Entre as Nympheas/O cemiterio da floresta

 
O cemiterio da floresta
 

O cemiterio da floresta


 

Hontem pela tarde o meu espirito confrangeu-se inteiro perante inesperado espectaculo, cuja reminiscencia me faz pensar ainda e arrasta-me tremula a mão, na tarefa de consignal-o no papel.

Vou referir-te, meu amor, o que viram meus olhos, e o que meu coração sentiu n’aquelle instante d’íntimas reflexões maguadas.

Cortada em rapido declive sobre a beira da agua, em meio á floresta densa, abandonada de todos, uma clareira fazia-se abrupta e essa clareira era um cemiterio, um pequeno campo santo solitario e melancholico, — sympathico todavia, — salpicado de cruzes toscas e negras!

A bordo, alegres conversações travavam-se aqui e ali, sob o oiro refulgente do sol no estivo desabrochar das claras horas diurnas. Ninguém parecia attentar n’esse triste sitio de repouso, sobre o qual a tripudiante passarada das mattas volitava cheia de inconsciencia, garridamente estrepitosa e jovial.

Alargava-se o rio ali defronte, muito socegado, todo brunido das reflexões solares, como se recebido houvesse um grande banho de prata fundida.

E um rumorejar da folhagem, dos dois lados do cemiterio e ao fundo, fechando o horisonte do quadro, cerrando a escarpa, como que parecia entoar a langorosa monotonia d’uma surdina risonha do prazer, sacudida em amplas vibrações de volupia.

Entretanto, o meu espirito entenebrecia-se pouco a pouco. Uma tristeza empolgou-o forte e minha alma deslisou para as mudas divagações dos sonhos acordados, das reflexões abstractas em que os olhos voltam a força objectiva para o interior e, eliminando o seu poder observador do mundo externo, nada comprehendem do que vem, porque só o cerebro trabalha dentro da materia e o seu meio de acção anniquila-se perante o vigor do espirito.

De quem aquelles despojos materiaes ali inhumados, longe dos centros de povoação, roubados ao conhecimento mundano, subtraídos á vaidade dos homens, entregues á terra com toda a simpleza das grandes devoluções pungentes, restituidos á obscuridade do nada para sempre, para sempre furtados á ultima recordação marmorea que lhes lembrasse o nome na derradeira falsidade dos epitaphios campanudos?

Quantos heróes ignorados se não occultariam n’aquelle recinto, sob a leve camada de terra ás pressas lançada pelos vivos por cima de seus cadaveres meio decompostos?

Ali não vinham os falsos amigos ostentar o seu fingido pezar, com o recolhimento das feições e a compostura do trajo que predominam pelas cidades, onde até a inhumação é um luxo mais ou menos apurado. O marido infiel, respirando emfim livremente após a quebra do fio que prendia-lhe o alvedrio, não viria ali mais uma vez insultar com uma dôr não sentida a lamentavel memoria da doce esposa traída, nem a joven viuva leviana, já com o espirito occupado por amorosos pensares — adulterio posthumo! — appareceria a ostentar o fingimento d’uma paixão que não possuia e que depressa esqueceu na elaboração de cartinhas piégas ao primeiro janota impudico que lhe deparou a sorte ironica.

Ali, sim, ao homem honesto e severo, á mulher virtuosa e amante, á innocente creancinha levada ao descanso perennal após breve apparição na terra, grato, gratíssimo seria inteiriçar os membros lassos e repousar alfim, descuidosos na eterna immobilidade dissolvente da ultima pacificação, — separados de toda a phantasia ephêmera e das convenções banaes da fallaciosa hypocrisia social.

Para quê ser lembrado após a morte? De que serve um marmore a reproduzir o nome d’um sêr cuja existencia o tempo consumiu, — candeia extincta, apagado fanal do pelago da vida? Recordar o nome d’um morto, perpetual-o petreamente, é ainda uma fórma de insulto, é uma violação que põe o finado na emergencia de se lembrarem d’elle os maus, os pérfidos, aquelles que não o comprehenderam em vida e que mais uma vez negar-se-ão a fazer-lhe a justiça de que tão sedento estava o seu espirito.

Estaes bem ahi, desconhecidos heróes do labutar quotidiano, ó martyres das privações no meio d’essa esplendida orgia de verduras amazonicas! Tão bem vos acho, que até sinto inveja ao ver-vos no pequenino cemiterio escalvado na rapida ribanceira.

A sorte restituiu-vos ao pó com a mais austera simplicidade. Voltastes á terra na modesta elaboração d’um acto naturalíssimo e a vida que fermenta entre as raizes d’essas bellas e grandes arvores viridantes vae buscar nos vossos cadaveres aquillo que lhe podeis dar: — a cada minuto um átomo de seiva, tirado á tépida fermentação da vosa carne, outr’ora palpitante, porém banal, agora repousada, mas operadora do beneficio que a lei natural do transformismo obriga-vos a prestar-lhe.

Apraz-me sentir que o meu espirito se consolaria quando, após á extincção da minha vida, algum ente querido, depois do ultimo beijo, enterrasse-me o corpo em vossa companhia, ó eternos moradores do cemiterio da selva! Julgar-me-ia feliz, com a satisfação e o orgulho d’este ultimo capricho realisado.

Teria, como vós, o supremo requiem dos trillos dos passaros, do farfalhar das ramarias densas, do desprezo dos raros viajantes n’estas longinquas regiões do Madeira e dos murmurosos beijos do gorgolejante listrão aquoso que incessantemente corre, ora envolto no denso velludo tenebroso da noite, ora ostenta-se brunido pelas amplas disseminações de prata fundida que o sol por cima d’elle parece lançar ás vezes, quando o ceu, sempre misericordioso, não verte sobre vós, lugubremente, paternalmente, as piedosas orvalhadas dos seus largos prantos pluviaes.

Salvè, desconhecidos martyres da familia amazonica, eternos habitadores do cemiterio da floresta!

Rio Madeira, abril.