GAIVOTAS
 

GAIVOTAS


 

I

Um bando de gaivotas, aos pares amoravelmente aproximados, ergueu o vôo do mattagal e, cortando o espaço por de sobre o borbulhante estirão do rio, veiu seguindo o vapor, a poucos metros de distancia da pôpa, ora alteando-se á ponta do mastro, ora descendo rapido, de olhar incisivo e lesto bico, até esfrolar levemente a agua com as cendradas pennas da aza desfraldada.

O marulho da agua parecia excital-as, espicaçar-lhes a actividade em céleres convites de festiva digressão a ignotas paragens, onde o ceu fosse azul, — muito azul, — e a verdura das ilhas tivesse os tenros e alegres tons que apresentavam os aningaes das margens defronte das quaes passavamos n’aquelle instante.

Revoavam jubilosamente, as gaivotas, aproximavam-se do vapor, descrevendo elegantes circulos, n’uma palpitação d’azas similhante ao ruflar do leque entre os dedos d’uma bella mulher, quando impéra, deslumbrante de graça, nos salões selectos. Vinham, parecia quererem invadir a coberta, participar da ruidosa vida que sobre ella apresentavam os passageiros, reunidos em intimas palestras.

Sentado á pôpa, eu silenciosamente fitava aquelles aquaticos viageiros ignorados. Seguia-lhes os caprichosos folguedos sob a limpidez do ceu, com o olhar perdido traz elles, emprestando-lhes idéas, dando a mim proprio as razões d’esse livre gaudio perante a pompa triumphal da tarde moribunda.

Formavam as margens visiveis do rio largas ilhas meio submersas, de que apenas se viam emergindo da agua, — como braços erguidos para o espaço n’um enthusiasmo viril de canticos de louvor, — milhares d’arvores variadíssimas, esparzindo perfumes resinosos e estalando as cascas sob a demasiada affluencia das tepidas seivas vivificadoras. Como grandes açafates de caprichosas fórmas espalhados por toda a latíssima extensão do rio, essas ilhas balouçavam as farfalhantes cômas glaucas, onde os pássaros, papeando, entreteciam previdentes os diminutos ninhos e a robustez dos merityzeiros erguia pendentes os pesados cachos de fructos granadinos.

Pelas margens, começavam a acordar os innominados animaes noctivagos e um arruido extranho, abafado, levantava-se em surdina sob o machucamento das folhagens ondulantes.

E a tarde morria a pouco e pouco.

Depois, ao fundo da paizagem, recortaram-se escuras, encobrindo o sol, as longas montanhas sobre as quaes está erecta Monte-Alegre.

Um dos mais bellos crepusculos vespertinos começou então.

Quadro verdadeiramente formoso! O ceu, entestando com essas montanhas, apresentava todas as tonalidades do iris, n’uma pujança complexa de matizes prismaticos, e o sol, — como apertado entre ellas e a brunida cupula sideral, — disseminava pelo espaço crystalino feixes de raios luminosos em gigántea expansão que lembrava uma aurora boreal, um enorme clarão d’apothéose empyrea.

Pelo nascente, subiam gradativas trevas, como poderosíssimo senhor que sae a combate sem precipitações, na sua convicção d’inilludivel victoria.

Ao mesmo tempo, perto do zenith, un crescentesinho de lua e a estrella da tarde, — esta quasi tão luminosa como um raio do teu olhar, querida amiga, — scintillavam merencorios, como annuviados por incognoscivel saudade, entre longas nuvens delgadas, côr de pérola e lyrio, rendilhando-se no azul ferrete do firmamento.

As gaivotas, então, que tinham vindo a seguir-nos, — emquanto o meu olhar, da pôpa do navio, parecia desejar attraíl-as poderoso, — grasnaram freneticas e, de subito, descrevendo rapido circulo elegantíssimo, regressaram á terra d’onde tinham partido e fugiram veloces, n’uma actividade de movimentação d’azas perdendo-se ao longe, na meia escuridade do crepusculo.

Fiquei sosinho á ré, a fital-as... — a fital-as, oh! não! — a mirar o ponto do aningal onde se haviam perdido aquelles inconscientes sêres, que tanto me tinham enleiado o espirito nas invisiveis malhas dos seus largos circulos graciosos, descriptos no espaço, em reflexões movediças sobre as gorgolejantes aguas amazonicas.

II

Assim também fugiram-me precipitadas do seio as niveas alegrias, quando, levado pela embarcação, ausentei-me saudoso da terra onde ficaram as candidas inflorescencias do meu amor.

Como aquellas gaivotas, preguiçosas e sympathicas, os doces prazeres familiares deixaram-me seguir sosinho, breve regressaram á terra que idolátro na minha apaixonada effervescencia de enthusiasmo pela grande patria digna das maiores dedicações.

Vou-me rio acima, isolado e desconhecido, entre pessôas estranhas, separado de vossos enlevadores affagos, ó queridos entes cuja ternura deslaça-me a vida em loiras espadanas de luz puríssima e gentil! Sigo meditabundo, sem receber na alma entenebrecida um raio do vosso olhar, — um só raio que me illuminasse o peito, para pôr em relevo dentro d’elle toda a somma de santos sentimentos para vós, — sómente para vós — guardados alí!

A abafada canção da agua babujando os flancos do navio faz a surdina dolente que acompanha as mestas lamentações do meu espirito obsidiado pela afflicção das saudades.

Ás vezes, a deshoras da noite, quando o firmamento escuro apresenta-se deserto das suas luzentes tauxiações risonhas, e só a floresta da margem rebôa agitada pelo cadenciado barulho da possante machina, embalde busco pelo ceu do meu espirito certo par de estrellinhas annejas, — que são os doces olhos petulantes de minha filha, fanaes da vida minha.

E só a luminosa palpitação phosphorescente dos pyrilampos tremeluze rápida no tenebroso velludo dos aningaes da beira.

A solidão augmenta-me os pezares, quando a hora do crepusculo da tarde vem descaíndo vaga pela terra, deslisando do inflexivel pendulo do tempo com a dura impassibilidade d’uma desgraça tremenda.

Gaivotas, alegrias do rio! Alegrias, gaivotas do pélago da minha vida! Porque fugís tão velozes, sem vos deixardes agarrar por estas mãos, que vagam sem um apoio amoroso, sem vos deixardes aprisionar n’este peito, fremente de meigas paixões santíssimas?

 

Rio Madeira, abril.