No dia seguinte, à mesma hora matinal, Gabriela saiu a cavalo com o irmão.
Depois de algumas voltas ela dirigiu o passeio, como na véspera, para o sítio frequentado pelo desconhecido; e foi com viva emoção que aproximou-se do tronco de jataí, onde esperava encontrar o mancebo.
Ele aí estava; despertado, pelo tropel dos animais, ergueu a cabeça, e fitou seu olhar plácido na moça que sentiu-se outra vez banhada de um raio celeste, e ficou durante todo aquele dia como engolfada nessa onda luminosa.
Este passeio repetiu-se por alguns dias, Gabriela passados os primeiros deslumbramentos, pôde fixar a vista no semblante do mancebo sem o enleio anterior.
Foi então o desconhecido que perturbou-se. O olhar sempre límpido e sereno ofuscou-se; corando de leve, o mancebo recolheu a vista e cravou-a com insistência no livro donde não a retirou mais.
Na manhã seguinte quando a moça passou, ele estava na posição habitual, e lia tão absorto, que nem o tropel dos cavalos nem as falas dos dois irmãos o distraíram.
Gabriela despeitada com essa preocupação, aproximou o cavalo do jataí. Então o desconhecido levantou-se, e cortejando-a de leve com o chapéu retirou-se na direção da Cachoeira.
Ao passar no outro dia, Gabriela não encontrou mais o desconhecido, que desde então desapareceu do seu sítio predileto.
A moça arrependeu-se de sua insistência, que afugentara o solitário pensador; mas tornou a passar na esperança de ver ainda uma vez o homem, a quem sentia que estava para sempre ligado seu destino. Um dia ela percebeu, que o desconhecido a observava por entre a folhagem de uma espessura, onde se ocultara, e disfarçou para não afastá-lo de novo. Quando chegou à casa, e lembrou-se desta circunstância teve um júbilo indefinível.
Desde o princípio que a moça lembrou-se de interrogar as pessoas da fazenda acerca do desconhecido; mas não se animava. Parecia-lhe que à sua primeira pergunta lhe escaparia o segredo.
A Cachoeira pertencia à um antigo tropeiro, que andava sempre acima e abaixo na contínua lida. Depois que enviuvara, a casa ficou entregue a um negro que passava por idiota. O dono poucas vezes ali ia, e não se demorava. Além dos hábitos de sua existência andeja, desgostara-se do lugar onde morrera a sua velha companheira.
Uma tarde percebeu Gabriela que o administrador da fazenda falava com o Pe. Moura acerca do desconhecido e prestou atenção, na esperança de colher alguma coisa.
― Estes dias atrás apareceu um morador em casa do Bueno; na Cachoeira; disse o administrador.
― Há de ser algum parente.
— Não se sabe. O moço parece que veio da Corte; mas é desconfiado; não gosta que se metam com a sua vida. Ainda ontem o Nóbrega, que é abelhudo, andou por lá rondando; mas não tirou conversa.
― Talvez seja algum doente que veio para aí tomar ares.
― Eu estou que é; pelo jeito não pode ser outra coisa.
Gabriela também achou provável a suposição do Pe. Moura: e essa ideia de amar um enfermo bem longe de trazer-lhe um desencanto, veio enobrecer a sua afeição pelo sacrifício. Seu coração generoso tinha agora mais uma razão para consagrar-se àquele homem; ele sofria.
Para a mulher que ama como ela, não podia haver maior júbilo do que esse de partilhar os sofrimentos do ente querido; e fazer assim da dor uma santa e inefável comunhão.
Então a moça compreendeu a esquivança do desconhecido. Ele sentira o mesmo irresistível impulso que ela; mas retraía-se para não surpreender-lhe o coração e inspirar um amor infeliz.
Na mesma tarde, quando Gabriela ainda se embalava nestas cismas, chegou à casa da Soledade um rapazinho com uma triste nova.
A velha Angélica, tivera um ataque, na véspera à noite, e estava a expirar. O marido, o Inácio Pina, mandara pedir socorro a D. Margarida, e chamar o Pe. Moura para confessar a sua companheira.
Angélica era uma liberta, a quem a senhora forrara havia alguns anos em recompensa de seus bons serviços. Passava por uma das mais antigas escravas da fazenda; e apesar de trabalhar na roça dera de mamar a D. Margarida e seus filhos, não como ama efetiva, mas uma ou outra vez.
Era essa uma honra que antigamente as escravas muito cobiçavam, e que as senhoras costumavam dispensar às mais sossegadas e bem procedidas. Estas, assim consideradas, tinham um ingênuo orgulho em dizer mais tarde dos senhores: “mamou o meu leite”.
D. Margarida despachou imediatamente as parceiras de Angélica para levarem-lhe os socorros precisos; e preparou-se para seguir ela mesma em sua liteira acompanhada pelo Pe. Moura.
Gabriela, com o carinho que as meninas brasileiras sempre tiveram pelas amas e crias da casa, obteve da mãe licença para acompanhá-la; mas impaciente com a marcha vagarosa da liteira, pôs o cavalo a galope e foi a primeira a chegar.
Apeando-se rápida, encaminhou-se para a palhoça. A porta estava cerrada; pela fresta que deixava, a moça viu a triste cena que nesse instante apresentava o interior do pobre alvergue.
No fundo, sobre um catre de madeira tosca, jazia o corpo da velha Angélica, de costas, e já inteiriçado pela rigidez cadavérica. Um pedaço de vela de cera espetado em uma estaca servia de círio mortuário, e derramava frouxo clarão pelo escuro aposento.
À cabeceira do leito, estava um padre reclinado sobre o corpo da velha, cujos dedos crispados ainda conservavam presa a mão do sacerdote, que ela estringira na última convulsão. O ministro da religião rezava; e o sussurro de suas orações confundia-se com o crepitar do rústico brandão.
Gabriela, à primeira impressão deste quadro lúgubre, recuou transida de santo pavor. Trêmula, sustendo-se a custo, arrimou-se ao umbral da porta, e volveu um olhar aflito para o caminho, ansiosa de que chegasse a mãe.
Momentos depois, ouvindo o tropel dos cavalos, a moça mais animosa, empurrou a porta, e ajoelhou-se perto. A luz do dia, que entrava até aí, era como um raio de vida, que a separava desse quadro da morte.
O sacerdote acabara de rezar. Desprendendo a destra dos dedos hirtos da velha, cruzou-lhe as mãos sobre o peito; fechou-lhe os olhos e cobriu-lhe o rosto com o seu lenço.
Nesse momento chegava a liteira. O padre voltou-se então advertido pelo rumor. Seus olhos dirigindo-se à porta encontraram Gabriela ajoelhada, que observava-lhe os movimentos com um respeitoso terror.
A moça ergueu-se espavorida. Quis fugir; mas soltou um gemido profundo, e caiu desmaiada. Acabava de reconhecer no sacerdote, o solitário, o homem a quem ela amava.