Sá ignorava o casamento do seu parente; ele nada lhe dissera na sua carta. Ficou, pois, bem surpreendido, achando em casa duas moças. Estavam na sala quando chegou.
Elisa, vestida de merinó preto, coberta de poeira da cabeça até os pés, com uma toalha passada no ombro, ocupava-se em espanejar ou lavar o mármore e os diversos objetos de cristal e porcelana colocados sobre os consolos.
Não pôde deixar de reparar na sofreguidão impetuosa com que ela executava esse mister doméstico.
Ao lado estava a criada, acompanhando com os olhos desdenhosos os rápidos movimentos de sua ama. Às vezes apanhava com vivacidade as saias e as conchegava para evitar que os borrifos d’água lhe manchassem o vestido de cassa, empapelada de goma.
Sá dirigiu-se a esta última, a quem tomara pela dona da casa, e cumprimentou-a:
— Minha senhora, eu desejava falar com o Sr. Coronel Vale.
A criada corou, confusa de prazer, e não achou resposta para dar. Elisa sorriu do engano, e, sem deixar a sua ocupação, disse para a criada:
— Vai, Maria; vai dizer ao senhor.
Depois, voltou-se para o moço:
— Pode sentar-se.
Ele quase não acertou com a cadeira, de vexado que ficou do seu equívoco. Essa moça começava desagradando-lhe; atirou sobre ela a culpa do seu ridículo. Pois chegava um estranho em sua casa, achava-a naquele estado pouco apresentável, e nem sequer ela mostrava o menor acanhamento? Parecia já ter esquecido que ali estava uma visita na sala. Andou a voltear de um para outro lado, mudando os vasos e arrumando os consolos as figuras de louça e alabastro. Uma coisa sobretudo impressionava logo nessa mulher: era a rapidez com que a sua cor mudava de tons, amorenando-se às vezes com um tom ardente e fusco.
O coronel entrou. Era um homem alto, uma nobre figura de velho.
— Elisa, disse ele com terna exprobração; não te ocupes com isso. Manda a criada fazer.
— Estava ensinando-a, Sr. Vale; respondeu ela sorrindo.
— Às vezes, disse o marido a Sá, sente uma tal necessidade de trabalhar, de arranjar tudo, que o dia não lhe basta. São as únicas ocasiões em que não é senhora aqui... mas, a quem tenho a honra de receber?...
Não se conheciam; nem o velho sabia ainda da chegada do rapaz. Sá foi recebido por ele, como era de esperar, com os braços abertos.
Seu aposento já estava preparado; compunha-se de duas peças no pavimento térreo, uma sala e uma alcova, que davam porta e janelas para o jardim.
A casa, situada em São Clemente, tinha três entradas, a principal no centro, e as outras laterais; destas, uma servia exclusivamente aos aposentos do moço. Assim, ficou ele de todo independente da família, podendo entrar e sair a qualquer hora do dia, ou da noite, sem incomodar, nem mesmo ser percebido.
Três anos passou ali partilhando a existência comum da família, tanto quanto o permitiam as regras da casa e os hábitos já estabelecidos.
Às oito horas da manhã subia para o almoço, que era servido unicamente para ele; os donos da casa só almoçavam às dez horas. Partia para o seu emprego; jantava num hotel e quando voltava, à tarde, ainda os achava a mesa. Viam-se então pela primeira vez no dia.
Elisa erguia-se logo, e recolhia-se a uma sala de trabalho, que tinha no segundo andar. O coronel acomodava-se voluptuosamente numa cadeira de balanço, com os pés descansados sobre o sofá, e ali mesmo na sala de jantar preparava o quimo fumando três charutos, um sobre o outro. Conversavam os dois até seis horas; depois, saía cada um do seu lado: o coronel, para dar uma volta higiênica; Sá, à cata de aventuras que todos procuramos aos vinte anos.
Reuniam-se de novo à noite, de ordinário em casa, onde apareciam algumas visitas de Elisa, e os companheiros de voltarete do coronel; outras vezes, em casa de alguma família. Elisa não frequentava a sociedade, e só raramente ia ao teatro, ou alguma reunião particular para fazer a vontade de seu marido.
Ela era de uma singeleza e modéstia extrema. Vestia com a maior simplicidade, e seu traje severo parecia antes feito para desvanecer do que para realçar a sua beleza. O mesmo se notava em suas maneiras, que ela se esforçava por tolher, dando-lhes uma expressão humilde. Mas era debalde. A nobreza inata de sua pessoa, bem como a formosura que a distinguia, brilhavam assim, com mais encanto, com a luz docemente filtrada por cristal opaco.
Ela ignorava que o seu próprio esforço para esconder a beleza dava-lhe inflexões e atitudes de uma graça arrebatadora.
Eis qual era a sua comum existência. Durante o tempo que Sá passava na cidade, Elisa ocupava-se ou com os arranjos domésticos, ou com trabalhos de agulha. O coronel saía invariavelmente às onze horas; deixava o carro no Largo de São Francisco de Paula, tratava de alguns negócios e ia palestrar na loja do Torres, esperando que dessem três horas para se recolher.
O que Sá admirava em Elisa era a sua bondade inexaurível. Não havia infortúnio que não achasse nela um conforto; as únicas vezes que usou da riqueza de seu marido, franca para ela, foi inspirada pela caridade. Sempre indulgente, desculpava tudo, as suas próprias ofensas, como as faltas dos estranhos. Se se falava de alguma ação má praticada por alguém, ela tinha uma palavra benévola e compassiva para a culpa.
— Quem sabe o que o levou a isso? Talvez uma fatalidade.
Só num ponto Elisa parecia de uma severidade inexorável, era a respeito das faltas do seu sexo. Ela não perdoava, nunca, à pecadora, e acusava-a com uma virulência cruel. Não a contrariassem então, porque exclamava:
— Não me fale nessa miserável criatura!... Seu nome só é uma injúria!...
Mais de um ano viveu Sá perto de Elisa, admirando-a sem saber que a amava, quando um pequeno incidente, ridículo até, veio revelar-lhe o estado de seu coração.
Foi à tarde. Sá ia sair de casa; estava de casaca, colete branco e luvas cor de palha; em trajo de cerimônia, enfim. Pretendia fazer algumas visitas e contava passar o resto da noite em sociedade. Passando pelo jardim, viu Elisa de longe ocupada em fazer mudas de flores. Ele aproximou-se para falar-lhe; ainda não a tinha visto naquele dia.
Elisa respondeu-lhe sem erguer-se, nem tirar os olhos das suas plantas. Estava sentada num regador, e tinha as mãos e parte dos braços cobertos de terra úmida.
Houve um momento em que ela se achou embaraçada com as batatas de dália que desejava mudar para outro canteiro. Ergueu o braço para Sá dizendo-lhe:
— Faça-me o favor de segurar.
Sá quis tirar as luvas, mas Elisa impaciente acrescentara:
— Depressa! Tem medo de sujar as mãos?...
Sá teve o heroísmo de sacrificar as suas luvas e obedeceu; seguiu-se outro tubérculo e terceiro e quarto, de modo que, erguendo-se para transportar as mudas ao lugar escolhido, Elisa achou-se em face da mais grotesca figura que é possível imaginar. Um elegante figurino de baile, todo sujo da terra que se despegava das raízes das plantas.
Ela não pôde reprimir o riso.
— Meu Deus! Que engraçado que o Sr. está!...
Sá retirou-se desesperado, e durante oito dias evitou as ocasiões de encontrar-se com Elisa, o que alias era fácil pelo extremo recato em que ela vivia.