Estava bem longe de mim, em tempos melhores, só com o que fui outrora, quando recebi o seu bonito livro de Lucíola.

Ele é seu, todo seu.

Que importa que aí esteja retalhada, nessas página soltas à indiferença a melhor porção de minha alma?... Anima Vilis.

Foi a senhora quem deu um corpo às minhas recordações e tirou-as à luz da sombra em que a saudade as recatara. Foi ainda a senhora quem as bafejou com as auras do mundo, que murcham tanta rosa e viçam tanto cardo.

Eu fiz uma confidência; a senhora fez o livro.

Abri-o com o respeito e santo pavor com que se abre um túmulo querido. Não estão nele sepultadas as cinzas de finado amor?

Passei a noite a ler e reler as páginas que eu tinha de cor. Meu pranto borbulhava ali em cada palavra. Bebi de envolta dores ainda vivas e alegrias falecidas nesse vale de lágrimas.

Dias depois enviei Lucíola ao amigo que também vivera algumas horas na breve história do meu amor. A senhora já o conhece; é o Dr. Ernesto Sá.

Uma tarde fui vê-lo na sua chácara.

Esse retiro estava cheio de lembrança de minha Lúcia. Seu coração palpitava ali nas sombras do arvoredo; sua falas murmuravam com a brisa que perpassava nas folhas.

Encontrei Sá debaixo da latada de jasmineiros, berço de flores, que fora também o berço da minha felicidade. Ele tinha na mão o volume de Lucíola. Sá não lia, pensava; havia no seu rosto os vestígios de uma preocupação triste.

— Já o leste todo?

— Duas vezes.

Conversamos cerca de uma hora. Eu falava, Sá ouvia. As recordações transbordavam de minha alma, fonte inexaurível que vazava para logo encher. Quando me calei, era quase noite. A lua já coava os frouxos raios pelas franças redondas do jasmineiro.

O silêncio que ia pela noite nos sopitara. Ambos recolhíamos em nós para escutar as vozes íntimas, que, durante o crepúsculo da tarde e o crepúsculo do coração cantam o hino da saudade.

Ernesto falou. Sua voz pareceu afinar-se pelos ecos soturnos da noite.

— Também eu tive uma paixão, Paulo. Extravagante como a tua e mais triste... Oh! mil vezes mais... Uma paixão miserável.

— Por uma cortesã?

— Não! exclamou com amargura no lábio. Não foi uma Camélia! Era...

Ergueu-se, correndo os olhos pelos alegretes do jardim. Quebrou a haste de uma saudade. *

— Conheces esta flor?... A escabiosa?

Respondi-lhe com o gesto.

— É o símbolo da melancolia. Veste roxo como ela. Não sentes, roçando-a de leve, o doce e aveludado deste limbo, e o perfume delicado que exala? Aspira-a de mais perto. O aroma evaporou-se; o veludo é áspero ao tato.

Falando, Sá arrancava os folíolos da saudade.

— Despe-a da sua túnica aveludada. Olha! Só restam espinhos. Agora, nota como esta flor é seca. Espreme-se, e não fica nas mãos a umidade sequer de uma lágrima, ou de uma gota de orvalho. Ela exauriu tudo... Entretanto, vê: a planta e o talo são esponjosos. A natureza os fez próprios para sugarem constantemente da terra o humor que não basta à sede insaciável da flor. Mísera flor! Assim foi ela, Paulo!

— Ela quem?

— Queres ouvir? Talvez te inspire um lindo volume como Lucíola.

Dirigiu-se a casa e voltou com uma fotografia colorida.

Recolhi para a senhora o que Sá me contou, conservando quanto pude o delicado matiz da sua frase.

É outro perfil de mulher.

P.

* Variante:

Ergueu-se, correndo os olhos pelos alegretes do jardim. Procurava ali a inspiração.

— Qual é a flor que simboliza o pudor?

— Não sei, respondi. Há uma planta, a sensitiva...

— É verdade! A nossa pudica! Irritabilidade extrema nas folhas, espinhos na rama... Flores brilhantes, mas efêmeras, nenhum perfume... Assim foi ela.

— Ela quem?

— Queres ouvir? Talvez te inspire um lindo volume como Lucíola.

Recolhi para a senhora o que Sá me contou, conservando quanto pude o fino colorido de sua frase.

É outro perfil de mulher.