XV

As «interviews» — O Rei Humberto e o «Figaro» — A monarchia italiana — O que póde dizer um soberano a um jornalista — A sinceridade e o optimismo official.

 

Apesar d’esta democracia crescente que tudo vulgarisa, ou antes (sejamos prudentes) que tudo egualisa, nem cada dia um jornalista consegue interviewar um rei.

(Este vocabulo interviewar é horrendo, e tem uma physionomia tão grosseira, e tão intrusivamente yankee, como o deselegante abuso que exprime. O verbo entrevistar, forjado com o nosso substantivo entrevista, seria mais toleravel, d’um tom mais suave e polido. Entrevista, de resto, é um antigo termo portuguez, um termo technico de alfaiate, que significa aquelle bocado de estofo mais vistoso, ordinariamente escarlate ou amarello, que surdia por entre os abertos nos velhos gibões golpeados dos seculos XVI e XVII. Termo excellente, portanto, para designar um acto em que as opiniões tufam, rebentam para fóra, por entre as fendas da natural reserva, em cores effusivas e berrantes. Mas entrevistar tem um não sei que de surrateiro que desagrada — e só alguem com muita auctoridade e muita audacia o poderia impôr. Interviewar, ao menos, é bruto mas franco. Temos pois de empregar resignadamente este feio americanismo — já que os nossos idiomas neo-latinos não estão preparados, na sua nobre pobreza, a acompanhar todas as ruidosas invenções do engenho anglo-saxonio. Vós ahi no Brazil, amigos, possuis a arte subtil de cunhar vocabulos que são por vezes geniaes. Fabricae um que substitua o interviewar e sereis bemditos).

E no entretanto iremos dizendo que, apesar da nossa egualisação democratica, nem todos os dias um jornalista interviewa um rei. Não parece de resto haver proveito na tentativa. Se os reis são de direito divino, as suas intenções devem permanecer tão impenetraveis como as de Deus, de quem emanam, e que os inspira. Quando alguém ousasse interrogar o imperador da Russia sobre os seus planos, elle, muito logicamente, apontaria silenciosamente para o céu. Os reis d’esse transcendente typo são agentes submissos, quasi inconscientes, da Providencia. Antes trepar ás nuvens e formular um interrogatorio directo á Providencia. Se os reis, porém, são constitucionaes, então os seus desejos, como os seus actos, só têm valor quando confirmados pelo ministerio, pelo parlamento, por todas as instituições tutelares de que os cercou, com que os peiou, a Constituição. Mais util, rapido, e de melhor cortezia será interviewar o ministro ou o chefe de maioria. É por estes motivos certamente que os reporters, que, com a imprudencia dos pardaes, se abatera e piam sobre as cousas mais veneraveis, nunca assaltam os thronos.

O caso, porém, é differente com o rei de Italia. Humberto é um rei constitucional que diz sempre — «o meu povo... o meu exercito... a minha armada». Estas expressões, indicando um senhorio directo da nação, sanccionado pelo direito divino, só o Czar, hoje, (além do Sultão) as póde empregar legitimamente. Por toda a parte, fóra da Russia, da Turquia, (e d’algumas republicas da America Central) os povos pertencem a si proprios, ou pelo menos conservam essa illusão, que lhes é preciosa; e os exercitos pertencem ao Estado, que deixou de ser identico com o rei desde que Luiz XIV teve a fistula. Estas expressões, porém, de «meu povo», de «meu exercito», que considerariamos singularmente improprias na bocca constitucional do rei dos Belgas, não destoam quando usadas pelo rei da Italia. Na realeza de Humberto, chefe da casa de Saboya, ha um não sei que de pessoal e absoluto, que se nos afigura legitimo. Para os italianos, em quem possa sobreviver o espirito municipal das velhas democracias, talvez elle seja apenas o primeiro magistrado da Italia: — para nós elle apparece, até certo ponto, como o senhor da Italia, porque na sua qualidade de segundo rei de Italia elle é ainda a razão e a força da unidade italiana.

Em todos os tempos foi a ambição dos reis que fez a unidade dos Estados. Esta ideia mesmo de unidade, e o amor da unidade, só nasce no povo desde que a vê realisada, e sente experimentalmente a sua grandeza material, ou a sua belleza historica. A concepção abstracta de uma patria una nunca póde surgir espontaneamente no povo, que só comprehende e ama a sua aldeia ou a sua cidade, e não pensa na cidade proxima e na aldeia visinha senão para as desdenhar ou para as invejar. De certo a lingua, o parentesco da raça, a identidade do caracter constituem fortes tendencias para a unidade: mas de nada servem, se não houver conjunctamente um rei ambicioso que as aproveite para sobre ellas construir a união nacional. Sem esse principe ambicioso, ladeado por um ministro do genero de Bismarck ou Cavour, e instigado por tres ou quatro patriotas idealistas, as cidades continuavam a fallar a mesma lingua, a nutrir-se intellectualmente n’uma litteratura commum, a prestarem um culto irmão aos mesmos grandes homens, mas não sahiriam nunca do seu municipalismo ou do seu provincialismo historico.

Esta lei, que se póde observar em todos os Estados, é manifesta na historia da Italia. Tendo mantido sempre a unidade da sua civilisação, tão solida que se impoz a todas as raças que a conquistaram; tendo construido na Europa, pelo Papado, a unidade espiritual — a Italia todavia nunca realisou a sua unidade politica, e desde a meia edade permanece fragmentada em municipios e republicas, cuja existência, tempestuosamente agitada entre a anarchia e a tyrannia, é uma serie lacrimosa de martyrologios.

O caracter social da Italia é então a divisão levada até á ultima molecula social. As cidades vivem isoladas, n’um violento ciume mutuo, travando constantemente guerras e trahindo-se com uma perfidia que ficou proverbial. Dentro das cidades, os cidadãos vivem tão divididos como ellas, armando todos os dias brigas de rua a rua, e de cada casa fazendo a cidadella de uma facção. E dentro das casas as familias estão ainda sombriamente divididas, e paes, e filhos, e irmãos não se reunem na mesma sala sem trazerem cautelosamente debaixo dos gibões o seu punhal escondido. Todavia, todo este mundo mutuamente hostil se injuria na mesma lingua, lê o mesmo Ariosto, reza á mesma Madona, celebra as mesmas festas civicas, e sente o orgulho commum da grandeza passada. Mas o longo habito da vida local, do governo communal, lançara raizes profundissimas, creára no italiano como um modo especial de pensar e de sentir, que o abandonava indefeso ás violencias da demagogia, ao abuso da força e da intriga dos pequenos tyrannetes, á ferocidade de todos os invasores. Accrescia que estes velhos instinctos municipaes eram explorados machiavellicamente pelos papas, que se serviam d’elles para esmagar em qualquer dos Estados a menor tendencia á hegemonia, e através d’ella á formação de uma Italia unida. Soberano espiritual, o papa não podia soffrer ao seu lado um soberano temporal; — e para man ter a sua independencia fomentava a desunião. A pobre Italia ia assim ficando repartida em republicasinhas anemicas e despotismosinhos sangrentos, amollecendo-se em todas as suas qualidades, depravando-se em todos os seus costumes, sob o patrocinio da Tiara, que a impedia de se unir, sem ter a força de a proteger. A consequencia é que a Italia foi assaltada, saqueada, espesinhada, retalhada, vendida ou doada, como um despojo de guerra. Cahiu em decadencia, cahiu em servidão... Peior ainda, cahiu em ridiculo! E a terra fecunda dos Genios e dos Santos não appareceu mais na Historia senão como um povo piolhento e somnolento, governado por côrtes minusculas, que não passavam de uma collecção buffa de caturras, cortezãos, parasitas, jograes, monsenhores, sacristães, sigisbeos, tenores, castrados e bailarinas. E porque? Porque lhe faltára até ahi o rei ambicioso e patriota, que, para ser rei da Italia, quebrasse as velhas tradições do municipalismo latino, e no meio das grandes monarchias militares désse á Italia um governo central, leis uniformes, um exercito permanente, as condições todas que a ella lhe consolidariam a unidade, e a elle a soberania. Este rei salvador surgiu finalmente em Turim. Todos nós fomos ainda seus contemporaneos, e o celebrámos como ré galantuomo. Victor Manuel foi o instrumento essencial da ressurreição da Italia. Á sua voz é que a grande Lazara, ligada e estendida no sepulchro bourbonico, ergueu-se e marchou. Outros de certo trabalharam habilmente e heroicamente na grande obra; mas foi elle que a assignou; e, para os olhos da multidão que nunca aprofunda, só elle ficou com a sua força representativa e a garantia da sua duração. Por maiores limitações que a Constituição impuzesse á sua auctoridade, ella não podia deixar de ser, através das formulas parlamentares, suprema como a de todo o creador. Humberto, seu filho, continuador e consolidador da obra, herda ainda d’esta prerogativa de chefe paternal. Nunca elle poderá ser um rei do puro typo constitucional, como Leopoldo da Belgica, que, segundo a formula belga, não é senão o «primeiro dos seus administrados». Os futuros reis da Italia (se os houver) poderão ser reduzidos a esta subalternidade de funccionario irresponsavel. Humberto não — e, para elle, reinar ainda ha-de ser governar. E quando elle falle do seu povo, do seu exercito, a Europa não lhe contestará a legitimidade d’essas expressões autocraticas.

Além d’isso, Humberto foi coroado em Roma. Ora, Roma é essencialmente cesariana, e communica, imprime caracter cesariano áquelles que a governam. Ella mesma foi sempre cidade-soberana, ou no temporal ou no espiritual. Só ha cem annos é que deixou de vir de lá d’entre as sete collinas, ou sob a forma de encyclica papal, a ordem suprema que se impunha a reis e povos, e regia os nossos bens ou as nossas almas. E o senhor da cidade de Romulo sempre partilhará d’esta supremacia que lhe é inherente. Mas este ponto de vista é talvez mais esthetico do que politico.

Em todo o caso, por todos os motivos, Humberto é dos poucos reis interviewaveis. É um rei que quer e que póde. E não é todavia bastante de direito divino, para se considerar um emissario da Providencia, e, como ella, esconder os seus designios, que só por ella pódem ser comprehendidos ou julgados. Ao rei Humberto é permittido dizer: «Eu farei isto, as minhas intenções são estas...» A sua auctoridade na nação comporta estas affirmações pessoaes e soberanas. Qualquer outro rei, strictamente constitucional, quando atacado por um reporter, só poderá encolher os hombros e murmurar: «Não sei, veremos o que faz o ministerio...»

Ha, pois, apparentemente, utilidade para um reporter de alta reportagem, em sondar e puxar para fóra o pensamento intimo do rei Humberto. A difficuldade unica estaria na operação da sondagem — porque, apesar de se ter supprimido a hirta e encarceradora etiqueta do tempo de Carlos V, os reis ainda não são accessiveis a qualquer sujeito de chapéo côco que se apresente com uma carteira e um lapis, a «fazer perguntas». Mas o Figaro, barbeiro astuto, acostumado desde a sua mocidade a deslisar subtilmente pelas portas escusas e a penetrar no segreda dos Bartholos, realisou esta bella façanha — e interviewou o rei Humberto. E quando elle annunciou, rufando ufanamente o seu grosso tambor, que ia publicar as declarações do rei de Italia, a Europa, excitada, aguçou vorazmente as suas longas orelhas. Com effeito, que maravilhosa occasião de conhecer emfim o segredo da Triplice Alliança! E occasião unica! Porque dous dos alliados, o imperador da Allemanha e o imperador da Áustria, sendo mandatarios da Providencia, têm de permanecer impenetraveis. O rei de Italia, porém, é apenas o mandatario d’um povo, e d’um povo illustre nos fastos da loquacidade. E o rei da Italia ia fallar... Fallou. O Figaro, barbeiro ditoso, imprimiu com alarido as suas palavras. E desde então ainda não cessaram, em tomo d’ellas, controversias que me espantam, e devem espantar todos os simples pela sua ingenuidade.

Parece haver, com effeito, immensa ingenuidade em esperar com inquietação, e depois discutir com paixão as declarações publicas, officiaes, de governos ou de governantes. Por pouco que ellas annunciem conducta, e constituam programma, taes declarações têm necessariamente de ser generalidades optimistas e virtuosas. Que póde, por exemplo, um governo novo prometter aos cidadãos, senão que todos os seus esforços tenderão energicamente a manter a ordem, favorecer a moralidade, e promover a economia? Não ha possibilidade de que um governo se apresente gravemente ante o paiz, e pondo a mão leal sobre o coração sincero declare que vae fomentar a desordem, animar o desperdicio, e proteger a immoralidade! Os cidadãos não acreditariam: — e esse governo, talvez veridico, seria escandalosamente expulso como farçante.

Ha nos programmas politicos uma convencionalidade, mutuamente consentida, que é commum a todas as manifestações publicas, e que corresponde á necessidade climaterica e moral, hoje tornada instincto, de cobrirmos a nossa nudez. É uma méra questão de decencia, de respeito social, quasi de etiqueta. O chefe de Estado, quando falla á nação, tem de exibir uma decorosa virtude nos seus intentos, pelos mesmos motivos porque tem de vestir a sua farda, e trazer o seu sequito, nos grandes ceremoniaes. «Todas as minhas forças, caros concidadãos, serão votadas a alargar a prosperidade! etc., etc...» todas estas patrioticas, integras phrases devem ondular em tons claros, como os pennachos de gala. Os experientes sorriem, mas murmuram — «muito bem, muito bem!» E não tolerariam que o chefe de Estado, com honrosa sinceridade, declarasse que se preparava a fazer escandalos e prepotencias — como não permittiriam que elle n’essa ceremonia, onde viera lançar o seu programma, se apresentasse nú ou simplesmente em ceroulas. É uma questão de decoro. Esta necessidade de pudor publico, perfeitamente a comprehendo. O que sempre me pareceu incomprehensivel foi o ingenuo que arregala os olhos, sorve com delicias cada promessa do programma, como se ellas cahissem do alto do Sinai, e vae exclamando, radiante: — «Emfim, temos um governo, temos um homem que quer implantar a moralidade, garantir a ordem, promover a economia, etc., etc., etc,» E ainda comprehendo menos talvez os que se lançam sobre o programma e o analysam, o dissecam, tiram d’elle, por entre as linhas, esperanças ou receios, e discutem apaixonadamente cada uma das suas palavras sacramentaes como se fossem realidades vivas.

Que poderia dizer jámais o rei da Italia a um reporter que o interroga sobre as intenções da Italia? Que poderia dizer, justos céus! senão que elle e o seu povo amam todos os seus visinhos como irmãos, e só querem, só appetecem a paz? E foi justamente o que affirmou Humberto. Nem era humanamente verosimil que elle franzisse o sobr’olho, e exhalasse, em vocabularios troantes, o seu odio á França, a sua sêde de guerra... Qualquer declaração sua, destinada a um jornal, tinha de ser inevitavelmente fraternal, pacifica, optimista. Os scepticos podem sorrir, mas têm de murmurar: «muito bem, muito bem». O rei da Italia com effeito teve a attitude que pedia a decencia. Recebendo um jornalista francez, vinha vestido, e affiançou a paz. Tão estranho seria que annunciasse a guerra, — como que apparecesse em mangas de camisa.

E todavia estas declarações previstas, obrigatorias e que não tem mais significação que a farda ou a sobrecasaca que o rei vestia, estão sendo escrutinadas, pesadas, filtradas, estudadas pelos analystas politicos, com ardor, como se contivessem no fundo das suas syllabas os segredos do Destino. Uns, d’aquem Rheno, gritam: «O rei Humberto não é sincero. Que dê provas!...» Outros, d’além Rheno, clamam: «Haverá n’estas palavras de Humberto intenções de desdenhar as allianças juradas?...» E o Times, ha tres dias, em pesadas columnas está perguntando aos olhos leaes do monarchismo, se é licito duvidar da affirmação de um rei!...

A um innocente, como eu, tudo isto parece funambulesco. Oh boas almas, ainda uma vez mais, que esperaveis vós que dissesse o rei da Italia? Que póde responder o director de um banco a quem lhe pergunte se elle é pela probidade ou se tende para a trapaça e roubo aos accionistas? Que póde responder um chefe de Estado a quem lhe pergunte se elle é pela paz — ou se pende para a guerra e mortandade dos povos?


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De resto é innata no homem, esta tendencia a fazer perguntas, tão inuteis quão nescias, e a que elle sabe de antemão as respostas necessarias e coherentes. Não ha ninguem que, entrando n’uma mercearia a comprar um kilo de queijo, não tivesse já papalvamente perguntado ao mercieiro: «É bom o seu queijo?» Como se jámais, desde que ha homens e queijos, um mercieiro tivesse respondido, com asco: «Não senhor, não presta!» E se elle désse esta resposta, por espirito sublime de veracidade intransigente, então é que nós começariamos a desconfiar do lojista, como de um ser anormal, extravagante e perigoso. Um amigo meu, viajando em Inglaterra, parou n’um hotel, e depois de installado e barbeado, desceu a almoçar. O dia era de junho, elle appeteceu um vinho fresco e leve, percorreu pensativamente a lista dos vinhos, e perguntou ao creado, com tradicional e humana ingenuidade:

— É bom este Chablis?

O criado, um velho de suissas brancas, grave e um pouco triste como um embaixador em disponibilidade, abanou a cabeça, e respondeu seccamente:

— É uma peste.

O meu amigo considerou com espanto, e um espanto desagradavel, aquelle homem veridico. Depois repercorreu a lista.

— Bem, traga-me então d’este Medoc... É bom, o Medoc?

O criado, muito serio, replicou:

— É horrivel.

Perturbado, o meu amigo murmurou timidamente, n’uma desconfiança vaga e escura que o invadia:

— Bem, beberei cerveja... Que tal é a cerveja?

O criado volveu, convencido e digno:

— Droga muito mediocre... Extremamente mediocre!

O meu amigo tremia já, n’um positivo terror. Mas ainda balbuciou:

— Que hei-de eu então beber?

— Beba agua, ou beba chá... Ainda que o chá, que agora temos, é realmente detestavel.

Então o meu amigo repelliu violentamente guardanapo e talher, galgou as escadas do seu quarto, reafivelou as correias da sua maleta, saltou para uma tipoia e fugiu.

Porque? Nem elle sabia. Tudo quanto me poude explicar é que, perante tanta sinceridade, perante tanta veracidade, elle sentiu em torno de si, n’aquelle hotel, alguma cousa de anormal, de extravagante, de perigoso. E o acto do meu amigo, dado o nosso secular habito da mentira, da ficção, da convenção — é bem humano.