Yaras paraenses
 

YARAS PARAENSES

 

No copiar da chacara, aquella noite, haviam-se reunido alguns vizinhos do commendador Esteves, o principal proprietario do Pinheiro.

Rêdes fechavam os angulos, pendentes dos esteios. Era uma roda de homens. Todos balouçavam-se, acalorados, aguardando o assahy que n’esse momento a mulata Josepha amassava na cosinha.

O luar de agosto penetrava em diagonal, diaphano, trazendo toda a melancholia profundíssima das incomparaveis noites equatoriaes. Da matta pouco distante, lavada de luar, vinha o monotono arruido dos insectos nocturnos, o alarido dos cururús teimosos. Na gaiola pendente do tecto sem fôrro, um caraxué silvava. E do rio, que corria ali perto, ao fundo da ribanceira, subiam com a brisa refrigerante os rumores dos barcos de pesca fazendo-se ao largo, para a foz.

Fumava-se, conversava-se. Haviam já discutido os negocios do dia, na capital. Esteves encetara mesmo um poucochinho de politica. Portuguez de nascimento, não queria immiscuir-se em assumptos partidarios; mas tinha por elles sua predilecção e nunca deixava de externar uma ou outra opinião, sempre muito conservador e ordeiro.

N’essa tarde, viera com elle passar a noite na rocinha o velho Barriga, seu aviado do alto Xingú. Era um cabôclo adiposo, de ventre proeminente e face larga. Apparencia insignificante, matreirice innata: o typo commum do seringueiro indígena. Trouxera a mulher, que já estava recolhida ao quarto destinado ao casal.

Achava-se também presente o subdelegado Fonseca, antigo solicitador dos auditorios, agora enviado ao Pinheiro afim de preparar recursos para uma eleição proxima. Era esta a sua especialidade, ao que parecia. Em todo o caso, rendia mais do que a primitiva profissão. Um presidente vindo da Côrte não tivéra extraordinaria difficuldade para convencel-o d’isto.

Mas a palestra veiu naturalmente a versar sobre assumptos do sertão. A um quint’annista de direito, que villegiaturava todo o anno, explicara já o Barriga a pesca do pirarucú e o preparo da grude de gurijuba. O quint’annista era, n’este ponto, d’uma ignorancia absoluta: não admirava a sua curiosidade.

Os demais circumstantes escutavam n’um silencio discreto, bocejando. Nas intercadencias da narrativa, apenas se ouvia o ranger das escápulas pelo movimento das rêdes e o farfalhar dos galhos, matta fóra.

Uma voz reclamou um conto indígena, uma lenda amazonica. Não comprehendeu a phrase o Barriga. Quedara-se a olhar o interlocutor, cortado.

— Historias de bôto, do curupira, da mãe d’agua, — explicou o subdelegado.

— Han! — rosnou o cabôclo. Tudo isso é mentira, acredite!

— Como! Pois o senhor atreve-se a negar o que todos no sertão asseguram ser verdade evidentíssima?

Sorriu o velho, superiormente. Tinha no rosto uma profunda piedade, pela bôa fé do cidadão. Ergueu-se, afivelou o cós da calça e, espreitando para o lado do quarto da mulher, congregou os companheiros em circulo diminuto. Estava transfigurado: era um philosopho stoico.

— Vocês ouviram já falar em yaras, não? — perguntou. Pois é tudo mentira também.

E abaixando a voz:

— Só ha uma especie de yaras, — proseguiu. Essas, porém, não vivem no fundo dos rios da minha terra, estão, ahi, na cidade; vi hoje á tarde uma porção, quando fui com seu Esteves tomar o vapor. São as mulatinhas cheirosas a periperioca e jasmins, sabem? as verdadeiras yaras encantadas. Mas precisamente não é para o abysmo das aguas que arrastam a gente!...

— Seu Barriga, venha dormir! — gritou no outro extremo do copiar a encanecida e rotunda esposa do velho cabôclo do Xingú.