UM ANNIVERSARIO
 

UM ANNIVERSARIO


 

Á memoria de minhã irmã
A meu irmão.


 

Seis annos, hoje, que finou-se a mais santa das creaturas, a mais querida e amoravel das mães.

Perante a emotividade profundíssima do meu ser, não tem hoje poder as largas pompas magestosas d’este romper de dia sereno sobre a paizagem Assoalhada, vibrante de esplendor, fremente de canções d’aves silvestres. Ao contrario, tudo me parece melancholico, monotono, quasi hostil, porque recebo as impressões externas atravez dos meus sentimentos e estes concentram-se nas amaríssimas dôres excitadas pela inapagavel recordação da morte de minha mãe!

*

Ha d’estas originalidades no fragil espirito humano: diz alegres os dias pluviosos, encontra-lhes graça, apraz-se em aspirar humidade na meia-sombra dos nevoeiros, — se algum prazer abala-o jubiloso; entretanto, encara indifferente ou raivoso as glorias da natureza; não tem um olhar para as galas triumphaes do espaço azul rutilante, acolchoado d’alvas nuvens pannejadas harmonicamente; enfastia-se e agasta-se até com a passiva tranquilidade das coisas, com o chilrear dos passarinhos, — quando algum desgosto lateja-lhe no coração encarquilhado ao peso das grandes dores supremas!

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Estou a recordar-me das funebres e tremendas peripecias d’aquella inolvidavel tarde de 21 de abril, ha seis annos.

Uma pequenina alcova de matrona, — grave aposento destituido de luxo banal, apenas confortavel. Ao lado d’um guarda-vestidos, pesado e bom, uma mesa coberta de frascos de medicamentos com etiquetas multicôres, borradas de receitas pretenciosamente escriptas em termos barbaros, chocantes de ouvir, indicando venenos medidos aos millesimos, com mysterio.

Ao fundo, uma cama austera, toda branca em seus lençóes e colchas, sob os quaes desenhava-se um corpo longo, pouco amplo, de que apenas via-se, repoisada em grandes travesseiras alvas, uma cabeça de mulher, encaixilhada em bastos cabellos negros, lustrosos, apenas aqui e ali, de longe em longe, irisados de fios brancos que desprendiam o brilho metallico da prata polida.

Os olhos, semi cerrados, fitavam um ponto unico da parede fronteira, onde um pequeno raio de sol, atravessando o arco de uma janella da sala, fixava-se insistente, como receioso de desapparecer além, atraz das casas da praça, ou desejoso de não abandonar, no meio-tom confuso d’um crepusculo precoce, aquelle quarto mortuario, em que estava para começar uma agonia. O olhar de minha mãe persistia fito no luminoso circulosinho, que accendia de amarello a brancura da parede nua.

Quem sabe o que vém os moribundos nos seus derradeiros momentos lúcidos? Que visões obsidiam-lhes os ultimos, instantes, subjugando-lhes o espirito já tão enfraquecido, dominando-os poderosamente? Vêm pela ultima vez o goso de alguma ventura occulta, entristecem-se pela proxima separação do encanto da vida ou entrevem já o beatifico descanso interminavel que aguarda-os no pó da sepultura?

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Quasi seis horas. Continuavam os olhos presos ao circulo luminoso, que subira mais, approximando-se do tecto, n’um deslisar de vida que se extingue suave.

Pelo rosto emaciado de minha mãe não corria sombra de soffrimento. As faces cavavam-se levemente, o nariz afilava-se, com a transparencia de cêra dos entes que vão morrer. Entreabertos, os labios deixavam passar a respiração com um offêjo ciciante e molesto, brandamente. Dir-se-ia dormitar a enferma, a não serem os olhos, agora um pouco mais abertos do que antes...

Em torno, alguns parentes vigiavam immoveis, com a expressão contristada, transida, que temos ao esperar a morte. Á cabeceira, de pé, encostada ao espaldar do leito, minha irmãsinha chorava em silencio, enxugava as incessantes lágrymas, suffocava os soluços, para não trair-se.

Quem atrever-se-ia a mostrar que soffria, perante aquelle resignado soffrimento que tão bem continha-se?

Meu irmão egualmente quedava-se perfilado, os olhos cravados n’esse rosto pállido, n’essa bemdita fronte eburnea que a virtude aureolava, n’esses doces labios que presentiamos frios, frigidíssimos, não obstante o ardente halito que esfrolava-os, ja osculados pela morte!...

Aquelles labios sonorosos, aquelles labios cantantes de mãe brazileira, — quem poderia mais galvanizal-os, fazel-os vibrar com o dulcíssimo affecto maternal que era o nosso ineffavel enlevo na quadra festiva da meninice descuidosa?

Onde iriamos beber os prudentes conselhos que esses puríssimos labios proferiram, deixaram cair em nossas almas como um desfiar de pérolas raras em taças de cristal?...

Quem seria, d’ali em deante, a amiga incomparavel, a santa companheira da nossa adolescencia ardente, a meiga representante d’esse encanecido vulto, — heroico prototypo da affeição familiar, da honra, da dignidade, de todos os boníssimos sentimentos, — que foi o nosso Pae?....

Oh! desgraçados que eramos! N’aquelle impassivel expirar de tarde equatorial pomposa e abrazadora, iamos perder para sempre, — para sempre! — o nosso mais valioso dote, a vida de nossa Mãe!...

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Seis horas e poucos minutos, Desapparecera do tecto, sempre seguido pelos olhos da moribunda, o circulo luminoso, a despedida do sol á vida periclitante. Desmaiara mais, tornara-se apenas uma tênue mancha amarella, breve transformada em sombra quasi imperceptivel. Depois, esbatendo-se gradualmente, fôra supprimida. Desappareceu: começou a agonia na enferma.

É doloroso assistir ao estertor dos moribundos. Terriveis embates soffremos na alma. Primeiro, o egoismo natural no homem, excitado pela lembrança de ir perder um ente amado; depois, a constatação de que nunca mais poderá gosar-lhe do convivio, ouvir-lhe a fala affectuosa, oscular-lhe a fronte calma, as faces sorridentes com a immensa candura da virtude. Porém onde haverá mais requintado, mais vivo e agudo soffrer, do que na propria sensação que experimentamos da agonia do moribundo amado? Em que série de martyrios archi-excruciantes classificar esse desespero tôrvo, enlouquecedor, vibrante, que em nós erguem a comprehensão das dôres a que assistimos e a impotencia de não podermos participar d’ellas, tomar para nós a maior porção, attenual-as um pouco, com o osculo das mãos acariciantes e com a ternura emolliente dos beijos ultra-expressivos dos ultimos, dos supremos adeuses?...

Vinham-me ao espirito idéas estonteadoras, que levavam-me á meta da dôr. Ver soffrer a santa mulher que deu-me a vida, que tão feliz foi sempre em possuir nos braços enlaçantes os filhos queridos e amoraveis, era uma provação capaz de abalar-me a solidez da razão. E depois, ha sempre, á beira do tumulo de um ente que viveu em ligação intima comnosco, uma evocação, rapidíssima porém muito minuciosa, de todo o nosso passado.

E o meu passado... quão unido estava ao d’aquella moribunda, que em vão buscava, ao vaguear a vista já vidrada pelo aposento, o raio de sol que viera despedil-a da vida, dar-lhe á alma, por um momento, na hora extrema, a claridade immaculavel que ella sempre teve na consciencia, na honra!

Vi-me creança, buliçoso e festivo, sem um desprazer além do provocado pelas privações dos brinquedos. Vi-me em todas as situações da existencia, em todas as phases d’uma juventude agitada, em todas as peripecias das nossas viagens, das nossas diversões, dos nossos gosos. Em toda a parte, de qualquer modo que manejasse aquellas scenas retrospectivas, ella apparecia-me sempre como o misericordioso interprete dos meus votos de felicidade, o meu anjo tutellar, o amparo inilludivel da minha inexperiencia, o meu aconselhador ajuizado como todas as boas mães.

Quanta saudade, quanta, do meu passado extincto!...

*

Alguém tinha ido á egreja proxima, — a dez passos d’ali, no lado opposto do largo, — pedir o soccorro da religião e um levita acudiu, balbuciando preces indistinctas, a ungir quem ia morrer.

A apparição d’um sacerdote que traz o extremo sacramento a um enfermo apavora sempre. Ante similhante visita, eu e meu irmão principiamos de novo a chorar, — nós que pensavamos já ter exgottado as lágrymas, tão abundante fôra, desde trez dias, o nosso pranto.

Retirando-se o padre, — sempre murmurando orações em latim, — a agonia augmentou. Vizinhos tinham acudido, serviçaes e bisbilhoteiros. Causaram-me raiva, quasi molesto-os com uma demonstração mais evidente do meu enfado pela sua presença, quando desejara, a sós com os meus, receber o derradeiro alento da querida alma adoravel.

Porque ha de prender-nos a educação n’um circulo igneo, impondo-nos dominio, heroicos fingimentos, até nos mais tremendos instantes da vida?...

Soluços mais rapidos de minha irmã fizeram-me esquecer esta série de reflexões, voltaram-me para o leito onde estertorava já a doce companheira da minha innocencia.

Acabei de comprehender este redobramento de chôro, vendo acercar-se alguém com uma véla accesa, que foi posta entre as mãos afusadas e lividas da moribunda.

Minha mae ia morrer! Oh dilacerante, immensa dôr trazida por esta convicção!

Lancei-me de chôfre a beijar-lhe a fronte camarinhada de suor, os cabellos sedosos, negros como a afflicção de minha alma, as faces encovadas, os labios crispados, álgidos, por entre os quaes esgueirava-se um lancinante estertor crescente, que dizia demasiado a aproximação do momento fatal... Allucinado, pensei que a minha vitalidade, a minha florida juventude poderia reanimar, devolver á vida aquelle espirito immensamente amado e em vão tentava aquecer-lhe o involucro com o ardentíssimo, impotente contacto dos meus beijos filiaes!

Mas, de subito, houve uma cessação na agonia... Estarreci... Iria minha alma incrédula defrontar um milagre?... Oh! Deus era bom, Deus existia então, além da lenda biblica!... O rosto de minha mãe serenara, conservando, todavia, uma expressão retrahida, grave, como quem escuta a voz interior d’uma interessante evocação da existencia inteira.

Os cilios palpitaram longos, n’uma projecção calma de sombra nas faces. Brilharam os olhos, tranquillos de expressão e, vagaroso, subiu o olhar para o sitio onde cravara-se antes o raio de sol extincto agora.

Logo, porém, desceu, afim de erguer-se ainda, para minha irmã, para meu irmão, para mim... Demorou-se fito em minhas pupillas lacrymantes esse inolvidavel olhar, tão sereno como a tranquillidade da sua alma sem mácula, translucido n’uma expressão de quem medira o alcance do grande minuto final.

Quem poderá estereotypar o ultimo olhar das mães aos filhos extremecidos?

Attonito, baixei-me a receber o afago d’esse olhar tão expressivo como um beijo mudo. O milagre providencial ia operar-se, de certo. Eu abençoava já o eterno Bemfeitor da humanidade... ingênuo no egoismo do meu almejo.

Os labios, no entanto, descerraram-se. E, emquanto os olhos, um nada mais vitreos, vagavam sobre os trez rostos dos filhos surprezos, transidos de admiração e esperança, aquella bôcca lívida moveu-se no balbucio inextrincavel d’uma phrase indistincta que, certo, era uma prece, um conselho bom, uma benção, um adeus!

E os olhos fecharam-se, no mesmo calmo palpitar dos longos cilios, os labios contrahiram-se á passagem d’um suspiro mais longo, — um soluço dolentíssimo, — e a cabeça pendeu á direita, buscando o meu primeiro beijo a um cadaver amado, quente do ultimo esforço para dizer-nos com a vista a intensidade insondavel do seu carinhoso affecto!

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Ha seis annos passou o horrendo transe que prostrou-me louco sobre os despojos funebres da mais santa e querida das Mães.

Dura sempre a dôr d’um filho amantíssimo? Creio bem que sim. Investigando a incalculavel profundez dos meus pezares, cotejando as impressões de hoje com as do anno passado, com as do outro anno, do outro e do dia em que estalou sobre mim a grande fatalidade, verifico a persistencia da mesma dôr molesta, intima, enorme, saudosamente triste, que levanta-me no espirito uma raiva contra a gloriosa expansão d’esta manhã rutilante e contra o gorgeio sonoro das aves, que estão, agora mesmo, a lembrar-me os doces cantos simples da infancia, quando, todo prazer e venturas, meu coração acolhia-se no tépido sacrario de affectos e caricias que era para mim o colo amigo e protector da mais amoravel de todas as mães!

Onde estão os meus deliciosos sorrisos infantis de outr’ora?...

 

Rio Madeira, 21 de abril.