Sonetos (Antero de Quental, 1880)/Espiritualismo
Como um vento de morte e de ruina,
A Duvida soprou sobre o Universo.
Fez-se noite de subito, immerso
O mundo em densa e algida neblina.
Nem astro já reluz, nem ave trina,
Nem flôr surri no seu aéreo berço.
Um veneno sutil, vago, disperso,
Empeçonhou a criação divina.
E, no meio da noite monstruosa,
Do silencio glacial, que paira e estende
O seu sudario, d'onde a morte pende,
Só uma flôr humilde, misteriosa,
Como um vago protesto da existencia,
Desabroxa no fundo da consciencia.
Dorme entre os gelos, flôr immaculada!
Luta, pedindo um ultimo clarão
Aos soes que ruem pela immensidão,
Arrastando uma aureola apagada...
Em vão! Do abismo a bôca escancarada
Chama por ti na gélida amplidão...
Sobe do poço eterno, em turbilhão,
A treva primitiva conglobada...
Tu morrerás tambem. Um ai supremo,
Na noite universal que envolve o mundo,
Ha de echoar, e teu perfume extremo
No vacuo eterno se esvahirá disperso,
Como o alento final dum moribundo,
Como o ultimo suspiro do Universo.