Acordei abatido, alquebrado: todo o corpo doía-me contuso, e a cabeça pesada era como um espaço imenso, cheio de névoas, de longe em longe atravessadas pelo fio de luz de uma reminiscência.
Repuxei os lenções e, estendido, tepidamente enconchado no côncavo da cama, os olhos fitos no teto, pus-me a pensar no incidente da véspera e, como o sol entrava pelas persianas iluminando o quarto, reluzindo nos móveis, brilhando nos espelhos, pareceu-me ridículo aquele “nervosismo” que me lançara de casa, alta noite, em verdadeira fuga espavorida.
Então lembrei-me do Décio. Chamei-o, insisti. Passos precipitaram-se na saleta e Alfredo correu o reposteiro, dizendo, em tom de surpresa:
— O senhor Décio? Já se foi, há que tempo. Tomou o banho e uma xícara de café e saiu. Quer que lhe traga o seu café? Já lhe trouxe, mas o senhor estava dormindo.
— Traze. Mas olha: Como passou Miss Fanny?
— Acho que melhorou, pois não. Mas aquilo, cá para mim... Esticou o beiço, com uma visagem de desânimo e, batendo no peito, concluiu: é do pulmão, tísica. Não lhe parece ao senhor? Olhe que eu esfreguei a varanda, esfreguei a valer, pois a mancha lá está. Sangue às canadas. E ainda no quarto vomitou e disse-me o jardineiro que no jardim também havia. A gente, afinal, não tem assim tanto sangue como vinho em dorna. O que sai não volta e é a vida. Então o cafezinho, sim? Quer com leite?
— Não.
— Simples. Muito bem. Encostou a vassoura, saiu a correr.
Manhã inútil. Depois do almoço sentei-me à mesa, abri a pasta o fiquei largo tempo a olhar as folhas densas, cruzadas de riscos, sarapintadas de nódoas que ainda mais complicavam a interpretação daqueles gregotins intrincados.
Levantei-me, saí ao corredor querendo ver o ponto em que me aparecera a visão. Examinei atentamente o soalho, as paredes, o teto como à procura de uma fresta por onde houvesse passado o corpo fluido que surgira ante mim, em atitude de estátua, tomando-me o passo. E ali esqueci-me, o espírito perdido, o olhar inerte, parado, na contemplação airada do inexistente.
Tornei à saleta sorrindo do meu terror, abri a janela ao sol, acendi um cigarro e, sentando-me à mesa, prossegui na tradução:
“Desse dia em diante a minha vida mudou como um rio que, rolando angustiado em áspera, sombria garganta, por um leito de lodo, eriçado de pedras, saísse desafogadamente em verde planura, fluindo por entre árvores viçosas, sob o azul do céu e o voo contínuo dos pássaros e das borboletas”.
As horas passavam sem eu senti-las, serenamente fáceis e doces com as atenções delicadas dos companheiros da minha soledade.
A prova maior do encanto que eles souberam crear em torno de mim foi a indiferença com que, desde que os tive comigo, eu via chegar o dia, dantes tão desejado, em que Arhat me afagava no esplêndido salão de ouro e seguia-me, condescendente, ao parque, permitindo-me andar livre nas alamedas silenciosas, embebendo-me de luz e de aroma, correr nas relvas finas, vogar no lago, subir aos aclives pela escaleira ervecida dos taludes, repousar entre as pedras úmidas, ouvindo o murmúrio cantante da água, ver de perto a graça arisca das corças ou o porte sobranceiro dos cervos robustos, cujos galhos, muito ramalhosos, apareciam entre os castanheiros como raízes de árvores desenterradas.
Em toda essa delícia só um dissabor perturbava a doçura do meu viver e vinha das súbitas mudanças, da versatilidade em que se debatia minha alma indecisa e vária, ora inclinada, com mais afeto, a Siva, ora voltada inteiramente a Maya.
Em certos dias o meu coração pulsava sôfrego reclamando o mancebo e rejubilava em prazer íntimo quando o sentia perto. Só o rumor dos seus passos punha-me em alvoroço, feliz, e, se ele falava, eu sentia o sangue correr com mais pressa nas veias, ardiam-me as faces e os olhos, atraídos pelos dele, umedeciam-se a um afluxo de lágrimas.
Se a outra aparecia-me em momentos em que o meu pendor era para os olhos negros eu irritava-me irascivelmente contendo, a custo, impulsos de súbito rancor.
Outras vezes, inversamente, o mesmo sentimento manifestava-se contra a pluma airosa por vê-la tão perto dos cabelos fulgidos. Era, então, a donzela o meu enlevo.
Queria-a junto de mim, tomava-lhe as mãos e, abrasado em ardor vivo, tremia ao ver-lhe a pequenina boca entreaberta, o colo túmido, a cinta breve, os finos artelhos agrilhoados nas armilas de ouro.
E o meu prazer era ficar a sós com ela, calado, os olhos fitos no seu rosto, as suas mãos nas minhas, vendo-a trabalhar, sorrir, corar baixando as pálpebras, com a respiração mais apressada e ofegante e rosas mais vermelhas nas faces.
Essa simpatia revezava-se e sempre com o mesmo travo de ódio ao que ficara fora do seu alcance, como se o coração não pudesse conter no afeto duas criaturas e temesse perder a que elegera nas traças de sedução da preterida.
Tal inconstância vexava-me e remorsos pungiam-me depois das repulsas. Então, para remitir-me do que eu julgava ofensa, ameigava-me, atribuindo aos nervos aqueles frenesis que me faziam proceder tão em discordância com o meu sentir. Sempre a resposta — de um ou de outro — era o sorriso e, à compita, redobravam de carinho, desvelandose, junto de mim, em cuidados os mais mimosos, atentos aos meus desejos, adivinhando-os para realiza-los.
Aos quinze anos eu era, em desenvolvimento físico, o que hoje sou — o tempo, completando o homem, pouco mais acrescentou à robustez do adolescente.
Em contraste, porém, a alma enfraquecia à medida que o corpo avigorava-se. Eu sentia esmorecer um instinto e outras inclinações acentuarem-se.
A coragem afoita dos meus anos verdes entibiava-se em timidez; o gosto pelas armas, pelos exercidos de destreza, pelos lances arrojados apagavam-se e o espírito de aventura, que me fazia desejar o mundo com os seus perigos, retraia-se. As próprias ideias pareciam substituir-se.
A inteligência, dantes tão atilada, pronta e curiosa de saber, cerrava-se, com repugnância, a certos estudos e aos livros eu preferia as flores, troçava as armas pelas tapeçarias e achava mais interesse em ver cruzaram-se, em trama, num bastidor, os fios de ouro e de seda ou na melodia de um canto de amor do que nas sábias lições ou no garbo de um ginete aderençado em que eu seguia Arhat, cavaleiro aposto e ousado como um centauro.
Uma noite — era no inverno e nevava — ardia um lume alegre no vasto fogão de mármore e bronze espalhando em torno vivo clarão púrpureo. Eu lia, docemente agasalhado, quando, de improviso, estremeci num arrepio áspero de frio como se, por trás de mim, se houvesse aberto uma das altas janelas, recebendo da noite um esfuzio do vento.
Voltei-me transido: todas as portas tinham os ferrolhos corridos, não penetrara sopro, tão duros nas suas dobras caíam imóveis os reposteiros. O frio, entanto, recrudescia, ainda que as mãos e o rosto conservassem o calor, natural naquele aquecido ambiente.
Aproximei a poltrona do lume e foi como se me houvesse acostado a um bloco de gelo. Atabafei-me ainda mais repuxando as peliças e a sensação persistiu desagradável, mórbida, inteiriçando-me, fazendo-me bater os dentes.
Quis levantar-me, chamar: estava tolhido e não sei quanto tempo, envolto em peles, tiritei transpassado, olhando o vivido fulgor da chama, ouvindo o crepitar das achas.
Era um frio interno como se o sangue se me fosse congelando e os ossos se fizessem de neve. Pouco a pouco, porém, veio vindo o calor e, com ele, um sono pesado, sono de fadiga que me prostrou como morto.
Na manhã seguinte acordei em tão alegre disposição e tão rijo que Maya, sorriu do meu entono quando entrou com uma braçada de orquídeas colhidas na estufa.
Ao vê-la, depondo a espada com que me exercitava, passei-lhe o braço à volta do busto grácil, beijando-a duas vezes na fronte e na boca.
Não se mostrou surpreendida, senão contente e, consentindo no meu delírio, apenas baixava as pálpebras e as suas pequeninas mãos eram de neve e tremiam dentro das minhas que as torturavam.
O que então senti por aquela criatura, cujo nome tornou-se o motor dos meus lábios, foi um verdadeiro desprendimento do meu ser, uma submissa rendição da alma, que parecia haver transmigrado para o seu corpo, que eu adorava, desde os fios de ouro dos cabelos até a ponta dos pés mimosos que a punham em contato com a terra.
À sua própria sombra, por ser uma expansão do seu corpo, a sua parte há luz, tanto eu queria que, uma vez, juntando todas as flores que perfumavam a câmara e o meu salão, fiz-a ficar de pé, ao sol e fui cobrindo a sombra de seu corpo com flores, de modo a desenhá-lo no tapete da câmara e, à noite, rejeitando o leito, como um noivo que se encaminha para a noiva, deitei-me sobre aquela alfombra e adormeci, apaixonadamente no sonho do meu amor.
Ouvi-la era meu prazer. Vendo-a sentada ajoelhava-me a seus pés e ficava-me perdidamente a contemplar-lhe os olhos, neles revendo-me como na transparência líquida de um lago.
O meu gozo maior era sentir-lhe o coração, contar-lhe as pancadas acertando-as pelas do meu. Sorriamos entretidos em tal enlevo e, docemente, as nossas cabeças procuravam-se atraídas, colavam-se as nossas bocas: eu respirava o hálito do seu seio, e ela recebia a respiração do meu peito e, trocando o alento, vivíamos da atmosfera íntima em que as nossas almas pairavam.
E assim, embebidos um no outro, chegávamos a esquecer as horas. A noite surpreendia-me, e como havia eu de senti-la se tinha o azul luminoso daqueles olhos e o esplendor astral daqueles cabelos de ouro?.
Siva, sem jamais demonstrar despeito pela preferência com que eu distinguia e ameigava a sua companheira, foi rareando as visitas, até que se limitou a aparecer-me uma só vez, de manhã, detendo-se no limiar da porta, mudo, imóvel, de olhos baixos, à espera de ordens. Recebia-as e retirava-se e em todo o resto do dia nem o rumor dos seus passos soava nos arredores.
E assim, nesse doce colóquio, um mês deslizou sereno.
Tanto eu me absorvera em Maya que só depois de tão longo prazo notei que quatro vezes Arhat deixara de receber-me, nem até se comunicara comigo. Quatro semanas sem vê-lo, as primeiras desde a minha mais tenra infância!
Ainda que me não tolhessem a liberdade, que ele me concedera no dia festivo em que me anunciou, com alegria paternal, que eu completara quinze anos, podendo andar livre no parque e em todas as dependências do solar que me fossem franqueadas pelos que me serviam, senti-me em desconforto e em cativeiro sem a presença consoladora e afável daquele amigo.
Falei a Maya pedindo a explicação daquele esquecimento que me ofendia e magoava como um ingrato abandono.
Ela não respondeu. Insisti afagando-a. Fez um gesto com a mão mostrando o espaço, o além! Como a significar que ele partira. E foi quanto pude tirar do seu discreto silêncio. Mas na manhã seguinte interroguei Siva e o mancebo, fitando em mim os olhos de veludo, disse:
— Senhor, Arhat deve voltar com os dias suaves, no voo das andorinhas. Viaja. Tê-lo-eis convosco quando abrolharem os primeiros novedios. E nada mais acrescentou.
Desde essa hora, inexplicavelmente, começou a arrefecer no meu coração o esto em que me abrasava. Já desatendia a Maya, desviava-me dos seus passos e, não raro, a sua voz tão querida soava-me em tom importuno.
Passava os dias recolhido em um pensamento único e, à noite, acordando, levantava-me descalço e, de leve, mal aflorando o tapete, ia à porta, descerrava-a sobre a extensa galeria alumiada por lâmpadas opacas que pareciam lírios e magnólias entre as folhagens dos entalhes, deixava-me estar olhando num desejo intenso de ir por aquela escada que se enroscava ao fundo, chegar ao salão, abrir uma pequenina porta, espécie de aditiculo, de onde, por vezes, Arhat surgia. Deviam ser além delia os seus aposentos.
Mas o receio de que me surpreendessem em tão indiscreta devassa, de incorrer no desagrado do homem todo poderoso retinha-me.
Uma noite, porém, em que o vento soprava com fúria e a neve era mais densa, tarde, — toda a casa dormia — levantei-me e decidido, numa resolução inabalável, saí à galeria.
Os meus passos estalavam no tapete como lenha verde ao fogo, todo eu tremia, ainda que levasse sobre os ombros um manto de peles. Caminhei. Diante da escada ainda me detive.
As lâmpadas espalhavam por ela uma luz nívea, os maineis cintilavam em volutas de prata e lá em cima, na abertura circular, a claridade parecia maior, como a de uma clarabóia em pleno sol.
Fui subindo receoso e os meus joelhos vergavam em tremores violentos.
Cheguei acima e a coragem, que esmorecera, reinflamou-se mais árdega, impelindo-me para o vestíbulo de mármore lampejante que um lustre de bronze clareava com esplendor diurno.
Lá estava a porta do salão com os relevos caprichosos da mais complicada escultura, numa profusa promiscuidade de monstros e deuses trágicos. Caminhei. A dúvida ainda assaltou-me: Como abri-la? Mas diante da porta, tocando-a apenas, de leve, senti-a mover-se, deslizar, girando docemente nos quícios, deixando-me passagem franca para o salão que fulgurava, num esplendor ofuscante de incêndio.
As colunas eram cilindros flameos, cintilando, irradiando com o brilho ardente dos toros inflamados; as molduras esbraseavam; o soalho, alcatifado pelo tapete de cor ígnea, parecia coalhado de lava combusta; e morno, atordoante, em ondas de fumo espesso, subia, impregnava o ambiente o cheiro dos aromatas.
Os incensórios exalavam espiras azuis e eram inúmeros — altos, em tripodes bizarras, em rasas peanhas pousando em garras.
Uma pira de bronze ardia em meio do salão, flamejando cerúlea, ora em labareda única, piramidal, ora em repartidas línguas que tremeluziam.
Estremeci de repente. Seguiam-me, espreitavam-me. Quedei, com o coração estarrecido, abafado, sem fôlego. Olhei e então reconheci no meu silencioso perseguidor a minha própria imagem — não uma, como, a princípio, me parecera, muitas reproduzindo-se em todas os espelhos que se defrontavam alargando, aprofundando o salão indefinidamente, multiplicando as colunas de ouro, as tripodes, a pira acesa, os móveis e a minha imagem que numa fila extensa repetia, com isocronismo mecânico, todos os meus movimentos.
Aventurei-me até a porta esconsa, encravada numa reentrância em ogiva. Empurrei-a: cedeu sem rumor, abrindo sobre uma espécie de cripta de um ambiente odorífero e azulado de cujo teto, em abobada, pendia uma lâmpada em forma de concha, irradiando em sete bicos dos quais subiam trêmulas chamas pálidas. Meus pés afundavam mole, maciamente, no tapiz de felpa tênue; e tão espesso era o ar que eu ia por ele, vencendo-o, com o esforço com que um nadador rompe o corpo das ondas.
Mas o brilho de um foco de fornalha oculava em flama o extremo da passagem. Guiei-me por ele precipitado, quase a correr, e saí num recinto circular como o interior de um zimbório, que uma luz roxa, funérea, coada em ampulas de porcelana, enlutava.
Nos muros, forrados de seda violácea, bordada em lírios de prata, cavavam-se estranhos nichos, denticulados como cavernas, resguardando ídolos de olhos fuzilantes.
Um alampadario de ouro pendia do centro, suspenso por uma serpente de escamas rebrilhantes. De espaço a espaço, em copas de bronze, crepitavam resinas aromáticas ou ramos de flores esmaeciam em grandes urnas de ônix e de alabastro. Sobre um leito baixo, a cuja cabeceira velava um Buda de proporções humanas, inteiriçava-se um corpo coberto por um véu finíssimo, de uma teia sútil, diáfana como as águas límpidas e matizadas de flores.
Levantei-o de leve e, só com erguer-lhe uma das pontas, enfunou-se ondulando como a neblina ao vento.
Descobri todo o corpo e, com violento tremor, recuei horrorizado reconhecendo, no cadáver que ali jazia, Arhat.
A luz fúnebre dava-lhe em cheio no rosto lívido e cavado, arroxeava-lhe as mãos engelhadas, afundava-lhe as órbitas, punha-lhe em mais saliente reponte o queixo agudo.
O terror avassalou-me — ia-se-me o espírito e o corpo rendia-se abatendo junto do esquife.
Vacilei, dobraram-se-me os joelhos em lassidão covarde; amparei-me a uma urna.
Rumores soturnos atroavam, talvez o vento a gemer fora ou... quem sabe! Soergui-me e, incerto, tateando, sem ver ao clarão tumbal daquele recinto de morte, caminhei hirto, rígido, abalroando com as paredes e, alcançando a passagem abobadada, deitei a correr espavorido.
Saindo ao salão cegaram-se-me os olhos encadeiados pela claridade intensa. Ganhei o vestíbulo, lancei-me à escada em vertiginosa fuga e atravessei a galeria.
Ao chegar aos meus aposentos estendi os braços atirando-me, de repelão, à porta como para arrombá-la e precipitei-me no vácuo.
“A porta abrira-se e, no meio da câmara, em plena luz, sinistro, Arhat estava de pé de olhos fitos, imóvel”.
A tarde empalidecia quando suspendi o trabalho, estirando-me no divã, em repouso. O interesse pelo manuscrito, longe de crescer com o desenvolvimento, aliás curioso, que ia tomando a “novela”, descaia em simples curiosidade literária. Não era, como eu presumira, um estudo verídico, mas uma fantasia, pura ficção tecida, com certo engenho, em tela deslumbrante.
O inglês divertira-se à minha custa oferecendo-me a sua literatura em invólucro de mistério.
Enfim, era sempre uma distração para as minhas horas vazias e se me não punha no limiar do arcano, mostrava-me, em plena luz, a imaginação radiosa de um romântico.
Escurecia. As cigarras cantavam em concerto. Súbito senti um abalo como se a casa se houvesse suspendido nos alicerces e logo um rebôo seguindo-se-lhe violento estrondo, outro, outro...
Era na pedreira próxima a explosão formidável das minas, deslocando dos flancos da montanha blocos de pedra, verdadeiros penhascos, que rolavam estrepitosamente, não raro trazendo coqueiros, velhas árvores, crostas de terra cobertas de mato, esmagando-os de encontro às arestas da monstruosa rocha escalavrada.
Vesti-me e já a sombra adensava nos cantos quando acendi o gás e desci para o jantar.
A sala iluminada, com as cadeiras em torno da mesa florida e coberta de porcelanas e cristais que luziam, ainda estava deserta. Os hóspedes começavam a aparecer à varanda, andavam pelo jardim.
Brandt, sempre só, enlevado no sonho, ouvia intimamente os ritmos antigos, a suave expressão das melodias mortas. Ia e vinha, lentamente, ao longo das frescas áleas, volteando os canteiros úmidos da rega, roçado pelas rosas moças que se inclinavam lânguidas nas hastes, já sob o eflúvio da volúpia noturna.
Por vezes detinha-se, estendia a mão a um ramo, tomava uma folha entre os dedos e enrolava-a, esmagava-a de olhos perdidos na altura, absorvido, como a seguir um sonho que se diluía docemente no éter, esfumava- se, fundia-se com a noite, entre os sonhos.
Basílio, acaçapado em uma cadeira de palha, esvurmava, com os olhos abelhudos, alguma coisa em que afiasse o sarcasmo. Carlos e Eduardo, juntos, à balaustrada, cochichavam: Chrispim assobiava baixinho encostado ao umbral de uma das portas.
A casa tinha um ar melancólico, alguma coisa lúgubre pairava nublando-lhe a expressão de alegria; o seu aspecto era outro: demudado, abatido, como em fadiga.
O comendador e Pericles apareceram. Basílio, dando por eles, voltou-se todo na cadeira:
— Então? Vai ou não vai?
— Mal; disse o comendador.
— Ah! Essa moléstia... E o médico? O velho deu de ombros. A curiosidade reuniu todos os hóspedes num grupo e o guarda-livros, fitando os olhos em Pericles:
— Foste vê-la?
— Não, disse o outro retraindo-se. Está lá o Penalva que entende. Eu não. Que vou lá fazer?
— Um instantâneo, homem. A cena presta-se...
— Tolice...! Resmungou Pericles dando-lhe as costas. A campainha vibrou. Entramos. Miss Barkley apareceu imutável, acenou de cabeça e tomou o seu lugar. O criado entrou com a sopeira e, em silêncio, com o respeito de um rito, começou o jantar.
Penalva tinha um modo mais grave, a compostura sisuda de um homem cheio de responsabilidades. Sabia-se que o médico lhe havia pedido auxílio, confiando-lhe a enferma, fazendo-o depositário daquela vida que ele sentia extinguir-se pouco a pouco, apesar dos esforços que fazia para mantê-la naquele corpo combalido e frágil.
— Então, doutor?... Indagou Basílio... Miss Fanny? O estudante alongou o lábio. Brandt encarou-o.
— Não tens esperança?
— Esperança? Está perdida, concluiu metendo na boca uma bucha de pão. Miss Barkley aspirou um fôlego mais largo e, estendendo o braço, compôs umas rosas que pendiam do vaso.
— O que me impressiona é a alucinação.
— Alucinação! Exclamou o comendador.
— Sim, alucinação, insistiu Penalva. Os olhos de Brandi alargaram-se iluminados e ele perguntou:
— Alucinação?
— É verdade. Ontem à noite, logo que o médico saiu, começou a manifestar-se o estado alucinatorio. Estava deitada, tranquila, parecendo adormecida quando, subitamente, estremecendo, soergueu-se de ímpeto, sentou-se, de olhos muito abertos, cravados no fundo do quarto. Tentamos deita-la, repeliu-nos brandamente, permanecendo na mesma atitude extática, muito pálida, toda fria, trêmula. Assim esteve um instante até que, escondendo o rosto com as mãos, rompeu em soluços, deixando-se cair no leito como abandonada.
— Era mister James, disse Miss Barkley. Foi um alvoroço na mesa e muitas vozes exclamaram na mesma surpresa:
— Mister James?!
— Sim, afirmou a inglesa com serenidade. Todos, então, pousando o talher, inclinaram-se para ouvi-la, sorvendo-lhe as palavras e, no ansioso silêncio, ela continuou, pausada: Sim, mister James. Foi o que ela me disse. Viu-o à cabeceira, não ele propriamente, o homem, mas uma moça que tinha o seu rosto, de túnica como as estátuas.
Às palavras da inglesa um arrepio correume ao longo da espinha, eriçaram-se-me os cabelos, toda a pele se me crispou com um prurido irritante. Pobre! Concluiu Miss Barkley. Trocaram-se olhares e o jantar prosseguiu silencioso. Basílio, porém, irrompeu em tom de escárnio:
— Então... de túnica? mulher...? Miss Barkley acenou afirmando. Pois olhe, não descobriu a pólvora. Eu, apesar de o não ter visto de túnica, como as estátuas, sempre o classifiquei no outro sexo. Os óculos de Miss fuzilaram. Desculpe, Miss, mas é a verdade. E sacando violentamente o guardanapo do colarinho, exclamou: Pois aquilo é lá cara de homem?! E espalhou o olhar consultando os ouvintes. Se nós tivéssemos polícia garanto que esse caso já estava esclarecido. Porque, afinal, quem sabe lá?! A Rússia está cheia de mulheres anarquistas, e são piores que os homens. Enfim... O melhor é calar-me. Que se avenham! Aferrou-se ao roast-beef arremetendo, com fúria seva, à posta de carne que lhe ensanguentava o prato atufado de alface.
Brandi olhava-o com desprezo e, até o fim do jantar, debicando apenas, às garfadas lentas e distraídas, não disse palavra. Por vezes franziam-se-lhe os cantos da boca ao retraço fugaz de um sorriso.
Basílio acirrava-se, indignado, contra a beleza de James, com a revolta escandalizada de um puritano diante de uma torpeza obscena.
Quando nos levantamos Brandt, travando-me do braço, perguntou em tom de confidência:
— Tens que fazer?
— Não.
— Vem comigo. Este homem irrita-me, tortura-me os nervos: e volveu um olhar ao guarda-livros, que impanzinava à varanda, esmoendo ódio.
Saímos. O músico, até o chalé, manteve o silêncio, torturando o bigode ralo.
A saleta estava escura e abafada. Brandt abriu largamente as janelas. Houve um amplo lufar de cortinas ao vento.
Ao clarão do gás todo o conjunto artístico do interior emergiu da sombra — vernizes e lâminas fuzilaram, as flores ressaíram à luz, as telas, em molduras largas, de ouro e laca ou de madeira encerada, mostraram horizontes longínquos de campinas, cabecinhas vivazes, águas em remanso, bosques e gados e as cegonhas tristes, no biombo, com o rebrilho dos fios de ouro e seda, pareciam riçar as penas. Brandt encostou- se ao piano e, com um cigarro entre os dedos, balançando a perna, ficou pensativo. Eu afundei na poltrona fumando. Um vento úmido, às rajadas, sacudia os ramos do jasmineiro sem flores.
A noite triste, tenebrosa e morna, pesava como um subterrâneo.
— Meu caro, disse o músico, estão-se passando coisas extraordinárias nesta casa. Coisas verdadeiramente prodigiosas.
— Por quê?
— Ouvistes o que disse Miss Barkley sobre a visão de Miss Fanny?
— Sim: James...
— Pois, meu amigo, eu não estou doente, nem se dirá que me haja impressionado com isto ou com aquilo, porque só hoje, de manhã, soube da moléstia da professora. Ontem, à noite, entretanto — era, talvez, uma hora — terminando o estudo, debrucei-me à janela, a olhar distraído, e vi um vulto aparecer na varanda, parar um momento, descer lentamente a escada, atravessar a álea de acácias até a arcada de jasmins onde ficou imóvel. Vestia exatamente uma túnica branca, diáfana, sobre a qual, por vezes, como que se projetava um raio de luz cerúlea. Pensei, a princípio, que fosse a professora, ainda que o traje me parecesse extravagante e, para convencer-me, saí ao jardim. O vulto mantinha-se na mesma posição. Avancei afoito e, à distância de uns dez passos, senti-me como envolvido em neve, gelado. Parei, de olhar filo e reconheci no espectro...
— James. Brandí acenou de cabeça e confirmou:
— James.
— E depois?
— O jasmineiro revestiu-se de alvura, como a um luar misterioso que só para ele clareasse, mas o palor destacava-se ondulando, subia em leve arejo, tênue esvaindo-se: pairou, um instante, sobre o arco, retraindo-se, dilatando-se, ascendeu suave, depois ligeiro como levado por um vento forte; e sumiu... Eu vi! Acendeu o cigarro, sentou-se no banco do piano, o olhar vago, perdido.
— Pois, meu caro Frederico, deu-se o mesmo comigo. Eu nada diria se me não houvesses comunicado a tua visão. Deu-se o mesmo comigo, quase à mesma hora. E descrevi a aparição que me surgira na treva do corredor.
— E que dizes?
— Eu? Não sei. Não acreditas na alucinação coletiva?
— Não acredito nem duvido: a vida é um mistério e eu vivo. Essa inglesa, com quem sempre simpatizei, por senti-la infeliz, é um desses espíritos de amor que só vivem para amar. Retraída na virtude, expande-se em bondade. É uma árvore virgem coberta de flores, esterilizando-se em perfume: o fruto é da terra, o perfume é do espaço. Aparentemente é uma força inerte, mas... A rosa é uma fragilidade, um núcleo de conchas cuja pérola é o aroma... E a rosa envenena e mata, como o amor. Miss Fanny anda de rasto, escravizada a James e ele, quem sabe? Essa aparição coincidindo com a enfermidade da inglesa...
— E será ele?
— Quem então?
— Mas, nesse caso, morreu...
— Porque?
— Porque só os mortos aparecem.
— Mas o espírito é imortal, meu amigo. Assim como o Pensamento é a sua rectriz, a Vonlade é a sua Força. Quem se pudesse concentrar tanto que se absorvesse em si mesmo imortalizaria a matéria impregnando-a de eternidade. Os atos que nós chamamos inconscientes são produtos da mens criadora, energia que não jaz, como a inteligência, subordinada à matéria, mas envolve-a, circula-a como um sol.
Figura o cérebro uma lâmpada e a inteligência a mecha — o lume que a inflama é a inspiração, a mens a que aludi, que é a essência mesma da vida e essa essência, tanta vez repudiada, quando se manifesta inoportunamente, é o que nós chamamos — ideia. Se os nossos olhos não fossem preparados exclusivamente para a visão material, veríamos o ambiente e compreenderíamos a Verdade e todas as falsas noções que nos atordoam — a começar por esse vácuo a que chamamos Tempo, — desapareceriam como espectros que o sol dispersa.
Os mortos não se manifestam. O que nós chamamos morto, é o cadáver — um despojo. Uma túnica não se põe direita senão ajustada a um corpo. Contida a matéria no sono pode o espírito sair sem que a vida deixe de o sustentar com a sua dinâmica.
Proeja um batel ao porto, ferra o barqueiro a vela resguarda os remos, retira o leme, amarra-o e salta em terra. Na onda que arfa continua o barco a zimbrar; se acontece rebentar o cabo que o retém afasta-se, garra ou sossobra, mas, se não larga do abrigo, fica até a volta do dono que, de novo, lhe põe a palamenta e fá-lo em rumo ao mar alto.
A vida é o mar, o barco é o corpo, o barqueiro é a alma.
Lembras-te do Gênesis? Lá está, no segundo dístico: “O Espírito de Deus movia-se sobre a face das águas”. Era a Alma Absoluta, a Eterna Fecundidade pairando geradoramente sobre o oceano, ainda imóvel, da vida universal. Jesus viveu entre pescadores — almas. A tempestade do lago de Tiberiade que é senão a representação das tormentas da Vida? E Cristo, desprezando o barco, não caminhou sobre as águas à vista dos discípulos? Por quê? Para quê? Para mostrar que o Espírito de Deus não carece de corpo.
Largo tempo calamos os nossos pensamentos. Brandt pôs-se diante de mim e, com os olhos fulgurantes, segredou-me, como se receiasse ser ouvido por outrem: Meu caro, a ciência é uma coluna em espiral girando sempre. Parecenos que as volutas avançam investindo com a altura... Infelizmente isso não passa de uma ilusão, pura ilusão, não é verdade? Chegamos até a cornija do Templo, daí para cima é o grande vácuo e as espiras verrumam, verrumam...
Falamos em progresso e rolamos na morte. Nada se sabe. Se considero a música a mais espiritual das artes é porque a música é pura essência. O ritmo é a sua lei, a sua manifestação é o som, da natureza da luz e do éter, simples vibração, onda etérea, nada mais. A música explica-me, de certo modo, o invisível e eu compreendo a alma quando executo, sinto Deus quando componho.
— Tu?
— Sim, eu. Todos os artistas baixam do ideal para o real, o músico ascende; parte do real para o ideal. A Poesia comprime o Pensamento em palavras, a escultura é de pedra ou metal, a arquitetura é argamassa, a pintura é tinta — a música é ritmo e é som: o indefinido.
O som é como o fumo dos incensórios — uma prece alada.
Nos templos, primitivamente, ao lado dos defumadores, ressoavam as liras e as ondas, geminadas, subiam o mesmo voo — as de aroma em nuvem; as sonoras em melodia. Em poema é o que é — uma estratificação de ideias: a estátua e uma cópia da vida paralisada; o edifício e um conjunto de linhas inflexíveis: a pintura é a visão de um ponto no espaço à luz de um raio de sol. O canto e hálito, alma, e, sendo alma, é essência.
A vida é um ritmo que se desdobra em ritmos como a vaga se multiplica em ondulações.
Atirando a mão ao acaso feriu uma nota ao piano — o som vibrou, ressoou, foi esmorecendo e extinguiu-se.
Ele levantou o braço e fez, com o dedo hirto, um gesto terebrante, murmurando: A espiral... A espiral...
Chegou à janela e, um momento, esteve calado, mergulhando os olhos na escuridão exterior. Logo, porém, voltando-se, prosseguiu: A aparição não me causou medo, apenas agitou-me como uma verdade enunciada. Foi um relâmpago que me fez entrever o Além. Mas fiquemos na música. Disseste, há dias, falando de Beethoven — que o achavas admirável, mas que o não entendias.
— Sim. Muitas das proclamadas belezas das sintonias passam-me despercebidas.
— É natural. Imagina-te chegado a um país teocrático e logo introduzido no templo onde se celebrasse, com toda a magnificência, a cerimônia mais solene da religião. Verias o interior do edifício majestoso, esplêndido nos seus mármores, ouros e pedrarias: verias ídolos colossais em altares suntuosos; verias os sacerdotes resplandescentes descrevendo, em silêncio, evoluções misteriosas: verias as sacerdotisas virgens bailando ao som dos sistros de bronze; ouvirias o deprecar da turba e ficarias apenas deslumbrado, mas não sentirias a emoção mística, por não compreenderes os termos da prece, a representação das danças, o valor dos atributos, o rito, enfim. À medida, porém que te fosses iniciando nos símbolos esotéricos, isto é, na “razão íntima” do ceremonial o teu espírito iluminado iria apreendendo a beleza e a significação dos passes mais sutis e alcançarias a verdade ideal. A música é assim.
Não basta ouvi-la, é necessário entendê-la, senti-la, interpreta-la; ter a emoção e o conhecimento. Nas sinfonias de Beethoven não há uma nota excessiva como não há na árvore mais frondosa uma folha inútil.
A música é uma linguagem aparentemente fácil e é a mais díficil de todas. Sete são as notas, umas nas linhas, como rojadas na terra, outras no espaço, pairando: répteis e aves, alfombra e nuvem, flor e estrela. Sete são os valores, sete as pausas, sete os acidentes, sete as claves, três os compassos. É pouco e é tudo. Na pauta cabem todas as vozes, todos os ruídos. As cordas são cinco e bastam: nelas cicia a aragem sutil e estronda fragorosa a fúria das tormentas.
Todas as harmonias da natureza estão contidas dentro da cerca do pentagrama.
Chegou à janela, ficou a olhar embebido no silêncio.
O ramo do jasmineiro balançava de leve como se lhe acenasse, estirando-se para alcança-lo.
Uma mariposa esvoaçava em torno da açucena do gás. Brandt não fazia o mais ligeiro gesto, absorto, sonhando, imobilizado no pensamento como à beira de um abismo.
— Que tens, Frederico? Perguntei preocupado e ele, como surpreendido, voltou- se, de olhos enevoados, pálido e, levando a mão à fronte, a arrepelar os cabelos, murmurou vagamente:
— Não sei... Não sei... Abriu o piano, sentou-se e, com as mãos espalmadas no teclado, quedou extático. De improviso, ergueu-se, pôs-se a caminhar ao longo da sala, cabisbaixo, e repetiu em voz surda: Não sei.
Plantou-se diante de mim, o olhar fito, airado: Pareço louco, não? Se pudesses imaginar o que sinto... A música desvaira-me. Wagner tinha razão — “ela é literalmente a revelação de um outro mundo”. E eu sinto tanto, tão intensamente!... A inspiração aflui-me em tumulto, mas acontece que as ideias, por serem muitas, atropelam-se e ficam como um enxame alvoroçado que quisesse entrar, todo junto, em bolo, pelo alvado estreito da colmeia. É horrível! Não imaginas. A fecundidade em excesso é como as enchentes nos rios, é como a plethora nas veias — subverte, sufoca.
Nesse momento um busto assomou à janela afastando o galho do jasmineiro e, tanto eu como Brandt, vibramos com o mesmo espanto. Era Penalva. O quintanista, percebendo a nossa perturbação, olhou-nos enleiado:
— Fui indiscreto...?
— Não. Entra. Conversávamos. Escusou-se: Estava à cabeceira de Miss Fanny. Vinha apenas transmitir um pedido da enferma.
— Um pedido? E como vai ela?
— Mal. Outra hemoptise. Brandt insistiu com ele: — Que entrasse. Estava chuviscando.
Foi busca-lo à porta. O estudante acedeu sem, todavia, aceitar a poltrona que o músico lhe indicou. Não. Não podia demorar-se. E, com um sorriso vexado:
— Ela manda pedir-te um pouco de música ao harmonium. Os olhos de Brandt cintilaram e uma palidez lívida cobriu-lhe o rosto.
— Coitada! Lastimou comovido e abriu o harmonium, passou o lenço pelo teclado.
Arrebatadamente escancarou as janelas e a porta para que o som passasse em ondas livres. Penalva foi saindo e, no limiar, inclinando-se, apoiado aos umbrais, despediu-se:
— Boa noite!
— Que pressa! Homem.
— Ela está mal, talvez não chegue à madrugada. Miss Barkley está lá, mas... Até amanhã. E lançou-se à álea, a correr. O harmonium afiava à pressão dos pedais acionados por Brandt.
— E então?! Exclamou o músico acenando de cabeça interrogativamente.
— O quê?
— Este pedido. Que te parece?
— Romantismo. Sorriu e, curvando-se sobre o instrumento, logo um som suavíssimo desenvolveu-se em frase de sugestiva melodia, e ele disse, de olhos altos:
— A música, meu amigo, é uma religião para os que a sentem.
— Que é isto? Perguntei deliciado.
— O tema da Paixão Fatal, de Tristão e Isolda. Interrompeu-se e, tomando um álbum, folheou-o, abriu-o na estante e anunciou. O “prelúdio em mi bemol menor” de Bach. Vale o Gênesis, meu velho. Ouve. É todo uma criação.
Sentou-se conservando-se um momento recolhido, a cabeça para trás, os olhos fitos. Descaindo sobre o teclado atacou o primeiro acorde.
Houve, fora, uma refrega estrondosa na folhagem, um reboliço de ramos farfalhantes. Janelas bateram a uma rajada impetuosa. Um relâmpago fulgurou arrepiadamente.
Mas os sons graves subiam como uma prece à noite. Longe atroavam trovões soturnos e as frases amplas, de uma originalidade de natureza virgem, desdobravam-se, cresciam largas e a impressão que em meu espírito produziam era a de um coro de vozes doloridas que entoassem misteriosamente no espaço tenebroso.
Uivos do vento prolongavam-se pela noite, de instante a instante laivada por um golpe de luz. Súbito o músico paralisou-se, pôs-se de pé, nervoso, relanceando o olhar em torno.
— Que é? A chuva engrossava às ruflas nas folhas, às bátegas nos muros. Brandt chegou à janela, arredou o galho do jasmineiro, ia cerrar a persiana, mas deteve-se hesitante. De novo o galho solto meteu-se pelo aposento oscilando e o músico voltou ao harmonium.
— Porque não fechas a janela? Meneou com a cabeça negativamente e, através da música divina, disse como falando em sonho:
— Que importa! Foi, talvez, para adormecer que ela me mandou pedir que tocasse.
E, vencendo o estridor da chuva torrencial, os sons do harmonium, por vezes doridos, enchiam a noite de uma angústia humana.