MATER DOLOROSA
A Bellarmino Carneiro.
Ante-manhã.
O vapor seguia rio acima, bem perto da margem, tão perto que, ás vezes, as ramarias sussurrantes da floresta roçavam na coberta, estendiam galhos sombrios por de sobre a borda.
Ainda não haviam despertado as aves. O rio estava ali muito socegado, reflectindo o mattagal, banhando os aningaes avelludados. Não começára o arruido de passaros com que a alvorada é recebida, mas persistiam, comtudo, os derradeiros murmurios dos animaes e insectos noctivagos.
A bordo mesmo, á ré, tudo parecia descansar ainda.
Só o compassado resfolegar da machina denunciava que alguns entes velavam a meia-nau, attentos aos avisos do pratico de quarto.
Ao nascente, começava a desenhar-se uma tenue claridade, — o início do fugaz crepusculo amazonico. A sombria noite diluia o negrume n’um suave frouxel cinzento, muito mal esboçado, indeciso quasi. Estavam longe as meias tintas côr de pérola e lyrio, precursoras das tonalidades rosadas e azues, que a seu turno precedem as estridencias rubras e alaranjadas, em breve esbatidas na tranquillidade definitiva dos aspectos mais claros do dia adeantado.
Ia amanhecer.
Em uma porta de camarote, á pôpa, assomara um vulto sombrio de mulher. Esteve ali um momento. Logo encaminhou-se á borda, perscrutando a escuridão, por um lado, por outro, attentamente.
Aquelle vulto vestia um trajo simples, de rigoroso lucto.
Saudou-o da matta um silvo de passaro, — a primeira manifestação do despertar das aves.
O ambiente reacendia. Vinham da floresta virgem aromas capitosos de cumarú e baunilhas. Pelos cipós que desciam dos galhos, formando emmaranhamentos caprichosos, deviam escorrer as preciosas resinas que trescalavam tão fortes effluvios.
A mulher inspirou com força. Queria banhar os pulmões n’aquella olencia. Em seguida, suspirou um suspiro triste; suspiro de viuva? suspiro de mãe inconsolavel?
Clareara um pouco mais. Ja se percebia todo o labyrintho de braços folhudos que as arvores estendiam no ar, em contorsões. Uma suavidade paradisíaca se diffundia na meia tinta da luz crepuscular. Era quasi sol nado. Os passarinhos já haviam encetado o canoro certamen, volitavam céleres. Á beira-rio, nenuphares ostentavam-se opulentos por de sobre as polposas folhas que pareciam caprichos de esculptura em marmore verde. Mil flôresinhas silvestres salpicavam a vegetação das margens, sem nenhum acanhamento de uma ou outra victoria-régia que se dignava mostrar-se entre os massiços dos mururés, os quaes recebiam da correnteza um brando movimento de balouço. E, de um a outro lado do rio, eram grandes bandos altíssimos d’aves aquaticas, — patos grasnadores, pavõesinhos gemebundos, garças, cegonhas, toda a migração alada dos desertos amazonicos. Estava ali a natureza intacta, no seu inalterado aspecto milionario, tal como a viram os primeiros habitantes, as tribus lacustres que fôram as raças autochtones.
O vapor seguia sempre adeante, rente a terra, na mesma monotonia. Aquella ascensão parecia o desvirginamento d’um éden.
Iniciou-se a bordo a tarefa quotidiana. Alguns marinheiros appareceram trazendo baldes, desdobrando mangas para irrigação. Rompeu a subitas o sol, por além das mattas, n’um deslumbramento.
Fugiu veloz para o camarote a madrugadora passageira.
Horas mais tarde, o commandante atravessou o tombadilho, foi bater-lhe á porta. Seguiam-n’o trez ou quatro pessôas, que se conservaram a curta distancia, dissimulando a custo grande curiosidade.
Era de certo esperada a visita, porque, immediatamente, a mulher saíu a recebel-a. Com a luz do dia, via-se que era uma anciã, de rosto enrugado e fronte encanecida. Não tinha aquella physionomia outra expressão que a do mais fundo soffrimento. E os olhos brilhavam extranhos, muito negros e dilatados, entre longos cilios sedosos.
— Já estamos, — disse-lhe o commandante.
Ella penetrou de novo no aposento, mas volveu passado um instante. Trazia uma corôa de saudades, — uma corôa tosca, evidentemente barata. E, com o sorriso triste, murmurou ao capitão uma palavra de agradecimento.
Depois, apertando com as mãos crispadas a humilde corôa sobre o coração, foi ajoelhar-se junto á borda, suspirando, soluçando, toda desfeita em pranto.
Ali perto, na floresta, rebrilhavam flôres de sonho, — extranhas orchídeas gigantes, catléas variegadas, osculadas de coleopteros zumbidores. Crescia triumphal o canto dos passarinhos.
O grupo de passageiros arredára-se, n’um movimento de involuntario respeito por aquella sincera dôr ignorada. No meio d’elles, o commandante sentou-se taciturno e falou:
— Não notam? Estou emocionado. Ha doze annos que vejo, em cada viagem, duas vezes repetir-se este espectaculo e, no entanto, até aqui me não familiarisei com elle. A prova é que abala-me ainda, como da vez primeira que a elle assisti. Onde encontrar explicação para isto? De certo que no immenso impulso d’essa dôr, na grandeza do sentimento que a provoca e que ha de haver compungido o coração dos senhores todos, não é verdade?
O grupo teve um movimento egual de assentimento. Em algumas physionomias brilhava uma curiosidade inequivoca. Mas o capitão proseguia:
— Vou referir-lhes a causa d’este espectaculo com que não contavam certamente os meus amigos. Esta senhora é a viuva do antigo commerciante C. A., de Belém. O marido possuia seringaes no alto Madeira, administrados por um primo. Raras vazes vinha a estas paragens: a escala dos seus negocios no Pará impedia-o de visitar a propriedade, perto da fronteira boliviana.
Tinham um filho unico, — o pequenito Anselmo, — um mimo de creança, que os senhores haviam de estimar se o vissem, uma só vez bastava. Moreno, olhos negros e vivazes, tinha na franca physionomia alegre a manifestação exacta d’um espirito aberto e elevado. Sympathico a valer, bem educado aos onze annos, todos o queriam sobremaneira.
Esta creança, um dia, perdeu o pae. Aquella senhora que ali está em pouco tempo soube que os seus haveres se achavam reduzidos. Ella, que sempre vivera na abundancia, não teve uma palavra de queixa. Abençoando á memoria do eterno ausente, resolveu retirar-se para o seringal, trabalhar como o ultimo cabôclo, afim de attender á instrucção do pequeno. Para este voltaram-se todos os seus affectos. Quem ignora ahi como sabem amar as dôces mães amazonicas?
Dona Maria não tinha parentes proximos. Emprehendeu a viagem sem saudades, n’este mesmo vapor. Trazia comsigo o retrato vivo do morto, cuja existencia era continuada na louçania dos onze annos risonhos da creança.
A bordo, corriam felizes os dias. O Anselmito brincava sem pezares, tinha em cada passageiro um camarada. E a bôa senhora quedava-se horas esquecidas a fital-o de longe, no enlêvo da sua alma reflexiva, folheando recordações posthumas, revendo saudades discretas.
Foi ha doze annos. Uma tarde, não sei que passara ao menino: estava mais brincalhão do que nunca. Ia por toda a parte, correndo, risonho, amavel com toda a gente. De subito, um grito resoou, acompanhado d’um brado d’alma, indescriptivelmente lancinante! Olhem, ainda o tenho aqui, a vibrar-me nos ouvidos, esse grito de mãe desesperada!
O Anselmo cavalgara o parapeito, n’um instante de descuido de todos nós e, perdendo o equilibrio, rolara para o abysmo. Foi além, defronte d’aquella immensa sapupêma. Em breves minutos lá estaremos. Parou o vapor, desceram escaleres, fez-se inuteis pesquizas durante vinte e quatro horas seguidas.
O cadaver adorado não appareceu.
De então para cá — e quantas viagens tenho eu feito? — a infeliz mãe não deixa o Mahissy. O seu affecto retempera-se em passar incessantemente por sobre o sitio onde as aguas caudalosas do Madeira tragaram aquelle corpinho tão fragil e tão querido. De cada vez que por aqui singramos, dona Maria ajoelha-se lacrimosa e, ao chegar ao logar fatídico, arroja piedosamente ao rio uma corôa de saudades artificiaes. Não tem aqui flôres naturaes, a pobre; mas acaso não são bem viridantes as flôres do seu coração, as tristes flôres do pezar eterno?
Nunca mais foi a terra. O seringal, vendeu-o logo, pela metade do preço, Gasta o dinheiro em passagens para si, e corôas para o anjinho. Já devem estar bem reduzidos os capitaes da desgraçada. Causa-me isto uma lastima profunda. Mas attendam...
Dona Maria erguera-se, n’um impulso desvairado. Levantou por cima da cabeça a mesquinha corôa toda banhada de sol e arrojou-a á agua.
O rio tragou a funebre contribuição, fechou-se murmuroso, em circulos concentricos. A anciã tornara a cair genuflexa, soluçante e transfigurada no seu apaixonado desespero.
Em terra, bem á orla da floresta ancestral, mil aves garrulavam na copa gigante d’uma feroz sapupema secular.