de metter préviamente requerimento, e em papel sellado! O cocheiro, por outro lado, ha-de querer manter o seu direito de deferir ou indeferir. Estou pois já vendo, n’um dia de dezembro, uma familia á hora do theatro, com os pés na lama, apresentando humildemente a um cocheiro a sua petição para occupar a tipoia — e o digno funccionario, com as rédeas embrulhadas no braço, depois de percorrer o documento, respondendo com superioridade: Indeferido, por causa da distancia e do mau tempo!
Não sei porque, fallando de omnibus, me lembro de Victor Hugo. De certo porque o divino poeta gostava de percorrer a seu Pariz, meditando e compondo versos, no alto desses pachorrentos vehiculos.
Victor Hugo publicou este mez mais um volume — Toute la Lyre. Como o Cid, que ainda vencia batalhas depois de morto, Hugo cada anno atira de dentro do seu sepulchro um radiante e victorioso poema. A proposito d’este, de novo se discutiu se estas publicações posthumas de versos, que elle em vida atirava para o canto, augmentam realmente a gloria poetica de Hugo. Discussão ociosa. De certo não augmentam a sua gloria. Essa já está estabelecida e fixa, no seu maximo esplendor, com as Contemplations, a Légende des Siècles e os Châtiments. Mas augmentam o nosso conhecimento do poeta, revelando novos pensamentos, novas emoções ou fórmas differentes no exprimir as emoções e os pensamentos que lhe eram habituaes. Victor Hugo era um grande espirito que sentia e pensava em verso. Cada verso novo, que nos é desvendado, constitue pois um documento novo sobre o poeta — sobre a sua visão espiritual ou sobre o seu verbo lyrico. Ora quantos mais documentos se reunem sobre um homem de genio como Hugo, mais completo se torna o trabalho critico sobre a sua individualidade e sobre a sua obra. Para alargar e completar o conhecimento dos grandes homens, publicam-se-lhe as cartas, todos os papeis intimos — até as contas do alfaiate. Assim se tem feito para Lamartine, para Balzac, etc.
Ainda ha pouco foi estabelecido, e provado com documentos, o numero, de pares de meias de sêda que Napoleão usava cada anno. Eram 365. Ninguem se queixou. Foi um detalhe historico, geralmente apreciado. Ora se, para proveito da historia, se põem assim á mostra as piugas d’um grande homem de guerra, que tem iguaes — é bem justificado que se publiquem os versos, todos os versos, ainda os menos interessantes, d’um poeta que, sem contestação, é o maior de todos, em todos os seculos.
A moda, ou antes aquelles que a fazem, acaba de tomar uma resolução sapientissima. Pariz, d’ora em deante, fica sendo considerado, durante os mezes de verão, para todos os effeitos sociaes, como campo e não como cidade. É permittido, portanto, passear, fazer visitas, ir ao theatro, etc., de chapéo de palha, jaquetão claro e botas brancas. Nada mais justo. Era com effeito absurdo que Pariz nos servisse 30 graus á sombra — e que os parizienses continuassem a soffrer a tyrannia da sobrecasaca apertada e do duro chapéo alto. A moda, mesmo, deveria ir mais longe e permittir a tanga. O vestuario foi inventado por causa da temperatura, e deve, portanto, variar com ella harmonicamente. A neve pede pelles, pelles supplementares, arrancadas a animaes. O sol do Senegal ou de Pariz em julho, só pede a propria pelle — sem mais nada, além de uma folha de vinha. Esta seria a logica das cousas. A moda não ousou ser tão radical — e foi só até á palha e á alpaca.
Mas é um primeiro passo no bom senso. Para o anno, talvez nos seja permittido o ir á Opera, como deveriamos, em mangas de camisa. Ahi no Rio, segundo me affirmam, mesmo no verão, se anda de sobrecasaca de panno. É um lamentavel excesso de decoro social. Ainda se comprehendia no tempo do imperio, quando a constante sobrecasaca preta do imperador dominava nas instituições, e portanto determinava os costumes. Hoje a republica devia apagar esse verdadeiro vestigio do velho regimen, e derrubar a tyrannia do panno e do chapéo alto. Estou convencido mesmo que essa grande reforma influiria vantajosamente no estado dos espiritos. Um povo que, com 40 graus de calor, anda entalado em casimiras sombrias e sobrecarregado com um chapéo alto de cere monia, é necessariamente um povo constrangido, cheio de vago mal-estar, propenso á melancolia e ao descontentamento politico. Que a esse povo seja permittido pôr na cabeça um fresco chapéo de palha e refrigerar o corpo com cheviotes claros, alegres e leves — e elle respirará consolado, e tudo desde logo lhe parecerá aprazivel na vida e no Estado.