XIV

Outra bomba anarchista — O snr. Brunetière e a Imprensa

 

As bombas anarchistas (porque tivemos outra, a bomba de Henry, lançada no café Terminus e que feriu trinta pessoas) vão entrando lentamente na classe dos accidentes naturaes, onde tomam um modesto logar, logo depois das inundações e dos incendios. Evidentemente o primeiro rio que alagou os primeiros campos cultivados, ou o primeiro fogo que rebentou na primeira cidade edificada, encheu os homens de um terror tanto mais desordenado quanto por traz d’essa rebellião de elementos elles viam a colera de um Deus offendido. Cada varzea inundada, cada cabana queimada, dava assim motivo a longas ceremonias expiatorias, á invenção de novas formulas liturgicas, a um desenvolvimento excessivo da auctoridade sacerdotal, e mesmo a especulações lyrico-metaphysicas dos vates, que eram então os philosophos que tudo explicavam. Depois, quando se observou que estas violencias da agua e do lume occorriam tão regularmente como as estações, e que cada inverno os valles se submergiam, e cada verão ardiam as choças de madeira e colmo, não houve mais coração que palpitasse de pavor mystico. Mesmo acreditando sempre que, através de taes desastres, se manifestava o descontentamento, divino, foi á auctoridade civil e não já á casta sacerdotal que se pediram medidas preventivas ou salvadoras. E nem se lhe conferiram poderes novos e excepcionaes, na certeza que, para conter a agua e apagar o fogo, bastaria apenas alguma vigilancia e saber technico da administração urbana e rural.

Com effeito ha já alguns milhares de annos que os rios devastam searas e o lume devora predios, sem que por isso a Egreja ou o Estado se commova ou trema pela sua estabilidade.

É exactamente o que vae succedendo com os anarchistas. Ás primeiras bombas houve um tumultuoso terror, como perante uma estranha e demoniaca demencia que ameaçava a velha estructura social. Cada explosão foi motivo para que se promulgassem leis de excepção, para que se reforçasse temerosamente o braço penal dos governos, para que os philosophos formulassem complicadas receitas sociologicas, e mesmo para que certos espiritos mais impressionaveis suspirassem pela intervenção divina de um Messias como unico capaz de pacificar os homens. Depois, quando se ouviu cada semana estalar uma bomba, e sem destruir mais propriedades ou vidas do que certos desabamentos de terrenos ou descarrilamentos de comboios, o medo phantasmagorico d’uma catastrophe social immediatamente findou: o habito embotara a emoção, e estas explosões revolucionarias começaram a ser equiparadas ás que fatalmente e inevitavelmente se produzem dentro d’uma civilisação industrial e mecanica: as do gaz, das caldeiras de vapor, das peças a bordo dos couraçados, e do grisou no fundo das minas. Contra ellas já não parece necessario improvisar codigos mais repressivos, nem invocar a interferencia messiânica. E a opinião tranquillisada só reclama, para domar a bomba, essas medidas preventivas que na industria se esperam da prudencia technica dos contra-mestres, e na ordem civil da vigilancia profissional dos commissarios de policia.

É n’este espirito que a policia em Pariz está procedendo á prisão systematica de todos os anarchistas.

Cada madrugada se faz através da cidade uma colheita de sectarios. Hontem quinze, hoje vinte... Os jornaes apenas publicam, sem commentarios, a lista secca dos nomes. Alguns d’estes homens têm mulher, têm filhos, a quem o pão vae faltar. Mas d’esses detalhes minimos, n’este momento de sensação publica, não cura o pretor. A cousa essencial é que não reste, livre nas ruas de Pariz, um proletario capaz de misturar um pouco de glycerina a um pouco de acido nitrico. Nem é mesmo necessario que o anarchista seja militante. Os simples theoricos, que professam e methodisam o anarchismo no livro ou no jornal, são egualmente levados na vasta montaria policial. De resto, o que o governo pretende, com esta encarceração geral de anarchistas, é conhecel-os, photographal-os, estudal-os, surprehender as suas ligações e afiliações, e formar assim um registro muito minucioso e muito documentado de toda a seita.

Findo este vasto inquerito pratico, todos serão soltos, como se soltam as manadas dos bois nas lezirias, depois de bem numerados e bem marcados. Indubitavelmente é uma dura lei; — mas vem de uma dura necessidade. Era realmente intoleravel que, n’uma cidade do seculo XIX, um pacifico homem não pudesse entrar n’um café, ou n’um theatro, com a mulher e o filho, sem correr o risco de voltarem de lá, elle e os seus, crivados de pontas de pregos, em nome de uma heresia digna do seculo III. Porque o anarchista é com effeito um socialista que se tornou heretico. Este nosso anarchismo está para o socialismo, como estavam para o christianismo nascente os montanistas, e os valentinistas, e os carpocratios que prégavam o amor livre, e os circoncellios que prégavam a destruição universal, e tantos outros, extravagantes e terriveis. Todos esses hereticos, tortulhos venenosos da arvore evangelica, não fizeram senão deturpar e desacreditar a pureza da doutrina, retardar-lhe a obra regeneradora, e attrahir-lhe perseguições sangrentas. Eram por isso ainda mais odiados pelos bispos christãos, que pelos pontifices pagãos. E quando sobre elles cahia a lei do imperio, com ferocidade, como sobre inimigos do genero humano, havia tanto regosijo do lado de Jesus, como do lado de Jupiter.

Egual regosijo acompanha esta perseguição, que nada tem, louvado seja o nosso tempo, da crueldade da de Decio ou de Diocleciano. Mesmo os que lamentam que ella espalhe tanta miseria entre mulheres e creanças abandonadas, desejam vehementemente que a seita seja, senão esmagada, ao menos inutilisada. A obra do Estado seria pois perfeita se, inspirada simultaneamente pelo sentimento de ordem e de humanidade, elle, pelo lado da policia, prendesse os anarchistas, e pelo lado da assistencia publica lhes soccorresse as familias que ficam sem o pão do salario perdido.

Mas infelizmente, entre tantos orgãos de que está provido o Estado, não ha nenhum que tenha a fórma, mesmo vaga, de um coração humano.


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Não sei se conhecem o snr. Brunetière. O snr. Brunetière é hoje nas lettras francezas um grande personagem — quasi devia dizer, dada a qualidade do seu espirito e das suas funcções, um grande mandarim. Quando o velho Buloz foi exilado da Revista dos Dous Mundos, por ter amado fóra da Revista, e com uma especie de amor que a Revista não permitte, a assembléa de accionistas d’essa veneravel publicação nomeou para o cargo de director o snr. Brunetière. Além d’isso, o snr. Brunetière era já o director, senão espiritual, ao menos intellectual, das damas lettradas do Faubourg St. Germain, tendo portanto a gloriosa missão de ensinar o que, em materia de litteratura, uma duqueza deve acceitar ou deve rejeitar para conseguir um logar no reino dos bons espiritos. Como consequencia d’estes dous nobres empregos, o de director da Revista e confessor litterario das almas aristocraticas, o snr. Brunetière foi por influencia das senhoras (e entre as senhoras incluo a Revista) eleito membro da Academia Franceza. E finalmente, para consagrar a sua reputação, a mocidade das escolas apupou furiosamente o snr. Brunetière, e, assim como a democracia revoltada outr’ora queimava o throno dos tyrannos (não sei se ahi no Rio, na revolução de novembro, se omittiu esta formalidade classica), quebrou a poltrona professoral, onde elle, na Sorbonne, pregava a boa doutrina, desmantelava o naturalismo, e explicava ás suas devotas a maneira mais delicada de saborear Bossuet. Eu conto estes guinchos e furores da mocidade como um dos elementos da sua gloria, senão já do seu valor, porque desde que as ideias geraes recomeçaram a apaixonar os espiritos moços e que nos pateos das Universidades se trocam outra vez bengaladas por causa de theorias, um professor só poderá ser considerado sufficientemente original, vivo, forte, fecundo, quando o seu ensino tenha provocado rancores ou enthusiasmos.

Os antigos portuguezes tinham, da nossa historia tragico-maritima, tirado este proverbio: «Só a grande náo, grande tormenta». E por isto significavam implicitamente um certo desdem por toda a barcaça chata e núa, que passava desapercebida do vento e da vaga. O Bairro Latino está creando um proverbio parallelo — «Só a grande professor, grande berreiro». Quando o professor é chato ou oco, em torno d’elle ou do seu ensino ha indifferença e calmaria. O escandalo, ao contrario, prova um mestre.

Ora, d’um homem por tantos motivos importante como o snr. Brunetière, todas as palavras são importantes. Por isso, a feroz verrina que elle, no seu discurso de recepção na Academia Franceza, lançou contra os jornaes e os jornalistas, mereceu mais attenção do que geralmente merecem estas grandes e usuaes imprecações contra a imprensa, as mulheres, o vinho e outros males.

Eu conheço imperfeitamente o snr. Brunetière, que é um critico de profissão. Se n’esta nossa edade de colossal e quasi abusiva producção (só a França publica por anno 12.000 volumes!) já não ha tempo para lêr os auctores — quanto menos os commentadores! O snr. Brunetière ensina agora na Sorbonne a comprehender e amar Bossuet. Mas quem teve o vagar ditoso de lêr primeiramente Bossuet, se é que o não leu no começo da sua educação classica? Eu, na minha mocidade, folheei os Sermões e as Orações Funebres; mas não cheguei a penetrar, como devia, no Discurso sobre a Historia Universal. E desde então, desgraçadamente, não logrei ainda um momento para absorver a theoria do grande bispo sobre a serie dos tempos, das religiões e dos imperios. Quando muito conheço a pagina classica, tão magestosa e rica, em que elle pinta a omnipotencia de Augusto e a belleza e recolhimento da paz romana, nas vesperas de nascer Jesus. É pouco. Mas se tão pouco conheço Bossuet, não me deve ser censurado o ignorar quasi inteiramente o seu apologista.

Pelo que tenho ouvido, porém, parece-me que o snr. Brunetière está para as lettras como um botanico está para as flôres. Percorrendo os canteiros de um jardim, o botanico conhece cada flôr, e o seu nome latino, e o numero das suas petalas, e todas as suas variedades, e o largo genero em que se filia, e a zona e o terreno que melhor convém ao seu desenvolvimento, etc., etc... Ha só na flôr uma cousa sobre que o juizo do velho botanico sempre claudica, ou porque a desdenhe ou porque a não sinta — e é a belleza especial da flôr, que está talvez na côr, nas dobras das folhas, na maneira porque se mantém na haste, em mil particularidades indefinidas, n’esse não sei que que lhe habita as fórmas e que faz com que deante d’ella paremos, e a contemplemos, e a appeteçamos, e a colhamos. O snr. Brunetière é este sapiente botanico entre flôres. Que lhe dêem um poeta, e elle immediatamente o classificará, lhe collocará um rotulo nas costas, mostrará o genero que cultivou, desfiará as qualidades que revelou n’esse genero, exporá as influencias de raça, e de meio, e de momento historico que concorreram para o desenvolvimento d’essas qualidades, etc., etc. Será superiormente erudito — e só lhe faltará o sentir, pelo gosto, esse não sei que de intimo que constitue a belleza ou a grandeza do poeta. O snr. Brunetière é um botanico das lettras. E de resto esta comparação não lhe poderia desagradar, porque elle é um dos que recentemente, ao que parece, mais se têm applicado a introduzir nas sciencias moraes o methodo das sciencias naturaes, e a considerar as obras humanas, e sobretudo as obras de litteratura e de arte, como productos de que a critica e a esthetica só têm a verificar os caracteres e a esmiuçar as causas. Isto desde logo o torna para mim um critico extremamente respeitavel e pouco sympathico. Ignorante como sou, eu gosto de um critico que me possa explicar as causas e os caracteres da obra de Musset, mas que sinta palpitar o coração quando lê as Noites e a Carta a Lamartine, ou porque se lhe communicou a emoção do ardente lyrico, ou porque se enlevou na contemplação da belleza realisada. Sem a faculdade emotiva e o gosto, o critico pertence áquella especie de esmiuçadores de causas e arrumadores de generos, que Carlisle chamava os resequidos.

Além d’isso, segundo ouço, o snr. Brunetière é um rispido, um inflexivel, todo elle dogmatismo e intolerancia, sem uma gotta, para o amollecer e lubrificar, d’aquelle leite da humana bondade de que falla outro inglez, o muito adoravel Dickens. E esta outra qualidade do snr. Brunetière augmenta a minha antipathia, toda de instincto, para com este homem de talento e de bem. Não posso por isso ser considerado suspeito, ao approvar, como approvo, todas as accusações que, no seu discurso de recepção na Academia, elle desenrolou contra os jornaes, contra os jornalistas, e, portanto, contra mim, que sou, a meu modo, e d’um modo bem imperfeito, uma especie de jornalista.


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O snr. Brunetière censura á imprensa a sua superficialidade, a sua bisbilhotice e escandaloso abuso de reportagem, e o seu sectarismo. Ser superficial, bisbilhoteiro e sectario, é ter realmente uma respeitavel somma de defeitos.

Um só basta para desacreditar em materia intellectual ou social. Todos juntos pedem as gemonias. E todavia a imprensa, que os possue todos, está n’um throno e resplandece. Mas Nero e Vitellio governaram o mundo — e a sua triumphal auctoridade não lhes tira a indecente monstruosidade!

A imprensa, que tambem ho je governa o mundo, não é, Deus louvado, nem indecente, nem monstruosa. Todos esses vicios, porém, que lhe attribue o snr. Brunetière, é certo que ella os pratica, em proporções diversas, segundo o seu temperamento de raça e as suas condições funccionaes. O Times e outros jornaes inglezes, riquissimos e possuindo toda uma cohorte de especialistas, prompta a tratar todas as materias, desde as de metaphysica, apresentam geralmente, sobre as questões occorrentes, estudos solidos em que está resumido muito saber e muita experiencia. Por outro lado, na Allemanha, paiz das ideias geraes, e que só se interessa por ideias geraes, e em Portugal e na Hespanha, onde todos herdamos dos nossos avós, godos e arabes, o respeito quasi sacrosanto da vida intima, — os jornaes não são bisbilhoteiros, nem abusam indiscretamente da reportagem miuda.

Em média, porém, affoutamente se póde affirmar que na Europa e na America a imprensa é superficial, linguareira e sectaria. Ora, estes defeitos não são, a meu vêr, sómente perniciosos por enfraquecerem, como pretende o snr. Brunetière, a auctoridade da imprensa e fazer lamentar os tempos solidos d’Armand Carrel, em que se punha na composição de um artigo mais cuidado do que hoje se põe na preparação de uma Encyclopedia. Taes defeitos são sobretudo nocivos, porque a imprensa os communica ao publico, com quem está em permanente communhão, e assim, em logar de educadora, se tem lentamente tornado uma viciadora do espirito e dos costumes.

Incontestavelmente foi a imprensa, com a sua maneira superficial e leviana de tudo julgar e decidir, que mais concorreu para dar ao nosso tempo o funesto e já radicado habito dos juizos ligeiros. Em todos os seculos se improvisaram estouvadamente opiniões: em nenhum, porém, como no nosso, essa improvisação impudente se tornou a operação corrente e natural do entendimento. Com excepção de alguns philosophos mais methodicos, ou d’alguns devotos mais escrupulosos, todos nós hoje nos deshabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente do penoso trabalho de reflectir. É com impressões que formamos as nossas conclusões. Para louvar ou condemnar em politica o facto mais complexo, e onde entrem factores multiplos que mais necessitem analyse, nós largamente nos contentamos com um boato escutado a uma esquina. Para apreciar em litteratura o livro mais profundo, apenas nos basta folhear aqui e além uma pagina, através do fumo ondeante do charuto. O methodo do velho Cuvier, de julgar o mastodonte pelo osso, é o que adaptamos, com magnifica inconsciencia, para decidir sobre os homens e sobre as obras. Principalmente para condemnar — a nossa ligeireza é fulminante. Com que esplendida facilidade declaramos, ou se trate d’um estadista, ou se trate d’um artista: «É uma besta! É um maroto!» Para exclamar: «É um genio!» ou: «É um santo!» offerecemos naturalmente mais resistencia. Mas ainda assim, quando uma boa digestão e um figado livre nos inclinam á benevolencia risonha, tambem concedemos promptamente, e só com lançar um olhar distrahido sobre o eleito, a coroa de louros ou a aureola de luz.

N’estes tempos de borbulhante publicidade, em que não ladra um cão em Constantinopla sem que nós o sintamos, e em que todo o homem tem o seu momento de evidencia, nós passamos o nosso bemdito dia a promulgar sentenças e a lavrar diplomas. Não ha facto, acção individual ou collectiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos promptos, apenas ellas nos sejam apresentadas, a formular muito d’alto uma opinião cathedratica.

E a opinião tem sempre e apenas por base aquelle pequenino lado do facto, da acção, do homem, da obra, que apparece, n’um relance, ante os nossos olhos fugidios e apressados. Por um gesto julgamos um caracter, por um caracter avaliamos um povo. A antiga anecdota d’aquelle inglez funambulesco que, desembarcando em Calais de madrugada, e avistando um coxo no caes, escreve no seu livro de notas: «A França é habitada por homens côxos» — illustra e symbolisa ainda hoje a formação das nossas opiniões.

E quem nos tem enraizado estes habitos levianos? O jornal, que offerece cada manhã, desde a chronica até aos annuncios, uma massa espumante de juizos ligeiros, improvisados na vespera, das onze á meia noite, entre o silvar do gaz e o fervilhar das chalaças, por excellentes rapazes que entram á pressa na redacção, agarram uma tira de papel, e, sem tirar mesmo o chapéo, decidem com dous rabiscos de penna, indifferentemente sobre uma crise do Estado, ou sobre o merito de um vaudeville. Como exemplo picante, eu poderia citar o modo por que a imprensa de Pariz tem commentado a revolta do Brazil e julgado o povo do Brazil, sobre vagos bocados de telegrammas truncados — senão receiasse entrar em um caminho escorregadio, onde me arriscaria a esbarrar com os nossos queridos collegas do Paiz e do Tempo, armados da sua ferula.

Lembrarei apenas que, ainda não ha uma semana, o articulista encarregado no Figaro de criticar cada dia os acontecimentos politicos da Europa, e que, portanto, deve conhecer a Europa, estudando a situação economica de Portugal, affirmava, e com uma soberba certeza, que «em Lisboa os filhos das mais illustres familias da aristocracia se empregavam como carregadores de alfandega, e ao fim de cada mez mandavam receber as soldadas pelos seus lacaios!» Estes herdeiros das grandes casas de Portugal, carregando pipas de azeite e fardos de café no caes da alfandega, e conservando todavia creados de farda para lhes ir receber o salario — fórmam um quadro simplesmente portentoso. Pois quem o traça é o Figaro, um dos mais considerados jornaes de Pariz, e um dos que têm um pessoal mais largo e mais remunerado. E Lisboa todavia está a dois dias e meio de Pariz! Mas Londres dista apenas sete horas e meia de Pariz — e constantemente os jornaes francezes escrevem sobre a Inglaterra, e as cousas inglezas, com a mesma segura sciencia com que o Figaro descrevia as occupações da nobreza de Portugal.

Ora, dizia não sei que sentencioso critico hespanhol que, quando se lê constantemente Seneca, ganham-se os habitos de espirito de Seneca. E quando se tem como usual alimento do espirito o Figaro e consortes (e é d’estas magras viandas que hoje se nutre a maioria dos civilisados) facilmente se toma o habito de ir espalhando estouvadamente, sobre os homens e sobre os factos, juizos ephemeros e ocos. E eu proprio, por humildade, para não estender uma orgulhosa abstenção do peccado commum, comecei por dar aqui, sobre o snr. Brunetière — um juizo ligeiro, nascido de impressões fugidias.


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A outra accusação feita á imprensa pelo douto académico é a da bisbilhotice, de indiscreta e desordenada reportagem.

Ha aqui alguma ingratidão da parte do snr. Brunetière. Para a critica, sobretudo como elle a comprehende e exerce, a reportagem é a grande abastecedora de documentos. Quanto mais detalhes a indiscrição dos reporters revelar sobre a pessoa do snr. Zola, e os seus habitos, e o seu regimen culinario, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos terão os Brunetière do futuro para reconstruir com segurança a personalidade do auctor de Germinal, e, através d’ella, explicar a obra. Não é indifferente saber como era feito o nariz de Cleopatra, pois que do feitio d’esse nariz dependeram, durante um momento, como muito bem diz Pascal, os destinos do Universo. Mas, como a reportagem ainda se exerce, não só sobre os que influem nos negocios do mundo ou nas direcções do pensamento, mas sobre toda a «sorte e condições de gente», desde as cocottes até aos jockeys, e desde os dandies até aos assassinos, succede que esta indiscriminada publicidade, sem concorrer em nada para a documentação da historia, concorre, e prodigiosamente, para o desenvolvimento da vaidade.

O jornal é hoje, com effeito, o grande assoprador da vaidade humana. Em todos os tempos houve vaidosos — e não querem de certo que eu estafadamente cite o estafado Alcibiades cortando o rabo do seu estafado cão, para que se falle d’elle nas praças de Athenas. A vaidade é mesmo muito anterior a Alcibiades: já apparece a paginas 3 da Biblia, e a folha de vinha, bem collocada, é o seu primeiro acto mundano. Incontestavelmente, porém, em nenhum tempo a vaidade foi, como no nosso, o grande, o principal motor das acções e da conducta. N’estes estados de alta civilisação, que produzem cidades do typo de Pariz e de Londres, tudo se faz por vaidade, e com um fim de vaidade.

E d’essa fórma nova e especial da vaidade só o jornal é culpado, porque foi elle que a creou. Essa forma consiste na notoriedade que se obtém através do jornal.

«Vir no jornal», ter o seu nome impresso, citado no jornal — eis hoje, para uma forte maioria dos mortaes que vivem em sociedade, a aspiração e recompensa supremas.

Nos regimens aristocraticos, o grande esforço era obter, senão já o favor, ao menos o sorriso do principe. Nas nossas democracias é alcançar o louvor do jornal. Para conquistarem essas dez ou doze linhas bemditas, os homens praticam todas as acções — mesmo as boas. Não é mesmo necessario que essas linhas contenham um panegyrico: basta que ponham o nome, a personalidade em evidencia, n’uma tinta bem negra, que hoje tem um brilho mais desejado que o antigo nimbo d’ouro. E não ha classe que não esteja devorada por esse appetite morbido do reclamo. Elle é tão vivo no mundano, no homem de prazer, na mulher de luxo, como n’aquelles que parecem preferir na vida a obscuridade e o silencio. Parque vêm agora, n’estas semanas, esses frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, pregar nos pulpitos de Pariz sermões de Quaresma grandemente theatraes e creadores de escandalo? Para terem uma celebridade no genero Coquelin, e interviews nos jornaes de litteratura elegante, e o seu retrato, com o habito do grande S. Domingos, exposto entre jockeys illustres e as cancanistas do Moulin-Rouge. É esta esperança do «artigo do jornal», que, como outr’ora a esperança do céu, governa a conducta e as ideias — e para «vir no jornal» é que os homens se arruinam, e as mulheres se deshonram, e os politicos desmancham a boa ordem do Estado, e os artistas se lançam na extravagancia esthetica, e os sabios alardeiam theorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os generos, surge a horda sofrega dos charlatães. Cada um se empurra, se arremessa para a frente, quer fazer estalar, bem alto no ar, o seu fogo de artificio, para que o jornal o commente, e a multidão se apinhe e murmure boquiaberta: — Ah!

Mas, por Deus! agora reparo que estou aqui compondo uma pagina de moralista amargo, o que é faltar ao bom gosto do nosso tempo, e sobretudo aos santos preceitos da ironia. Immediatamente me calo — e estou mesmo prompto a concordar que o jornal tambem incita á virtude... Com effeito, tal magnifico banqueiro judeu dá, pelo Natal, cem mil francos aos pobres, para que a sua caridade venha no jornal! Bemdito seja o jornal!

Nem mesmo, com receio de tomar o desagradavel tom de um censor dos costumes, quero insistir na outra accusação formulada pelo snr. Brunetière contra a imprensa — a de partidarismo e de sectarismo. De resto, é por pura humildade christã que eu, que me considero a meu modo um jornalista, confessei, fallando do jornalismo, estes peccados em que collaboro impenitentemente.

Estamos na Semana Santa, e é de bom exemplo que cada um rosne o seu mea culpa e cubra a cabeça de uma pouca de cinza. Além d’isso, queridos amigos e confrades no peccado, esta carta, em que contrictamente apontei alguns dos vicios mais dissolventes dos jornaes, a sua superficialidade, a sua bisbilhotice, o seu partidarismo, vicios que os tornam tão pouco proprios para serem lidos pelo homem justo, já vae copiosamente larga — e eu tenho pressa de a findar, para ir lêr os meus jornaes com delicia.