A primeira claridade do dia passando através da rótula foi acariciar o rosto de Gabriela, deitando sobre o travesseiro de cetim entre os frocos de rendas da fronha bordada.

A moça adormecida abriu frouxamente as pálpebras, para cerrá-las de novo, cedendo ao sono. Mas de repente sentou-se na cama; enfiou os olhos pela rótula, e ergueu-se de salto.

O aposento era como ela mesma, pelo gosto e elegância, um exotismo no meio, não só daquela fazenda, como de todo município, então muito afastado ainda da riqueza e progresso que agora ostenta. Parecia que uma fada transportara o mais faceiro toucador da Corte com a sua gentil dona, e o encravara no antigo casarão, tipo das primitivas habitações rurais dos lavradores abastados.

Gabriela vestira-se rapidamente. Debuxava-lhe o talhe uma linda fardeta de veludo preto que servia de corpinho à saia de montar feita de pano pardo. Na cabeça tinha um chapéu de castor, com o véu de filó verde enrolado pela copa.

Quando transpunha a porta, retrocedeu a moça de repente; e foi de novo consultar o espelho acerca da elegância do seu trajo. Não era ela faceira, e com a consciência que tinha de sua graça natural, não se demorava na escolha dos enfeites e adereço de sua pessoa.

Nessa manhã porém tornara-se difícil; nada lhe parecia bem; e apenas inclinava-se a um adorno, logo vinha-lhe o receio de não ser de bom gosto, ou de não combinar com o trajo.

Deixando afinal seu aposento, a moça atravessou apressada a varanda, que prolongava-se por toda a frente da casa, e foi sair no pátio lateral.

Na asa fronteira das edificações que fechavam aquele pátio, estavam as cavalariças, onde ouvia-se o tropel dos animais e vozeio dos pajens. À porta apareceu Carlinhos:

— Já mandei selar! gritou ele para a irmã.

Gabriela, moderando sua impaciência, deu alguns passos a esmo pelo pátio, à espera de que se aprontassem os animais. Notando que a porta da capelinha estava aberta, lembrou-se de fazer oração.

O Capelão, sentado no confessionário, esperava duas velhas escravas da fazenda, que na véspera tinham-lhe pedido a santa comunhão; e as quais se dispunha a ouvir antes da missa.

Era o padre Moura um velho de setenta anos, de aspecto venerável, repassado de uma gravidade compassiva e benévola. Sua fisionomia tinha o selo evangélico do sacerdote cristão.

Vendo entrar a moça, ergueu-se para ir-lhe ao encontro:

― Também se quer confessar, Gabriela? perguntou ele com um meigo sorriso depois de trocar a saudação matinal.

— Eu? exclamou a moça sobressaltada. Não, quem lhe disse?

— Estava gracejando; respondeu o velho a quem não escapara a perturbação da menina. Que pecados pode ter sua alma de pomba, Gabriela?

― Não sei; disse a moça comovida.

― Sei que não tem nenhum. Já não a confessei tantas vezes?

― É verdade; mas agora não.

Chegavam as penitentes. Gabriela aproximou-se do altar, fez a oração e saiu da capela.

Os animais selados já estavam no pátio, junto à varanda. Ela montou um lindo cavalo moiro e partiu acompanhada por Carlinhos. Passada a tronqueira dispararam a galope pela estrada em direção à Valença.

Esse passeio fora combinado de véspera entre os dois com permissão de D. Margarida; mas a ideia dele era de Gabriela que tinha um plano. Agora que chegava o momento de o realizar, estava indecisa, e deixava-se guiar pelo menino.

― Vamos à casa de Angélica? disse a moça depois de um tempo de galope.

Com o estouvamento próprio da idade, o Carlinhos voltou à direita da estrada, e metendo-se nas veredas que enredavam-se pelo campo, continuou a correr, festejando com risadas os gritozinhos de susto que soltava a irmã, quando os galhos das árvores ameaçavam-lhe o chapéu.

Chegaram a um pardieiro, que já não tinha aspecto de casa, mas ainda servia de habitação ao Inácio, o qual aí vivia com a mulher. D. Margarida por vezes oferecera aos dois velhos outra casa no quadro da fazenda, onde estariam melhor agasalhados e mais próximos de socorros; porém recusaram obstinadamente; queriam morrer ali onde tinham vivido.

Ao tropel dos animais veio à porta uma parda velha.

― Adeus Angélica! disse Gabriela de longe.

― É Nhá Gabriela! Cada vez mais bonita! E Nhô Carlinhos? Já está quase um homem! A bênção!... Como está minha senhora D. Margarida?

Enquanto Carlinhos dava uma cresta nas goiabeiras, Gabriela conversou com a velha, que fez a resenha minuciosa de todos os seus achaques novos e velhos, da peste das galinhas, da praga dos gambás, e de todas as efemérides caseiras.

― Quedê o Inácio?

― O meu velho anda na lida, Nhá Gabriela. Também se queixando sempre e banzeiro.

― Não deve trabalhar tanto; já está muito velho. Outro dia carregou um tronco tão pesado, que atirou-o ao chão e o ia matando.

― Quem lhe disse, Nhá Gabriela?

― Já não me lembro; respondeu a moça disfarçando a sacudir com o chicote a poeira do roupão.

― Havia de ser o moço que ajudou a ele.

― Que moço é?

― Não sei, um que está morando na Cachoeira. Há de ser parente do Marcondes.

Gabriela chamou Carlinhos e seguiu adiante consultando o relógio que trazia no bolso da fardeta, preso à cadeia de ouro. O caminho que ela tomou cortava por dentro da mata, e passava perto da cascata.

De longe a moça avistou o desconhecido, sentado no tronco de jataí, como o via todas as manhãs; mas naquele momento em vez do livro tinha na mão uma flor de parasita que estava admirando.

O rumor do passo dos animais, o tirou do seu embevecimento. Ergueu a cabeça; seu olhar sereno, doce e cândido, foi pousar no formoso semblante de Gabriela; e deteve-se contemplando-a com plácido enlevo, como se continuasse nessa imagem a mesma admiração que lhe inspirara a flor; pois eram ambas a obra divina do Criador.

Gabriela não vira coisa alguma, desde o momento em que o olhar do mancebo fitou-lhe o rosto. Sentiu porém uma impressão igual a que experimentaria se atravessasse um lago de chama etérea; e quando na volta do caminho, escondeu-se do desconhecido, embora inundasse o espaço um sol brilhante, pareceu-lhe a ela que entrava na sombra.

Apagara-se a luz do céu, diante da qual essa luz da terra era um frouxo e pálido crepúsculo.

O resto desse dia, Gabriela esteve de uma alegria infantil. Carlinhos não fez mais artes, nem deu mais frescas risadas do que ela. D. Margarida vendo a filha travessa e alegre, contra o costume, disse-lhe gracejando:

― Viste passarinho verde, Gabriela?

― Estou contente, mamãe.

― Eu sei o que é; disse Carlinhos.

A moça volveu o olhar inquieto para o mano, mas percebendo-lhe no arzinho brejeiro a vontade de meter-lhe susto, correu a ele e afogou-o de beijos, que talvez não fossem todos em sua intenção.

No dia seguinte, embora não perdesse a alegria da véspera, já não tinha as mesmas vivas efusões. Percebia-se a preocupação. A cada momento sobressaltava-se. O menor rumor fora a estremecia; chegava sôfrega a janela; uma curiosidade impaciente e vaga a trazia em constante agitação, de um ponto a outro.

Ela mesma não saberia explicar o que sentia nessa ocasião e o que esperava. Obedecia a um impulso novo que não definia e do qual ainda não tinha consciência.

Imaginava a todo instante que ia operar-se de repente uma resolução em sua vida. Algum fato estava iminente, que devia decidir do seu destino. Na sombra desse acontecimento, futuro, fixava-se de repente aquela imagem que flutuava agora no fundo de todos os seus pensamentos.