Uma historia de amor
PRIMEIRA QUINZENA
I
Senhor, —
Não posso attendel-o. Tenho deveres sagrados a cumprir, uma posição social a zelar. Esqueça-me.
(Sem assignatura).
II
Senhor, —
Julgo-o um cavalheiro e acredito-o sincero, por causa da assiduidade com que me procura. Acceito o seu convite para jantar, — mas somente no intuito de o dissuadir d’essa loucura que nunca poderá ser correspondida. Até logo.
ELISA.
III
Sympathico amigo, —
Porque insiste? Estimo-o como um camarada, quasi como a um irmão. Não posso, entretanto, perdoar-lhe a impertinencia: — meu marido nunca será enganado.
ELISA.
SEGUNDA QUINZENA
I
Bom amigo, —
Exactamento como o senhor, estou bastante incommodada por tremenda enxaqueca, que obrigou-me a ficar deitada até agora. A sua amavel carta, cheia de phrases tão meigas, traz-me certo lenitivo e me dá a energia necessaria para tomar a penna. Demais d’isto, a satisfação de escrever-lhe faz-me esquecer os proprios soffrimentos.
Não me agradeça tanto o serão de hontem, ao jantar. Se o sr. comprazeu-se com a minha companhia, o mesmo aconteceu commigo; não tenho, pois, merito algum em fazer o que ditam os meus mais caros desejos.
Quanto mais conversamos, mais vou eu descobrindo no meu bom amigo sentimentos e gostos que correspondem aos meus. A surpreza rejubila-me; similhante analogia de caracter e de idéas é demasiado rara para que eu deixe de admirar-me, sobretudo se encarar as barreiras sociaes que nos separam e a differença de classe a que pertencemos. — A sua cartinha de hoje é uma pequena obra-prima de cariciosas phrases. Quero crel-o, desejo acredital-o. Já não posso duvidar do senhor. Julgo-o sincero, porque nada o obriga a ter procedimento egual ao seu. O sr. é demasiado superior de espirito para ligar tanta importancia a uma vulgar questão de materialismo. Por consequencia, a logica me compeliu a suppol-o franco em seus sentimentos apparentes. Quanto a mim, entrego-me toda ao senhor, intellectualmente. Juro-lhe que sou sincera, mesmo — e sobretudo — nas minhas ingenuidades.
O sr. é sceptico, já m’o disse; isto é, preveniu-me do trabalho que eu teria para fazer-me acreditar. Não ignoro as prevenções que têm os homens pelos sentimentos affectados. Todas as mulheres são enganadoras, voluveis, mentirosas, mas todas têm, comtudo, momentos de real sinceridade. Encontro-me em um d’esses momentos. E note, meu caro Jorge, que não digo isto para differençar-me das demais mulheres e tornar-me importante aos seus olhos. Não, porque possúo todos os defeitos acima enumerados. Melhor do que ningúem, sabe-o o senhor, porque estou prestes a enganar o homem com quem vivo. Verdade é que esse homem é um imbecil e que nunca sympathisarei com tal cathegoria de caracter. Não digo isto para desculpar-me aos meus proprios olhos, pois só me importo com a minha consciencia e não com alheias opiniões. Digo-o, sim, á laia de informações a respeito dos meus sentimentos reaes, no intuito de fazer-lhe comprehender que, do senhor para mim e reciprocamente, deve estabelecer-se uma corrente de escrupulosa sinceridade, pela simples razão de que eu e o sr. não somos impellidos um para o outro por outro interesse que não seja o nosso capricho, — ou, se mais lhe apraz e para falar mais exactamente, pela especie de correlação que existe entre os nossos dois espiritos.
Como vê, sou mais franca do que o sr. É talvez um mal. Por principio, uma mulher, posto que enamorada, nunca deve revelar inteiramente a sua alma. Eu, porém, tenho-o na conta do mais leal dos homens, do mais generoso dos corações. Serei algum dia despertada cruelmente d’este adoravel sonho?
Percebo que tenho ainda muitas coisas a dizer-lhe: tomo, pois, outra folha de papel. Ha de fazel-o sorrir tamanha expansão. Que quer? Tenho tantas phrases agitando-se-me na cabeça.... Emfim, perdôe-me. Desejo que o sr. me conheça bem e saiba completamente o que sou e o que quero.
Não imagina até que ponto aprecio a attenção tão firme mostrada para commigo, vae fazer um mez. Agradeço-lh’o deveras, porque isto me satisfaz immenso. Lembra-se da carta em que lhe pedia que me esquecesse? Pois bem; hoje tem o meu querido amigo a razão por que lhe dizia essas palavras. Não o conhecia bem e receiava affeiçoar-me demasiado a um homem cujas apparencias eram as de um aristocratico viveur. — Sinto que hei de amal-o, que hei de amal-o talvez mais do que o sr. deseja e o amor é, ás vezes, cruel tyranno intransigente e molesto. O sr. agora está prevenido: póde defender-se. Não venha um dia lamentar-se pelo facto de haverem-se tornado demasiado serios os meus sentimentos.
Tenho o genio tranquillo. De temperamento frio, difficilmente me enthusiasmo. Com respeito a questões graves, nada emprehendo sem antes prever os resultados do acaso ou do imprevisto. Nunca foi meu fraco a leviandade. É por isso que faço questão de patentear-lhe a alma da mulher que o senhor tem deante dos olhos e que espero nunca será considerada com volubilidade.
Conhece-me agora, querido amigo. Esta carta é uma confissão: nunca fiz outra egual. Sem falsa vergonha revelo os meus defeitos e fraquezas, sabendo a quem os confio.
Falemos agora de coisas que interessam á vida physica. Nada tenho a dizer-lhe sobre o ponto que trata do aposento em questão: approvo o que fez. Veja que o ninho seja bem discreto, bem mysterioso, para esconder perfeitamente a felicidade que vae abrigar.
Até amanhã.
ELISA.
II
Jorge, —
Volto do passeio n’este instante com meu marido e encontro a tua carta. Então, meu querido, já estás mau e injusto sem motivo!
Em primeiro logar, dizes — a senhora, o que, na correspondencia, é um matiz bem accentuado de frieza. Não é bonito isso.
Depois, agastas-te sem razão. Não conheces acaso a minha existencia? Não ignoras que goso de uma liberdade limitada. Além d’isso, não temos ambos, eu e tu, as nossas respectivas obrigações? Differentes, sem duvida, dir-me-ás, porém isso não impede que seja imprescindivel cumpril-as todas.
Tens graça affirmando que eu podia arranjar um pretexto! Invento-os todos os dias, mas lá vem um instante em que os argumentos minguam e mistér se faz pagar o tributo da propria presença, como hoje aconteceu.
Não sejas, pois, injusto: — eu soffreria bastante.
A vida que levo não tem alegrias para mim, acredita-me. E, se vens ainda augmentar-me os desgostos com recriminações que não mereço, ainda mais me entristecerás.
Amo-te, bem o sabes. Se não o crês, é porque impede-te o teu scepticismo. Como provar-te, entretanto, o meu amor?
Vê se sou corajosa: escrevo esta carta (e bem notas com que tranquillidade), deante de quem sabes. Não posso mostrar mais audacia, mais temeridade, parece-me. Elle anda ao redor de mim, com olhares atravessados, que me encolerisariam se eu já não estivesse tão predisposta contra elle.
Até logo. Não sejas tão mau com a tua
ELISA.
TERCEIRA QUINZENA
I
Meu querido, —
Vou mais uma vez enfastiar-te com a minha prosa quotidiana, porém agora tenho uma desculpa: — estás doente.
Como te encontras hoje? Cada vez melhor, presumo-o e desejo-o com toda a minha alma.
O tempo está mau, trata-te bem, não faças imprudencias nem affrontes o ar humido e doentio das ruas lamacentas depois da chuva d’esta noite.
Muito penso em ti e soffro extraordinariamente por te não ver ha longos dias. Tu, meu amigo, que tão bem conheces o coração das mulheres, ainda desconheces o meu, que, no emtanto, possues inteiramente... ou antes, conheces demasiado a esse pobre musculo e é por isso que ás vezes o fazes soffrer bastante.
Adeus, meu amor. Trata-te com cuidado e recebe toda a ternura da tua
ELISA.
II
Jorge, —
Depois do que se passou hontem á noite entre nós, tomo a prudente resolução de libertal-o da minha presença, que o importuna de certo tempo para cá. Esta carta é a da sua alforria: sae ao encontro das suas intenções, que, mais hoje, mais amanhã, seriam propostas de certo.
Não me surprehende a sua conducta. Sinto não haver-me equivocado, porque amava-o. O sr. é muito caprichoso e nunca teve affeição por mim. Nunca houve no mundo caracteres tão deseguaes como os nossos. Os nossos gostos e sentimentos andavam em regiões absolutamente oppostas, bastante tarde o comprehendo.
Adeus, por tanto. Cure-se, restabeleça depressa a saúde, que eu desejara saber completa, mesmo sem nunca tornar a vel-o. Adeus.
ELISA.
—
Conforme.