I
 


Pavorosa illusão da Eternidade,
Terror dos vivos, carcere dos mortos;
D’almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Systema da politica oppressora,
Freio, que a mão dos despotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade:
Dogma funesto, que o remorso arreigas
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas:
Dogma funesto, detestavel crença,
Que envenenas delicias innocentes!
Taes como aquellas que no céo se fingem:
Furias, Cerastes, Dragos, Centimanos,
Perpetua escuridão, perpetua chamma,
Incompativeis producções do engano,
Do sempiterno horror horrivel quadro,
(Só terrivel aos olhos da ignorancia)

Não, não me assombram tuas negras côres,
Dos homens o pincel, e a mão conheço:
Trema de ouvir sacrilego ameaço
Quem d’um Deus quando quer faz um tyranno:
Trema a superstição; lagrimas, preces,
Votos, suspiros arquejando espalhe,
Coza as faces co’a terra, os peitos fira,
Vergonhosa piedade, inutil venia
Espere ás plantas de impostor sagrado,
Que ora os infernos abre, ora os ferrolha:
Que ás leis, que as propensões da natureza
Eternas, immutaveis, necessarias,
Chama espantosos, voluntarios crimes;
Que as ávidas paixões, que em si fomenta,
Abhorrece nos mais, nos mais fulmina:
Que molesto jejum, roaz cilicio
Com despotica voz á carne arbitra,
E, nos ares lançando a futil benção,
Vae do grantribunal desenfadar-se
Em sordido prazer, venaes delicias,
Escandalo de Amor, que dá, não vende.


II


Oh Deus, não oppressor, não vingativo,
Não vibrando co’a dextra o raio ardente
Contra o suave instincto, que nos déste;
Não carrancudo, rispido arrojando
Sobre os mortaes a rigida sentença,
A punição cruel, que excede o crime,

Até na opinião do cego escravo.
Que te adora, te incensa, e crê qu’és duro!
Monstros de vís paixões, damnados peitos
Regidos pelo sofrego interesse
(Alto, impassivo numen!) te attribuem
A cholera, a vingança, os vicios todos,
Negros enxames, que lhe fervem n’alma!
Quer sanhudo ministro dos altares
Dourar o horror das barbaras cruezas,
Cobrir com véo compacto e venerando
A atroz satisfação de antigos odios,
Que a mira poem no estrago da innocencia,
Ou quer manter asperrimo dominio,
Que os vaivens da razão franquêa, e nutre:
Eil-o, em sancto furor todo abrasado,
Hirto o cabello, os olhos côr de fogo,
A maldição na bocca, o fel, a espuma,
Eil-o, cheio de um Deus tão mau como elle,
Eil-o citando os horridos exemplos
Em que aterrada observe a phantasia
Um Deus o algoz, a victima o seu povo:
No sobr’olho o pavor, nas mãos a morte,
Envolto em nuvens, em trovões, em raios
De Israel o tyranno omnipotente;
Lá brama do Sinay, lá treme a terra!
O torvo executor dos seus decretos,
Hypocrita feroz, Moysés astuto,
Ouve o terrivel Deus, que assim traveja:
«Vae, ministro fiel, dos meus furores!
Corre, vôa a vingar-me: seja a raiva

De esfaimados leões menor que a tua:
Meu poder, minhas forças te confio,
Minha tocha invisivel te precede:
Dos impios, dos ingratos, que me offendem,
Na rebelde cerviz o ferro ensopa:
Extermina, destroe, reduz a cinzas
As sacrilegas mãos, que os meus incensos
Dão a frageis metaes, a deuses surdos:
Sepulta as minhas victimas no inferno,
E treme, se a vingança me retardas!…»
Não lh’a retarda o rabido propheta;
Já corre, já vozêa, já diffunde
Pelos brutos, attonitos sequazes
A peste do implacavel fanatismo:
Armam-se, investem, rugem, ferem, matam,
Que sanha! que furor! que atrocidade!
Foge dos corações a natureza;
Os consortes, os paes, as mães, os filhos
Em honra do seu Deus consagram, tingem
Abominosas mãos no parricidio:
Os campos de cadaveres se alastram,
Susurra pela terra o sangue em rios,
Troam no polo altissimos clamores.
Ah! Barbaro impostor, monstro sedento
De crimes, de ais, de lagrimas, d’estragos,
Serena o phrenesi, reprime as garras,
E a torrente de horrores, que derramas,
Para fundar o imperio dos tyrannos,
Para deixar-lhe o feio, o duro exemplo
De opprimir seus eguaes com ferreo jugo;

Não profanes, sacrilego, não manches
Da eterna divindade o nome augusto!
Esse, de quem te ostentas tão valido,
É Deus do teu furor, Deus do teu genio,
Deus creado por ti, Deus necessario
Aos tyrannos da terra, aos que te imitam,
E áquelles, que não crêm que Deus existe.

III

N’este quadro fatal bem vês, Marilia,
Que em tenebrosos seculos envolta
Desde aquelles crueis, infandos tempos
Dolosa tradição passou aos nossos.
Do coração, da idéa, ah! desarreiga
De astutos mestres a fallaz doctrina,
E de credulos paes preoccupados
As chimeras, visões, phantasmas, sonhos:
Ha Deus, mas Deus de paz, Deus de piedade,
Deus de amor, pae dos homens, não flagello.
Deus, que ás nossas paixões deu ser, deu fogo,
Que só não leva a bem o abuso d’ellas,
Porque á nossa existencia não se ajusta,
Porque inda encurta mais a curta vida:
Amor é lei do Eterno, é lei suave;
As mais são invenções, são quasi todas
Contrarias á razão, e á natureza:
Proprias ao bem d’alguns, e ao mal de muitos.
Natureza, e razão jámais differem:
Natureza, e razão movem, conduzem

A dar soccorro ao pallido indigente,
A pôr limite ás lagrimas do afflicto,
E a remir a innocencia consternada,
Quanto nos debeis, magoados pulsos
Lhe roxêa o vergão de vís algemas:
Natureza, e razão jámais approvam
O abuso das paixões, aquella insania,
Que pondo os homens ao nivel dos brutos,
Os infama, os deslustra, os desacorda.
Quando aos nossos eguaes, quando uns aos outros
Traçâmos fero damno, injustos males
Em nossos corações, em nossas mentes,
És, oh remorso, o precursor do crime,
O castigo nos dás antes da culpa,
Que só na execução do crime existe,
Pois não pode evitar-se o pensamento,
E é innocente a mão, que se arrepende.
Não vem só d’um principio acções oppostas:
Taes dimanam de um Deus, taes do exemplo,
Ou do cego furor, moleslia d’alma.


IV


Crê pois, meu doce bem, meu doce encanto,
Que te anceam phantasticos terrores,
Prégados pelo ardil, pelo interesse.
Só de infestos mortaes na voz, na astucia
A bem da tyrannia está o inferno.
Esse, que pintam barathro de angustias,
Seria o galardão, seria o premio

Das suas vexações, dos seus embustes,
E não pena de amor, se inferno houvesse.
Escuta o coração, Marilia bella,
Escuta o coração, que te não mente:
Mil vezes te dirá: «Se a rigorosa
Carrancuda oppressão de um pae severo,
Te não deixa chegar ao charo amante
Pelo perpetuo nó, que chamam sacro,
Que o bonzo enganador teceu na idéa
Para tambem no amor dar leis ao mundo;
Se obter não podes a união solemne,
Que hallucina os mortaes, porque te esquivas
Da natural prisão, do terno laço
Que com lagrimas, e ais te estou pedindo?
Reclama o teu poder, os teus direitos
Da justiça despotica extorquidos:
Não chega aos corações o jus paterno,
Se a chamma da ternura os affoguêa:
De amor ha precisão, ha liberdade;
Eia pois, do temor saccode o jugo,
Acanhada donzella; e do teu pejo
Déstra illudindo as vigilantes guardas,
Pelas sombras da noute, a amor propicias,
Demanda os braços do ancioso Elmano,
Ao risonho prazer franquêa os lares.
Consista o laço na união das almas;
Do ditoso hymenêo as venerandas
Caladas trevas testemunhas sejam;
Seja ministro o Amor, e a terra templo
Pois que o templo do Eterno é toda a terra.

Entrega-te depois aos teus transportes,
Os oppressos desejos desafoga.
Mata o pejo importuno; incita, incita
O que, só de prazer merece o nome.
Verás como, envolvendo-se as vontades,
Gostos eguaes se dão, e se recebem:
Do jubilo hade a força amortecer-te,
Do jubilo hade a força aviventar-te.
Sentirás suspirar, morrer o amante,
Com os seus confundir os teus suspiros,
Has de morrer, e reviver com elle.
De tão alta ventura, ah! não te prives,
Ah! não prives, insana, a quem te adora.»
Eis o que has de escutar, oh doce amada,
Se á voz do coração não fores surda.
De tuas perfeições enfeitiçado
Ás preces, que te envia, eu uno as minhas.
Ah! Faze-me ditoso, e sê ditosa.
Amar é um dever, além de um gosto,
Uma necessidade, não um crime,
Qual a impostura horrisona apregôa.
Céos não existem, não existe inferno,
O premio da virtude é a virtude,
É castigo do vicio o proprio vicio.