O ISOLAMENTO

O ISOLAMENTO


 

A Coelho Netto

I

Ergui-me com a estrella d’alva, esta manhã.

Oppresso pela atmosphera pesada do aposento, saí logo ao terraço, a receber em cheio na face a brisa que, desde o interior da casa, eu ouvia sacudir valentemente as grandes arvores da floresta, ali perto.

Logo bebi, sôfrego, esse ar embalsamado que enchia o ambiente.

Uma alegria sem par empolgou-me o espirito, sem duvida suscitada pela grandiosa belleza circumdante. Embrenhei-me na matta, seguindo uma azinhaga. Começava a amanhecer. Havia no ar esse murmurio das aves que despertam, — bulicio tepido que só podem avaliar os madrugadores na roça, — um como roçar voluptuoso do frouxel suavíssimo que exorna as innumeras legiões canoras do Amazonas.

Não sei o tempo que andei quasi ás apalpadelas, ao longo do carreiro. Interessava-me tanto pelo duplo acordar dos ninhos e das plantas, que só reparei em mim mesmo quando, já dia claro, encontrei-me no cantro de uma bella clareira. Por cima de mim, balbuciava a brisa dulcíssimos rumorejos, agitando as copas verdejantes. Em derredor, porém, era, ás vezes, absoluta a tranquillidade das coisas. Por intermittencias, nem mesmo um ciciar de passarinho, ou esse mysterioso, farfalhante correr de lagarto, que parece suscitar não sei que extranhos sobresaltos nas florestas do meu paiz.

Formava a clareira como um salão circular preparado pela natureza para receber-me. E, para que nada faltasse, havia, ao fundo, extendido como um luctador exhausto, um grande tronco secular, que alguma tremenda tempestade derribara. Amplo, coberto do limo que arremedava a fôfa disposição dos estôfos valiosos, esse gigante vencido offerecia-me commodo assento rustico. Entretanto, não utilisei-me d’elle: sentindo-me bem, sentindo-me feliz, estava longe da fatiga. Por insensivel movimento de dominio orgulhoso, apenas puz-lhe o pé no dorso, vencedoramente.

Na mesma occasião, porém, penetrou-me o pavor: uma grande ave, um inhambú graciosíssimo emergiu d’entre as toiças de verdura fresca, de sob o tronco abatido e ergueu o vôo para o interior do matto, n’um largo ruflar d’azas com indubitaveis entonações zombeteiras, intoleravelmente escarninhas.

II

Quedei-me ali muito tempo, a seguir esta ordem de pensamentos.

No entanto, o ceu fôra devassado pelo hilariante clarão com que este bemdito sol da minha terra doira todas as coisas, em sua munificencia de soberano insupplantavel. Por toda a parte, só uma coisa via: luz, luz, luz, esse alastrar de claridade que penetra tudo, que dá aos objectos uma apparencia de alegria, d’intenso jubilo paradisiaco!

Pelo ar, cantavam sempre a brisa e as aves, estas menos talvez do que aquella, compromettida a fazer a larga harmonia da alígera volata.

A clareira formava agora um salão redondo alcatifado de velludo esmeraldino, illuminado d’uma orgia de raios, vibrante da deliciosa bacchanal dos passarinhos.

Minha alma dilatava-se mais no goso, até ali inexperimentado, de tamanha quietude, de tão profunda sensação do que é grato na liberdade.

O isolamento! Quanta paz na situação que esta phrase traduz! Que suaves delicias que meigo langôr frue o espirito no socego completo, divorciado dos cuidados da vida commum, senhor emfim de sondar a consciencia propria, com a qual anda, ás vezes, semanas inteiras sem ter um só instante para escutar-lhe as impressões, para confabular com ella, extremado dos sêres banaes e falsos que formam a nossa róda habitual!

Haverá porventura alguém que não preze esses momentos de silencio, nos quaes a alma fala comsigo propria, dizendo coisas ha muito sentidas e que, entretanto, parecem-lhe, — quando examinadas, — extranhas novidades jamais ouvidas?

Lembro-me agora da attenta concentração em que surprehendo, algumas vezes, no alto das ramarias, esses folgazões alados que garganteiam a todo instante crystallinas fiorituras sonoras. Dir-se-ia monologarem, resolvendo ponderoso assumpto, tal a profunda gravidade com que pendem a cabecinha, como recolhidos ao mais intimo de si mesmos.

Conheci um canario ao qual este genero de melancolia era habitual. Valente cantor, adorado em toda a vizinhança pelo talento com que desferia os seus bellíssimos gorgeios, valia a pena vel-o, quando espanejava-se ao sol, muito arripiado e gracioso, revolvendo com o bico, em rápida immersão, a agua do pequenino tanque de crystal da gaiola doirada onde vivia.

Tirava horas inteiras para cantar, saltitante e feliz! Podia dizer-se que empenhava-se em fazer um impossivel, ou que pretendia matar-se n’um excesso melodico e genial, superior ás forças de seu mesquinho sêr de passarito delicado!

Porém detinha-se de repente, entre um trinado e um silvo: detinha-se, interrompendo os elegantes pulinhos e, immovel na travéssa principal, ficava ali demorados momentos, a curvar a loira cabeça para um e outro lado, com uma sériedade que poderia fazer sorrir a quem, superficial e leviano, não ponderasse no mysterio d’aquelle inesperado recolhimento em que uma alma sonhadora e romantica parecia despertar n’elle com intercadencias fataes.

Terão também os passaros o prazer do soliloquio, a volupia da meditação? Terão também a percepção dos gosos inebriantes que provém da certeza de estarmos sós, — absolutamente sós, que ventura! — emfim libertados da tyrannia das convenções, capazes de desafivelar a mascara que atam-nos á face os respeitos mundanos?...

Bem quizera crêr na existencia, n’elles, de um poder de reflexão, pois d’outro modo não sei explicar aquella postura tão extranha, aquelle ar philosopho, essa expressão quasi humana, — tão humana, que surprehende!

É que, de certo, sentem o valor do socego, da paz completa, do tranquillizador influxo da solidão, cujos ineffaveis encantos fascinam, penetram o organismo d’uma tepidez emolliente, dão este balsamo incomparavel: — a alegria de viver!

E como assim não acontecer, visto que as aves são as dominadoras do espaço, os habitantes da matta, onde é de todo sensivel o poder do isolamento, d’esta situação, que póde ser considerada egoista e destruidora, porém que o meu espirito acaba de começar a comprehender, a reverenciar, a amar com descompassados enthusiasmos, porque vae-lhe perscrutando os largos arcanos de poesia e alento philosophico, o vigor que insufla a mente para aprofundar-se no estudo subjectivo, no conhecimento do eu, a desillusão a que arrasta-nos em relação ás pequenas miserias odientas do mundo postiço dos falsos e dos pretensos civilizados?...

Gloria ao isolamento! Bemdita sejas, ó grande floresta amazonica, osculada pela ardente paixão do sol, toda sonora dos folguedos da passarada chilreante, rica de estranhos mysterios e de mysteriosas riquezas inestimaveis!