Apesar da insistência de Brandt para que eu ficasse afrontei o temporal desabrido recolhendo aos meus aposentos com toda a roupa encharcada e os pés em poças e, até tarde, através de ribombos de trovões, que pareciam explodir sobre o telhado, a chuva jorrou desabaladamente.

No escuro do quarto, onde os relâmpagos, insinuando-se pelas frestas, acendiam vascas fulgurantes, era agradável a soada perene e embaladora de água a alagar, a correr a que os rijos pegões do vento aumentavam a violência e o frêmito.

Adormeci docemente gozando o agasalho macio do meu leito, o seguro resguardo das minhas telhas.

De manhã, descendo para o banho, logo na escada tive notícia da morte de Miss Fanny. Pericles, que subia, em jupon, com a saboneteira e a esponja, os cabelos escarapelados, indagou tristemente:

— Já sabes? E, diante da minha mudez pasmada, anúnciou: A inglesa... Foi-se! Às cinco da manhã. Um travo de angústia empolgou-me a garganta. Não disse palavra. Olhamo-nos e Pericles, franzindo a fronte e sacudindo a cabeça desolado, arrepanhou o jupon mostrando as pernas magras e cabeludas e foi-se, escada acima, devagar, resmungando lástimas.

Na sala de jantar Basílio, já pronto, com o water-proof até os pés, tomava café junto à mesa. Vendo-me arregalou os olhos empapuçados e, atirando à goela o último gole, adiantou-se, pisando fofamente em galochas, para segredar-me com ar de triunfo:

— Então, hein? Que disse eu? Mas amuando, o carão todo em gelhas, amargurou: Agora é esperar as consequências. Temo-la conosco, a tal Saúde Pública. Não tarda ai com os seus ácidos e os seus fogareiros infernais. Vai ser uma calamidade! No tempo da bubônica, a tal bubônica dos ratos — e esfregou os dedos; numa significação de roubalheira — eu morava na rua de S. José. Morreu lá um sujeito, deram-no por empestado... Pois, meu caro, os tais da Saúde varejaram a casa e, não lhe conto nada! Fiquei sem um par de ceroulas para mudar. Agora, imagine...! Tenho uma sobrecasaca nova, que ainda não vesti. Você então... Não é por falta de caridade, mas essas coisas, em uma casa como esta, cheia de gente... Os hospitais não foram feitos para os cães. Eu te digo: em adoecendo, mandem-me para a minha Ordem, Tenho lá tudo a tempo e a horas, estou à vontade e não fico a dever favores. E logo o que... tísica! Isso onde entra fica, é como o percevejo. Eu é porque não tenho tempo, senão mudava-me. Você vai ao enterro?

— Não sei. Basílio estalou com a língua no céu da boca:

— Não vá, homem. A religião é outra. Eu não vou. Não entro em cemitério, demais a mais estrangeiros. Não é por nada, questão de princípio. Aquilo não é para vivos. Hei de ir quando me levarem; por meu pé não vou mesmo. Nem a cemitérios nem a missas.

À medida que falava, firmando o pé à borda de uma cadeira, ia dobrando a bainha das calças. Apanhou o guarda-chuva, sacudiu-o e, com ar de nojo, exclamou: Tempo besta! Acendeu o cigarro e, levantando a gola do water-proof, saiu em pontas de pés, mansinho, resabiado, como num receio de que o chamassem encarregando-o de alguma coisa.

Ao voltar do banheiro, atravessando o passadiço, avistei Brandt, ainda em pijama, à porta do chalé, olhando pensativamente as árvores estarrecidas à chuva, gotejando numa tristeza de pranto humilde.

Dando por mim alargou os braços atirandoos para o alto num grande gesto de consternação. Saiu ao limiar e de olhos franzidos, com a chuva a borrifar-lhe o rosto, perguntou:

— Vais ao enterro?

— Não sei. E tu? Ele recuou com o vento que impelia a molinha em direção à porta e, do meio da sala, mais alto:

— É difícil. Tenho hoje lição em Niterói. Enfim... Pode ser. A que horas será?

— Naturalmente às quatro. Esteve um momento refletindo, a torcer uma madeixa que se lhe encrespava à fronte. Decidiu-se, por fim, resoluto:

— Vou. Devemos ir. Toma um carro, vamos juntos. E despediu-se: Até logo.

Ao almoço Miss Barkley fez o necrologio da finada descrevendo-lhe a vida virtuosa desde o dia em que a fora buscar a bordo do Danube até aquela triste manhã.

Era de uma família de puritanos da Escócia. O pai fora professor em Oxford e ela, a mais nova de oito filhos que se dispersaram, crescera, sempre franzina e tolhiça, no meio de sábios taciturnos e quakers de austeridade férrea, saindo de controvérsias científicas para esmiuçados comentários da Bíblia, entre o choral de Lutero e as meigas canções dos high-landers que, à noite, recordando, em cenáculo, a terra nativa, os velhos e os amigos da casa, reunidos à mesa ou à volta do lume, entoavam em tom místico, como se invocassem as divindades das colinas oferecendo-lhes, no canto saudoso, o sacrifício de mais um dia curtido na terra do exílio.

Instruira-se solidamente e, aos dezoito anos, deixara a casa paterna partindo para a Austrália como preceptora. Lá vivera três anos e de lá viera, numa necessidade de sol, para o Brasil onde, em um lustro de incessante labor, conseguira firmar um nome honesto, sempre numa auréola de crianças que lhe atordoavam as saudades do coração e os pensamentos de alma com o festivo barulho dos seus brinquedos e a alegria límpida do seu riso. Moça de valor! De muito valor!

Penalva, que não se arredara um minuto da cabeceira de Miss Fanny, disse da morte compadecido: “Juntou as mãos, cerrou os olhos como para dormir. Nem um tremor, nem um suspiro. Estava morta”. O comendador sorveu um hausto e bufou com sentimento:

— Pobre moça! O criado servia o bife em silêncio. Um dobre de sino rolou melancólico e aveludado no ar nevoento e o relógio pôs-se a tinir vibrante anunciando as horas num timbre alegre.

Houve um raspar de pés à varanda, estouros de guarda-chuvas que se fechavam, murmúrio de vozes em cochicho e, à porta da sala, como em dia de festa escolar, apareceu um grupo de crianças louras, de branco, o olhar espantado e curioso, todas com ramos de flores.

Miss Barkley levantou-se para recebê-las. Seguiam-nas criadas de avental e touca, muito graves, o ar compungido.

Entraram em surdos passos guiando as crianças sarapantadas.

Um cheiro de flores pairou docemente no ar como trazido em hálito de vergel e o bando deslizou em fila, sumindo no pequenino quarto mortuário.

O comendador confessou que estava verdadeiramente penalizado daquela “catástrofe”: Tão moça! Coitada... Penalva perguntou — se já fora vê-la? O velho espalmou a mão diante dos olhos como na repulsa de uma visão terrífica, com todo o rosto em esgar enojado:

— Não. Não gosto de ver defuntos, sempre impressionam e a gente, quando chega a certa idade, deve evitar esses espetáculos. Se um dia de chuva, como o de hoje, põe-me nervoso, imagine uma criatura morta. Não! Quero-me com o meu sol, com o barulho, com a vida. E curvou-se sobre a xícara de café chupando-o aos sorvos.

Penalva referiu-se à beleza da finada:

— Parece de mármore, comendador, até as sardas esmaeceram. Está linda! O velho fitou nele os olhos esgazeados e o estudante afirmou: Sim, senhor: linda! Há mulheres assim, como que foram feitas para o túmulo: feias em vida, embelezam na morte. Houve um caso desses na Escola...

E referiu: Certa rapariga do mundo, durante a moléstia, no hospital, era horrenda, de fazer asco, horas depois de morta, como se se lhe despegasse do rosto uma crosta escamosa, descobrindo a pele alva e fina dos quinze anos, surpreendeu a todos pela beleza. Juntou-se gente no anfiteatro para vê-la. O Décio fez-lhe um soneto, um lindo soneto!

— Ora! Espocou o comendador incrédulo.

— Garanto-lhe! Confirmou Penalva, muito sério.

— Pois, meu amigo, seja como for, prefiro a vida. Levantamo-nos e, recolhendo, cada qual, ao seu aposento, a casa ficou em silêncio, na luz velada do dia lúgubre, sob o esfarinhar do chuvisco que se espalhava no ar em rorejo esvoaçante como uma nuvem de mosquitos sobre um lameiro vasto.

O dia amorrinhava abochornado. A espaços, em nesga aberta nas nuvens, o sol transluzia mortiço, doentio, filtrando uma luz amarela de cirio. Frouxos trovões rolavam preguiçosamente ao longe e as moscas, invadindo o interior agasalhado, esvoaçavam impertinentes perseguindo-se em fúria lúbrica com um zumbido monótono que ainda tornava mais sensível o morno e abafado silêncio.

Tentei trabalhar, mas a atenção fugia-me para a câmara da morta.

Uma bafagem de aroma invadiu a sala como se subisse daquele quarto funéreo e logo se me afigurou num esbatido fundo de sonho, o cadáver da inglesa, branco, como me descrevera Penalva, emoldurado em rosas e lírios alvos, as mãos postas, rigidamente enclavinhadas, como no fervor de uma prece, um sorriso beato estampado no rosto.

Abri ao acaso o grosso volume misterioso que me emprestara James e pus-me a olhar as garabulhas estranhas que o enchiam: linhas revessas, discos, espirais, formas de urnas, crescentes firmados em cruzeiros aspados, signos mágicos, silhuetas de animais como nos hieróglifos egípcios e, folheando-o vagamente, distraidamente, cheguei à última página que uma iluminura floria — uma haste verde de onde se lançava a prumo um lírio airoso e outro pendia murcho e flácido, justamente como no frontispício.

Não havia dúvida — era um símbolo encerrando todo o mistério daquele escrito arrevezado.

Prendiam-se meus olhos às bizarras figurações e fosse ilusão da fadiga ou verdade maravilhosa, todos os caracteres começaram a mover-se lentamente — as espirais desenrolavam-se, alargavam-se como serpentes entorpecidas que se fossem reanimando a um calor suave; os discos bojavam, cresciam em globos e elevavam-se das páginas semelhando iriadas bolhas de sabão; as urnas punham-se de pé; os crescentes iluminavam-se de um livor de luar sobre os negros cruzeiros que se desenvolviam, estendendo para um e outro lado os braços inflexíveis: os vários signos revoluteavam em giro vertiginoso e os animais crescendo, encorpando-se, curvavam o dorso, distendiam as asas com o pelo híspido ou com as penas arrepiadas e os olhos coruscantes, acirrando-se em combate e fugiam aos galões ou abalavam em voo espavorido, dissolvendo-se como halos de fumo que esvaecem no ar. Esfreguei demoradamente os olhos estremunhados. Tornando, então, à página, revi tudo na primitiva e natural fixidez. Ilusão!

Pus-me a andar pela saleta repelindo os pensamentos sombrios que me perseguiam em revoada.

Porque me havia de perturbar o espírito aquela ideia pertinaz da morte? Aquele cadáver, que eu sentia como suspenso acima de mim, pairando, hirto e frio, branco, entre flores, porque me havia de seguir?

Eu via claramente em torno, e nada percebia, nada! Entretanto a morta estava comigo, envolvia-me, obsedava-me.

No brilho acerado dos espelhos havia, por vezes, obscurecimentos, brumas que o toldavam de passagem, logo, porém, a claridade reabria-se fulgente. Não era senão o reflexo do céu, ora fusco, ora aclarado pelo sol indeciso.

Atirei-me à cama prostrado, sempre a pensar naquele transe da madrugada, naquela alma que se partira da terra e do sofrimento para o seio do mistério. Queria segui-la, vê-la resolver-se em luz, integrar-se na claridade infinita-e olhava a fito: sentindo, porém, o sono, tentei levantar-me para chamar o Alfredo e encarrega-lo de encomendar o carro, mas a lassidão era tal que apenas pude soerguer-me, e logo recai nas almofadas, adormecendo imediatamente.

Gélida mão tocou-me a fronte de leve, apertou-me a mão que pendia à borda do leito e, abrindo os olhos assustado, vi uma forma brumal, um corpo sútil, diáfano, ondulante como um reflexo de névoa em águas trêmulas, sair fluindo em alor silencioso.

Sentei-me de golpe, aturdido, assombrado; passei à saleta, medroso; olhei — deserta. O meu relógio de bronze sobre a mesa marcava justamente as três horas.

Teria sido um aviso? Ela? A pedir a minha companhia para não ir solitária por aquelas ruas sob a tristeza inclemente de um céu de inverno, ela que viera pelo sol, demandando a luz formosa e vital dos nossos dias?

Seria? Chamei Alfredo e, nervoso, mal lhe senti os passos no corredor, corri à porta a despachá-lo com o recado:

— Encomenda um carro pelo telefone. Depressa! É sempre às quatro?

— Sim, senhor.

— Brandt já veio?

— Creio que já, porque o chalé está aberto.

— Então vai. Um coupé. Refresquei o rosto e comecei a vestir-me, sempre preocupado com a sensação que me despertara.

Diante do espelho, sem ver-me, pensava: Oh! Os meus nervos! Os meus pobres nervos excitados começavam a afrouxar em tibieza covarde. Decididamente era preciso reagir. Minha alma, senhoreada pelo terror, enfraquecia imbele ante os incidentes mais comezinhos: o voo de um inseto que investia à vidraça fazia-me estremecer abalado; ao estalido de um móvel gelava-se-me o sangue. Dei um empuxão à lapela da sobrecasaca num arranque de força enérgica e cheguei à janela.

O sol rompia as nuvens adelgaçadas e o ar fresco e macio. Grandes vãos de azul apareciam e as folhagens lustrosas brilhavam tenras como rebentos da véspera. Ainda pingavam, a espaços, goteiras lentas.

Desci. Na sala dois ingleses fumavam distraídos e um menino, vestido á maruja, encostado à mesa, folheava um número do Graphic.

Encaminhava-me para a varanda com o propósito de ir ao chalé, quando Brandt entrou na sala, ainda alisando as mangas amarrotadas do frack.

— Estamos na hora?

— Sim. Miss Barkley apareceu, falou aos ingleses, que logo se aprumaram, e preveniu-nos também:

— Estava tudo pronto. Iam fechar o caixão. Se quiséssemos... Acompanhamo-la.

Sobre uma mesa estreita, ao meio do quarto, jazia o caixão negro, folheado de ramagens de prata. Mulheres mexiam-se em volta, compondo as flores, atafulhando-as nos vãos e a morta, muito branca, parecia de cera. As faces fundas, com os ossos em ressalto, os olhos cavados, entreabertos, como desabotoando na lividez das órbitas, o nariz muito afilado, os lábios finos, sem cor, gretados e secos. Uns fios de cabelos louros iluminavam-lhe a fronte lisa. Entre as mãos ebúrneas, morriam flores e uma cruzinha de ouro pousava-lhe sobre o peito raso.

Fecharam o caixão, sem lágrimas. Os ingleses tomaram-no, levantando-o como um simples fardo: eu e Brandt secundamo-los. E saimos.

As mulheres vieram até a varanda. Passamos por entre as roseiras viçosas e os galhos balançados gotejavam sobre o caixão.

Uma das flores desfolhou-se e, no momento em que o jardineiro abria de par em par o portão, no caramanchel uma cigarra alvisseira desferiu o alegre canto estival, contente com o sol que saía ao azul, livre como um empavezado barco que abrisse amplas velas ao vento ao singrar, airoso, o mar bonança, longe da bruma, longe dos bancos algidos, longe dos níveos penedos, pela serenidade remançosa das águas lisas.

A vizinhança apinhava-se às janelas, havia curiosos pelas calçadas. Miss Barkley esperou que se afivelasse a última correia e, quando o féretro moveu-se, fez um aceno tão simples com a mão como se se despedisse, por horas ligeiras, da que ia para a Noite sem alvorada ou para a manhã radiosa do Dia que não finda.

Ao voltarmos a rua do Marquez de Abrantes cruzamos com a carrocinha da Saúde Pública e uma carreta em bancada com os desinfetadores. Sorri lembrando-me das palavras irritadas de Basílio. Brandt murmurou:

— O exorcismo. E, depois de uma pausa, ajuntou em tom misterioso. Se os homens pudessem fazer o mesmo ao coração livrando-o da saudade a alma sofreria menos no seu breve trânsito pela terra.

A Morte é a Flor da árvore da Vida: murcha no ramo, desfolha-se no túmulo, mas o pólen reprodu-la. O homem que lavra não se contenta, quando ara e depura o campo, em arrancar a planta maninha: cava, desarreiga a vige e o mais tênue filete de raiz e ainda lança fogo ao restolho para que não perdure sêmen nefasto. A flor aqui vai... Mísera flor! E lá vão os arrasadores destruir o gêrmen letal que ela deixou disperso no pequenino quarto.

— E tu crês, Brandt?

— Creio, sim; creio ainda que julgue a Morte uma ascensão, nada mais — o que nós chamamos Vida é a purificação do ser. Natureza, eis tudo. A alma entra na existência como em escala de aperfeiçoamento, passa do menor ao maior oscilando entre o bem e o mal. Em todo o homem subsiste a vaga reminiscência de uma vida anterior e há a tendência para o Além: a terra prende-nos, o céu atrai-nos. A vitória do Absoluto é a Morte.

Éramos árvore, um arranque fez-nos pássaro, em vez das raízes cativantes adquirimos a asa solta, vencedora do espaço. Homem hoje, amanhã...

— Poesia...

— A Poesia é a flor da Verdade, meu amigo, ainda que todas as ideias que se destacam da vulgaridade, as superiores e as imbecis, lhe sejam, por desinteligência ou escárnio, desprezivelmente atribuídas.

O poeta é vidente: anuncia por símbolos o que se há de realizar em dias vindouros. A flor não tem saibo, senão aroma: o verso é pura abstração — alma. O fruto, com a polpa saborosa, vem mais tarde à árvore.

Analisa qualquer lei científica e hás de nela encontrar a essência poética. Os primeiros sábios foram contemplativos: a palavra da Sabedoria nasceu ao som das liras.

Apolo guiou os passos de Minerva infante. Tudo é poesia.

O coupé relentou a marcha num atravancamento de carroças contidas por um carrejão carregado de lages de granito que entalara uma das altas rodas num lameiro, diante dos emaranhados andaimes de um prédio em construção.

Estalavam chicotadas a um vivo atroar de brados enfurecidos. Houve, por fim, um alarido de açulo, um vozear de acorçôo e logo o estrepitoso barulho de muitos veículos partindo de arranque em direções diversas. E o povo refluiu para os lados arengando. Seguimos.

Na Saúde Brandt observou:

— Parece que deixamos as portas da cidade. Repara como tudo aqui é diferente: outro aspecto, outros tipos. A própria lama é negra, como feita de pó de carvão.

A rua, esburacada e tortuosa, reluzia em abafeira escura. Íamos lentamente ao longo dos grandes trapiches, por entre caminhões que rodavam aos solavancos, com um forte estridor de ferros.

Tanoeiros besuntados, com aventais de couro, martelavam aduelas, raspavam quintos e um cheiro ácido, avinhado, exalava-se em bafio de dorna.

Embarcadiços, de blusa ou em mangas de camisa, os braços robustos avergoados de veias túrgidas, tanados, a pele franzida em rugas, aos grupos às portas das vendas, cachimbavam ou riam às cascalhadas. Em vastos armazéns sombrios as sacas, em pilhas, por entre as quais enfiavam esgalgadas ruelas, topetavam com o teto.

No fundo fuliginoso de fundições havia um como flamejar de piras, tiniam ferros através do rumor reboante das máquinas.

Carregadores trotavam curvados ao peso de sacas e, chapinhando na lama, desapareciam em casarões vetustos e gente, num aforçurado ir e vir, abalroava-se aos encontrões, no mourejo ou na calaçaria: mulheres esmolambadas, crianças maltrapilhas farejando às portas, negros agigantados, o busto nu, retinto, reluzindo ao suor, rinchavelhando às guinadas com os bíceps entumescidos em ampolas de força.

Vielas subiam desguelha, enviesavam-se em cotovelo, ladeira acima, por entre um casario chato com a cimalha esborcinada e a borda do telhado coberta de erva e ao alto no remonte agreste, sotopunham-se, em pombal, vivendas misérrimas — casotas acaçapadas, baiucas, pardieiros apinhados, um refugo de ruínas na desordem desmantelada de um desmoronamento.

As longas chaminés, em obeliscos, bufavam rolos espessos de fumo negro e, de instante a instante, vencendo todo o rumor, um silvo esganiçava um grito histérico, ou o retrôo de uma sereia prolongava-se soturno.

Quando chegamos ao cemitério, em silêncio, ajudamos os dois ingleses a retirarem o caixão respingado de lama, e, tomando as alças, subimos vagarosamente a áspera e pedrenta ladeira entre grossa muralha laivada de umidade e uma ala flexuosa de bambus.

O sol brilhava triunfante, livre das nuvens que fugiam em derrota. A aragem soprava suave.

Triste cemitério de exílio!

Encostado à montanha, todo em acidentes: ora corcoveado, em cômoros, ora abismando-se em ribanceiras ingremes, com os jazigos abandonados, enegrecidos, dentro de moutas hirsutas de erva brava, as cruzes de ferro roídas pela ferrugem, as de mármore veiadas de negrume, era desolador como a própria morte naquele recanto lúgubre, entre árvores retorcidas e engelhadas, cujas raízes repontavam expostas, órfãs da terra carreada pelos aguaceiros.

A montanha, com uma torre fina espetada no viso, vertia o seu flanco estéril para o cemitério. Em frente, o mar sereno, pelo qual entrava longamente uma ponte carregada de wagons, refulgia coalhado de barcos; e longe, cintando as águas lisas, o redente da serra, mais azul do que o céu.

Chegamos à capela — nua, sem um símbolo a não ser a cruz triste, de ferro, no vértice do frontão, entre andorinhas que esvoaçavam...

No interior, de paredes brancas, abertas, ao alto, em persianas, só havia, ao centro uma mesa funérea sobre a qual descansamos o caixão.

O pastor, um homem pálido, de barba negra e óculos, esperava-o, revestido duma capa branca, de largas mangas, a estóla negra ao braço, o livro entre os dedos.

Chegou-se ao esquife e pôs-se a ler maquinalmente numa voz que esmorecia, quase apagava-se, para crescer, de improviso, em tom ríspido, imperativo como se ele intimasse a divindade a receber a alma que consignava.

Não era uma prece, mais parecia uma transação com o Além, em que se sentia o negociante a gabar a mercadoria, a exalta-la, cedendo-a, por fim, com as caramunhas aborrecidas do que dá por menos do que pretende. Fechou o livro, pôs-se em marcha.

Seguimo-lo com o leve esquife, levando-a ladeira acima, até a barranca, junto ao muro, onde a cova aberta, de terra pastosa e mole, enlameada ao fundo, esperava guardada pelos coveiros.

De novo o pastor abriu o livro, murmurou a oração extrema e, lentamente, num silêncio em que se ouvia o lânguido ringir dos ramos, descemos o caixão que chafurdou balofamente na cova encharcada.

A pá de terra, passando de mão em mão, cinco vezes fez ressoar o tampo do esquife. Afastamo-nos. Logo, com pressa de acabarem, os coveiros tomaram as enxadas e um estrondo surdo atroou.

Os dois ingleses subiram, e, ao alto, um deles, indiferente aos túmulos, estendeu o braço mostrando a paisagem, explicando-a ao companheiro e seguia com o dedo hirto as voltas da terra, os rolos de fumo das chaminés, os telhados negros, os barcos que deslizavam, a serra longínqua, as próprias nuvens. O outro olhava fito.

Nos ramos, dourados pelo sol, as cigarras cantavam hilares.

Brandt, diante da capela, nua e desolada como se por ela houvesse passado a profanação de um excídio, meneou com a cabeça:

— Não! Não compreendo religião sem ritual, nem ritual sem pompa. O homem precisa ver para compreender e amar. Não basta pensar em Deus, é necessário senti-lo, tê-lo ante os olhos em uma expressão material, como um alvo a que vá fita a prece, para o qual se lancem as mãos pedintes e corram em torrentes as lágrimas desencadeiadas.

— E a natureza? Tudo isto? Céus e terras?

— Tudo isto é a criação, não é Deus. E esta capela é uma casa deserta, um corpo morto a que falta...

— Um ídolo...

— A alma, meu velho, a alma das religiões que é justamente a Poesia: uma expressão da Bondade, do Amor, da Esperança, da Fé... O símbolo, o símbolo, o eterno e necessário símbolo.

Isto é desoladoramente triste, has de convir. Vamos! E descemos desconsolados já precipitosa ladeira apuada em pedrouços.

Diante do carro Brandt ficou um momento hesitante; por fim disse ao cocheiro: Para o Globo!

E, deixando-se cair no assento, exausto, desabafou: Estou com fome! Tive um dia tremendo! Felizmente aí está o sol. Não imaginas como passo mal nestes dias sem luz. E, inclinando-se para olhar o céu, exclamou extasiado no azul: Tarde esplêndida!

O aroma e o som, vivendo no ar, insinua-se mais do que a luz: a fronde de uma arvore é empecilho ao sol — o aroma e o som passam através dos muros fortes dos cárceres.

No cérebro eles são assíduos, e, visitando todos os meandros, vão sugerindo ideias, despertando reminiscências, gerando êxtases e terrores, excitando o gozo ou provocando lágrimas.

Há melodias e aromas que renovam saudades, outros fazem-nos devaneiar lançando-nos aladamente em plena fantasia.

Um jardim em flor inspira tanto como uma orquestra. E há sons ásperos como há cheiros estiticos. O aroma da violeta é um balbucio, o jasmineiro florido é um coro de bacanal.

O tirso das ménades, feito de lenho de sândalo, devia ser enastrado de gardênias e cravos.

Quando entrei do ar puro da noite para o ambiente morno da casa logo senti-me envolvido no cheiro acre das fumigações e dos ácidos e, aturdido, estonteado, segui pela penumbra silenciosa da sala, com o gás em chama de vigília, atravessei o corredor, subi a escada até os meus aposentos com a impressão, de ir caminhando ao longo da galeria funerária de um jazigo.

Era o cheiro anunciador da Morte que impregnava toda a casa. .

A minha saleta, apesar da janela aberta, tresandava. Era o “olor” misterioso a combater os remanescentes da Morte. Tremenda batalha dos tóxicos contra os infinitesimais: cada átomo era um campo.

Em toda a parte à luta encarniçava-se.

Despindo-me, com todo o gás aceso, eu sentia, em torno de mim, a rija peleja. Imaginava a exalação daquele cadáver desenvolvendo-se, tomando toda a casa, invadindo-a canto por canto, a envenenar o ar, a água, a luz, todas as essências da Vida, mas, ao mesmo tempo, o cheiro acético, que parecia espicaçar o olfato, tranquilizava-me com o pensamento extravagante de que, se os princípios letais, penetrando-me no hálito, levavam a ruína ao meu íntimo em pós deles precipitavam-se os adversários armados e no cheiro irritante que me alfinetava a pituíta eu sentia as suas invisíveis lanças, as suas espadas, vibrando estocadas e golpes, ferindo de gume e de ponta, sem deixar um só vivo, um só! Que seria bastante para devastar-me o corpo frágil.

Deitei-me. Na escuridão, porém, renhiu-se, ainda mais, a refréga e, no estado alucinatório em que fiquei, agravou-se a sinistra fantasia do meu delírio pávido.

Ante meus olhos, em roldões mais negros do que a treva, passavam atropeladas falanges e um ruído, como de respiração ansiosa, era o estrondo da pugna retravada.

Pruridos fervilhavam-me no corpo — eram eles, os inimigos. Por vezes o peito abafava-me como se sobre ele pesasse um tampo de ferro — era a passagem das hordas acirradas.

Ardiam-me os olhos, os meus ouvidos, atroavam.

Horrenda, formidanda batalha! E assim devia ser em toda a casa, no ambiente e nas mais fundas taliscas e, a todos os pontos em que se alapardavam traiçoeiramente os invisíveis esperando o momento oportuno para o assalto, lá ia o bafio, como o hálito intensivo da Vida, afuroando, devastando a Morte.

Adormeci em sono pesado debatendo-me no horror de angustioso pesadelo. A morta apareceu-me imensa e lívida, como iluminada por uma auréola de fogos fátuos, nua, de pé sobre escabroso e árido penhasco, escarapelando o corpo às unhadas, a lançar de si para a terra tassalhos de carne, borrifos de sangue, mechas de cabelos, os dentes, as unhas e onde quer que caísse uma de tais parcelas logo, instantaneamente, a vida cessava..

Homens, aos milhares, inclinavam-se, abatiam em silêncio trágico como ervagem talada em campo maduro; árvores mirravam; águas límpidas de córregos vivazes enegreciam em rebalso; pássaros colhiam as asas e rolavam dos ares, mortos.

Por fim, num arremesso do espectro, o céu ensanguentou-se de coalhos e logo as estrelas fulgidas apagaram-se.

Então o esqueleto esburgado pôs-se a mover-se frenético, boleando, tripudiando; arrojou-se da fraga sobre a mortualha e, acalcanhando-a em triunfo, dançava e crescia desmesuradamente enchendo todo o espaço até que não houve mais que a ossaria avassalando céus e terras e lá em cima, onde as costelas eram como imensos arcos-íris, o crânio tábido, descomunal, com dois olhos opacos rolando nas órbitas, como astros mortos — cadáveres do sol e da lua, oscilando e ainda alumiando nos últimos vasquejos.

Acordei aflito, alagado em suor de agonia, e, lançando-me do leito, fiquei de pé no meio do quarto espavorido e anciado e ainda o cheiro hediondo pairava astricto, tornando o ar híspido, como espinhoso.

Já se desfaziam as sombras da noite dissolvendo-se nas cores risonhas da alvorada. Saí à saleta e, recebendo em pleno rosto a bafagem sadia da manhã, respirei a haustos largos, sofregamente, como se houvesse emergido, à tona, depois de um longo, asfixiante mergulho.

Debrucei-me à janela gozando a maravilhosa apoteose do alvorecer.

O céu, com os vários matizes d’alva, desde a púrpura, em frouxeis, até o broslado de ouro, acendia-se em cariz resplandecente como se uma tela imensa, de fogo, viesse lentamente subindo, sobrepondo-se ao azul suave que desmaiava.

As árvores menciavam-se em lânguidos requebros, rufiando os ramos e pareciam compor-se garridamente para receber o sol. As folhas, à luz branda que se esparzia em rorejo de ouro, espalmavam-se com ânsia avara.

De todas as franças, dentre os copados galhos partiam aves alígeras e eram chilros, trilos alegres e, os voos cruzavam-se em festival aéreo, à medida que o céu, mais claro, aquecia-se com o Sol que se levantava triunfante.

Desci ao banheiro e, para conjurar as impressões funéreas, decidi trabalhar todo o dia, abrindo largamente as portas do “sonho” que eu ali tinha, à mão, e refugiando-me nele como entre as árvores floridas de uma selva de encanto.

E abanquei diante do manuscrito de James quando o primeiro raio de sol entrava em flecha pela janela aberta.