A filha do pagé
A Martin Garcia Mérou.
I
No rio Negro.
Das margens, nenhum som da vida animal perturbava a tranquillidade das coisas. A pino, o sol mordia as densas vegetações sombrias, fustigava tenaz uma ou outra borboleta vagabunda sobre os nenuphares exhaustos. O rio seguia monotono, n’um esvaimento; apenas pelo meio, lá ao largo, a correnteza fervia em cachões, borbulhava entre escumas alaranjadas, depurava-se de todos os residuos que acarreta a grande arteria aquatica.
Pela beirada, aproveitando o remanso, ia subindo vagarosa, impellida pelo remo de pá, a canôa de pae Francisco, o velho pagé de Curralinho.
Vinha de longe, o solitario viajante. Emprehendêra a operosa navegação, que almejava fôsse a sua ultima ascensão para o centro, em busca do absoluto socego onde podesse sondar a sua dôr e dar largas ao pranto que não seccava ha seis mezes. Fugia do logar onde fôra feliz e poderoso. Além, no mysterio das florestas intactas, na grandiosidade da natureza virgem, havia de encontrar o lenitivo para as amarguras da alma lacerada.
Uma ternura afagava-lhe o espirito, onde renasciam vislumbres de esperança. Esquecer o passado, não o desejava. Seria buscar o impossivel. A que ousava aspirar, n’uma humildade de supersticioso, era á pacificação circumdante, para rever a seu gosto agridoces saudades, resuscitar as reminiscencias, fruir as meigas recordações dolorosas dos tempos idos. Era isto querer em demasia?
Remava sempre, semi-nú ao centro da embarcação, com o dorso exposto á soalheira, suarento, a cabeça ora para deante, ora erguida, no movimento dado ao remo. Nada via do lado da terra. A vegetação crescia opulenta, emmaranhara glaucas barreiras invenciveis de raizes, troncos, ramagens e lianas. Por cima de tudo isto, palmeiras carregadas de tractos trapejavam brandamente e dos galhos, d’entre massiços mais claros de folhagens tenras, pendiam as orchídeas, na gala aristocratica dos seus caprichosos matizes.
Ás vezes, adeante da canôa, pinchava um peixe assustado, levantava innumeras gottas, achamalotava de arripios fugitivos a negrura do remanso. Mas o velho quedava-se impassivel, remando sempre, fixo na idéa de fugir de Curralinho. O aspecto exterior do mundo não o interessava; debatiam-se-lhe tumultuosamente no espirito milhares de pensamentos retrospectivos, um só dos quaes era bastante para dominar-lhe a attenção inteira.
II
Era simples a historia d’esse homem.
Nascêra e crescêra em Curralinho. Filho d’um antigo cabano, fizera-se pagé quando lhe morrêra o pae.
Desconhecido ao principio, teve de esperar paciente que os seus feitos o acreditassem na população, trazendo a pouco e pouco o exito que tamanha fama lhe grangeou depois. Ao chegar á edade madura, — estava definitivamente consolidada a sua reputação. De muitas leguas ao redor, vinham durante o anno centenas de pessôas recorrer-lhe ao talento com a fé cega dos supersticiosos e dos crentes.
Uns, — a nata da gente culta de Curralinho, — tinham-n’o na conta de brégeiro especulador. Mas a parteira Eudoxia proclamava convicta o sincero devotamento de pae Francisco áquillo a que ella, com um pouco menos de propriedade na expressão, chamava o seu sacerdocio. Levava mesmo o espirito justiceiro a assegurar, com a responsabilidade do testemunho evidente de cem pessôas, que, para resolver uma situação difficil de puerperio, mais valiam as imposições cabalísticas da dextra do apregoado pagé, do que toda a sua longa pratica, d’ella depoente insuspeita, associada á infallivel interferencia de São Raymundo Nonato.
Especulador ou convicto, — não vem a pêllo esmerilhar o fundo d’aquelle caracter. Talvez mesmo tivesse ella as duas qualidades que são, quasi sempre, o acúleo do seu e de identicos mestéres. O que havia de positivo era a adoração que sentia pela filha, — um encanto de caboclinha rechonchuda e capitosa, que lhe déra a companheira, momentos antes de morrer. Fôra essa a unica vez que falhara a sua sciencia de mago. Será verdadeiro o aphorismo de que santos de casa não fazem milagres? — perguntava, benzendo-se trez vezes, a velha Eudoxia.
Toda a villa conhecia e estimava a repariguita. O pae tinha-a fóra de casa, com a gente d’um amigo intimo. Ia vel-a todos os dias e passavam longas horas sem que elle interrompesse o affectuosíssimo colloquio, que tão deliciosamente banhava de inenarraveis venturas o seu singelo coração.
Que gloria valia a de ser pae de similhante creatura?
III
Creara-a elle proprio, desde os primeiros dias da dupla viuvez do seu corpo e da sua alma. Descrever toda a serie de cuidados, de attenções, esperanças e sustos desenvolvidos por pae Francisco, seria traçar o poema de um heroismo commum no bemdito solo amazonico.
Fôra elle a sua ama secca, — mas disvelado como nenhuma. Tinha um geito especial para amimar a pequenita creatura, apaparical-a com terna bondade, que era um gosto espreital-o no desempenho d’essa funcção providencial. Havia, assim, n’aquelle extranho ser, duas entidades heterogeneas, uma dualidade admiravel, que tão profundo contraste estabelecia entre o terrivel feiticeiro abracadabrante e o pae melifluo, de olhos deslavados em sorrisos de adoravel meiguice.
Quedava-se o cabôclo, a cada instante, longo tempo a rever na face inexpressiva da creancinha as feições d’um ente estremecido, para sempre entregue á dissolvencia definitiva, no sombreado cemiterio da villa. O seu affecto fazia ricochete na muralha da morte e volvia inflorado de carinhos, fúlgido de enternecidas esperanças, a formar a aureola transcendente que exalçava o futuro da creancinha.
Felicia chamara-a, n’um augurio de ventura. Quantas horas não ficava absôrto, á beira rio, sonhando acordado mil felicidades para o enlevo da sua alma solitaria, para a filha idolatrada que ali medrava a seu lado, na força da vida ao ar livre, sem peias physicas a entorpecer-lhe a pujança da infancia?
Vieram, mais tarde, outros cuidados. Necessario se tornava dar fórma a um espirito vivo, a uma intelligencia agil e vigorosa. Já não bastavam as attenções materiaes. A ama sêcca devia tornar-se n’um educador perfeito e elle soube sel-o com exito, no seu meio, nos limites da propria visualidade espiritual. Não têm as almas, ainda as mais simples, um mundo de idéas sãs, um thesouro de sentimentos puros, tão efficazes na comprehensão dos deveres moraes?
A philosophia do pagé de Curralinho era singela como a simplicidade da sua existencia, vigorosa como a pujante natureza circumdante.
Mas a creança da vespera tornara-se mulher. Novos sobresaltos para o pae. Não lhe bastava a convicção de lhe haver insuflado á alma os mais sãos conselhos. Uma nuvem de desconfiança lhe entenebrecia o coração. Os sustos perseguiam-n’o sempre, mesmo no meio dos somnos agitados. A sua preoccupação constante era esta: amparar a filha contra o assalto da concupiscencia. Se houvesse necessidade de comparal-o a algum personagem do romantismo, nenhum vulto era mais adequado ao símile do que o do apaixonado truão de Francisco I.
Pozera-se de má catadura, encanecêra, tornara-se rispido e intolerante com todo o mundo. Em cada individuo via um ladrão da sua felicidade. E, nos dialogos com a filha, ao luar, ao longo da ribanceira, dominando o
Amazonas, tinha encantadoras expressões de meiguice, phrases cariciosas como osculos de creança amimada, — admiraveis esforços para prender e enleiar definitivamente um affecto que elle receiava — ou adivinhava? — perder um dia. Esta unica idéa lhe dava febre. Era, então, n’uma languidez voluptuosa e pura, que recebia os beijos filiaes da virgem, perfumada a periperioca, agitada n’uma ternura reconhecida.IV
Este encanto durou pouco. Felicia amara, alfim, outro sêr extranho, com um novo sentimento cuja diversidade reconheceu tão grande, que não teve animo para confessal-o.
Ignorando tudo, o pagé contemplava satisfeito, na apparente tranquillidade da caboclinha, o são producto dos seus conselhos.
Um regatão de longe — lá das bandas de Macapá — fôra o perturbador d’aquelle singelo coração. Era moço, valente, um bello typo de tapuia varonil. A sympathia da rapariga fez-se primeiro enthusiasmo doidivanas, assumiu depois as proporções de violenta paixão.
Felicia não tinha já a mesma fixidez attenta no olhar quando a encarava o pagé. Distrahida, oppressa por vago mal estar, buscava a solidão, isolava-se por gosto. O pae attribuia esse estado a causas puramente physicas. Entretanto, quem surgisse, alta noite, por perto do copiar da casa onde vivia a moça, havia de enxergal-a nos braços do regatão, soluçante de amor, gemente de desejos.
Não podia prolongar-se o novo estado de coisas. Um dia, ao amanhecer, foi o pagé avisado que lhe fugira a filha. Por uma reveladora coincidencia, desapparecêra também do portosinho da villa a canôa do regatão.
O velho cambaleara, caíra sem sentidos. Trez semanas esteve á morte, ardendo em febre, delirando entre pesadêlos horriveis. Todo o povoado emocionou-se á narração de tamanha dôr. Os mais endurecidos corações, aquelles que chamavam feiticeiro e perverso a pae Francisco, tiveram para elle um movimento de sympathia, uma pontinha de dó.
Eudoxia, entretanto, não ficara socegada. Varonil, resoluta, organisou, com o auxilio de dois amigos que equivaliam a duas dedicações poderosas, uma expedição em busca de Felicia.
Alguém disséra que o regatão tomara o caminho de Gurupá. Na mesma direcção seguiram a parteira e seus auxiliares. Dois mezes depois — nem tanto, talvez — estavam de volta. Rocebeu-os o velho n’um desanimo, com um sorriso triste, quasi idiota, na face desfigurada.
Tudo inutil. Felicia morrêra em viagem. Havia-a destruido a variola. O regatão enterrara-a n’uma escarpa e ficara louco, ao abandonal-a para sempre á orla da floresta, sob uma chuva interminavel de flôres capitosas.
Pae Francisco manteve-se calado, imperturbavel; só dois grandes fios de lagrymas deslisaram-lhe pelas faces, cortando o rictus que a immensa dôr formava em cada commissura dos labios.
Meia hora depois, elle também partia, sem despedidas, n’uma canoinha leve, subindo o Amazonas.
Eis porque, ha pouco, o encontramos, lavado em suor, a cabeça ora para deante, ora erguida, no movimento dado ao remo. Ha alguns mezes já que saíu de Curralinho. Segue pela beirada, aproveitando o remanso do rio Negro.
Foge do logar onde fôra feliz. Não terá direito a aspirar ao lenitivo para a alma lacerada?
Como nenhum som de vida animal perturba a tranquillidade das coisas, está perscrutando a intensidade dos proprios pezares, sopesando a agonia do coração encarquilhado.
Vae sempre para o centro, n’uma ascensão dolorosa, martyr da bôa fé. No espirito, afagado por indefinida ternura, renascem-lhe vislumbres de esperança. Não é que pretenda esquecer o passado. Busca apenas o socego absoluto das florestas intactas, para dar largas ao pranto que não secca ha seis mezes.
Demais, no meio da pacificação circumdante, não poderá elle rever a seu gosto agridoces saudades e convulsar baixinho, muito baixinho, com a sua querida Felicia, — não
a fugitiva, — mas a outra, a pequenita, a que o preferia sempre, aquella que elle creara como ama secca e ainda conservava pura e infantil no fundo do amantíssimo coração?